Durante os anos 90, a Nintendo tinha (e ainda tem, verdade seja dita) uma politica bem estrita de ser family friendly, e por isso leia-se uma visão bastante estadunidense da coisa: violência é perfeitamente aceitável, enquanto mulheres são um big no-no.
Ciente disso, a filial da Konami de Osaka teve uma ideia bastante diferente:
- Hmm, chefe, pra fazer um jogo que chame atenção... a gente pode abrir ele mostrando uma bunda? Certamente todo mundo vai reparar nesse jogo!- No Nintendo 64? A Nintendo vai parir um gatinho se a gente abrir um jogo com uma mulher pelada!
- Quem falou em mulher?- ...- Então, pode?- Bem, é, o documento de regras que a Nintendo mandou cita especificamente mulheres...
Nosso peladão com uma bunda de 64 bits aí é Johnny Slater, um agente secreto do governo americano que tem seu banho seduzente interrompido para receber a missão de...
Johnny Slater não liga a minima em abrir a porta do seu apartamento peladão, mas seu chefe aparentemente liga muito já que o cara não faz a menor cerimonia em secar o Eustáquio do nosso herói!
Eu achei que já tinha visto todo tipo de coisa no mundo dos videogames nesses quase oito anos de blog, mas um jogo de Nintendo 64 que abre com um NPC manjando o badalo do nosso herói completamente hipnotizado é algo que eu definitivamente não podia esperar!
E essa é a cutscene que abre o jogo, eu apertei Start a menos de um minuto e já perdi totalmente no jogo hahaha. Até esqueci sobre o que era que eles estavam discutindo, alguma coisa sobre assassinar o presidente enquanto o badalo vai pra lá e pra cá ou alguma coisa assim.
Ah tá, lembrei, Johnny Slater é um clone infiltrado no serviço secreto para o plano de substituir o presidente por um clone também. Porém antes que o plano seja executado, ele é traído pelo que os japoneses entendem como personagem mais norte-americano de todos os tempos: ele é loiro com pele negra e pinturas de nativo-americano.
Nosso afro-nativoamericano surfista então é levado para a base subterranea dos conspiradores a força, afinal duneida ele decidiu atirar no cara para quem ele deveria estar prestando assistencia. Obviamente ele escapa, e assim começam as aventuras dentro da base secreta onde eram criados os hibridos alieníginas da conspiração para substituir o presidente dos US and A: o PARAÍSO HIBRÍDO!
Bem, agora que fomos devidamente introduzidos a essa nepomucenica obra desconhecida da Konami... vamos falar com mais calma sobre ela, sim? Isso pq, acredite ou não, houve uma época, há muito tempo atrás em uma galaxia muito distante, em que o nome “Konami” trazia hype no lugar de terror. Especialmente nessa época da década de 90, parecia que a empresa não conseguiria errar mesmo se quisesse: entre 1997 e 1999 a Konami lançou para o PS1 CASTLEVANIA: Symphony of the Night, METAL GEAR SOLID, DANCE DANCE REVOLUTION e SILENT HILL, só pedrada.
Infelizmente, fora das águas do PS1 a Konami não era tão impressionante assim. Verdade que aqui e ali eles acertavam com coisas como o melhor jogo de luta do N64, vulgo RAKUGA KIDS, mas mais sim do que não suas ofertas do N64 eram, em uma palavra, irregulares. Até mesmo seus jogos mais bem sucedidos como CASTLEVANIA ou GOEMON'S GREAT ADVENTURE, lutavam contra controles não tão estelares e traduções duvidosas. Suas entradas posteriores no console sofreram mais ainda com essa inconsistência e embora esse não tenha sido o último cartucho para o sistema, nada demonstra melhor esse período bizarro do que Hybrid Heaven.
Só que de eu explicar porque HH é tão estranho (além de ser um jogo que abre com um cara manjando o balanço do pirocoptero), suponho que eu precise explicar como ele surgiu. A Konami era (e ainda é) uma empresa bastante grande, e como tal possui várias equipes diferentes trabalhando em projetos diferenetes. HH foi criado pela Konami Computer Entertainment Osaka (KCEO), que na época não era nem de perto tão regular quanto a sua prima de Tóquio que produzia os citados jogos de PS1.
Na época, seu portifólio consistia principalmente em jogos esportivos (principalmente beisebol), os jogos da séries Mystical Ninja (esqusitos, mas okay) e coisas comoGASP!! Fighter NEXTream (ou "Deadly Arts" no ocidente) que... quanto menos for dito melhor. Ou seja, a Konami de Osaka não apenas não tinha a menor experiencia com um RPG de ficção científica, como o projeto era liderado por Yasuo Daikai, um homem que hoje tem décadas de experiência em produção, mas na época nunca tinha dirigido um projeto na vida.
Junte isso ao lançamento no final de 1999, quando a Konami já estava direcionando seus recursos principais para trabalhar no PS2 que viria em poucos meses e a estranheza de algumas escolhas de HH começam a fazer sentido, tipo o jogo ter um modo de alta resolução que só funciona se você tiver o Expansion Pack do Nintendo 64... mas que infelizmente vem ao preço de parecer que você está tentando rodar o jogo no Power Point de tão ruim que fica o framerate. Se HH faz várias escolhas assim que parecem muito que eles não sabiam bem o que estavam fazendo... é pq era justamente esse o caso.
HH é um dos cerca de 5 RPGs do N64 e o marketing queria deixar bem claro que você soubesse disso. Ele empurrou o ângulo do “RPG de ação”, bem como o cenário da cidade de Nova York na época do Natal porque tirar uma casquinha de PARASITE EVE... e embora ambos os atributos não esteja tecnicamente errados... tambem não são exatamente o que você esperaria deles.
Com isso eu quero dizer que, sim as cutscenes do jogo começam e terminam em Nova York, de fato, só que não existe um único segundo do gameplay em si que não se passe inteiramente dentro de uma instalação alienígena subterrânea. Com relação à parte do RPG, também é verdade que ele é tecnicamente um RPG, mas…
Olha, HH é um jogo bem estranho de se jogar, mas eu não digo isso de uma forma negativa. O combate é uma cruza entre VIRTUA FIGHTER e o sistema ATB de Final Fantasy. Isso quer dizer que as lutas consistem em esperar sua barra de ação encher, e quando ela enche você pode selecionar um comando - como em um RPG tipico. Só que cada comando é um golpe com os braços ou as pernas, e nesse caso importa muito o posicionamento do personagem para ver se pega ou não. Dependendo de onde estão as suas pernas e as do adversário, pode ser a diferença entre acertar um chute alto com a perna direita ou um chute na canela com a perna esquerda.
Existe também a opção de esperar a barra encher mais para encadear combos, às vezes até concedendo movimentos especiais se a sequência estiver correta. Seus oponentes seguem as mesmas regras que você na maior parte do tempo, fazendo com que as lutas pareçam mais ou menos um jogo de luta, só que através de um RPG de turnos - e esse jogo definitivamente executa o conceito bem melhor do que as tentativas anteriores que eu já vi disso, em THE KING OF FIGHTERS: Kyo e... meu senhor... HIRYŪ NO KEN S: GOLDEN FIGHTER
O sistema de agarrões funciona similar: você aperta R para agarrar o oponente - te deixando vulneravel o por alguns instantes para ser atacado, mas se o oponente estiver sem barra de ação ou apenas mosquear, você emenda agarrões ultradinamicos dependendo da posição que o adversário está em relação a você - sendo que os mais divertidos são os que pegam o cara no chão e dão chaves muito loucas.
A outra coisa que esse jogo tem um sistema de level up bem particular que melhora as partes do corpo individualmente. Se você quiser aumentar a força da sua perna direita, você precisa ir lá e chutar monstros na cúpula. Se você quer aprender a fazer com que socos no tronco causem menos dano, divirta-se transformando suas paletas em saco de pancadas.
O que é mais ou menos o sistema de level up usado em Final Fantasy 2, mas para cada um dos membros (mais o tronco) tanto para ataque quanto para defesa. Quer aumentar o dano de uma parte do corpo use ela para bater, quer aumentar a defesa de determinada parte use ela pra defender (não que você escolha quando usa o comando "Guard", é aleatório).
Levar um Skull Crushing Final de um xenomorfo não deixa de ter seu charme, tenho que dar isso ao jogo |
No final Slater termina praticamente um Terminator com vigas de ferro no lugar das pernas e eu tenho que dizer que realmente nunca joguei nada parecido e isso por si só é interessante. Então existem muitos elogios ao jogo por tentar algo novo... só que infelizmente algumas boas ideias não resolvem os problemas desse jogo.
Andar pela instalação do PARAÍSO HIBRIDO é o rifpoff de RESIDENT EVIL mais chato que você possa imaginar. Ande em em salas vazias, ocasionalmente pare para apontar sua zapper, exploda roombas, repita até chegar à próxima luta. Ao longo do caminho, o chão estará repleto de itens de cura em uma quantidade tão abundante que até quebra a dificuldade do jogo... e só. Essencialmente o jogo é isso: salas vazias, atire em roombas, luta de Virtua Fighter RPG contra monstros aleatórios, enxague e repita pelas próximas 20 horas.
Se eu não pareço particularmente radiante com essa ideia, em grande parte é porque HH recicla conteúdo impiedosamente durante suas longas 20 horas: não existem mais que 5 musicas, quase tão pouca variedade de inimigos quanto e, pior ainda, vc tem que jogar as mesmas fases duas vezes. Isso pq o objetivo do nosso herói é ir até o fundo do Hybrid Heaven... e depois voltar. O que significa que depois da area 5 (de 9), a segunda metade do jogo é só uma repetição dos mapas da primeira metade, só que você faz o caminho contrário e tudo está em chamas e alguns caminhos desabaram, mas nada muito louco.
Não que ter mapas "novos" na segunda metade do jogo tornaria tudo muito mais interessante pq tudo o que você faz em cada zona é passear, travar algumas brigas e, eventualmente, encontrar uma máquina que atualizará seu cartão-chave para que você possa abrir uma porta para o progresso. Pra vc ter uma ideia, a última área antes da luta com o chefe final é literalmente apenas 3 salas idênticas com 3 portas separadas idênticas, cada uma das quais exige que você atualize seu cartão-chave para abri-lo fazendo backtracking lá na puta que pariu. E eu te garanto que fazer isso é tão divertido quanto a descrição soa, pq o único objetivo do level design desse jogo é te fazer gastar tempo.
Tirando a introdução, eu não me aprofundei sobre o enredo até agora... o que não é um bom sinal para um RPG. Em grande parte, isso se deve ao fato de que a história é totalmente divorciada da jogabilidade: você anda em dungeons aleatórias até que rola uma cutscene, mas nada parece conectado, tem impacto ou relevância. A história simplesmente acontece ao seu redor, com personagem após personagem monologando em torno do protagonista quase silencioso.
Ajuda menos ainda que ela quase não faz sentido graças à escrita desarticulada e à tradução deficiente. A ideia geral da coisa é bastante THE X-FILES, aliens estão tramando assumir a presidencia dos EUA (como se fosse dificil ser eleito, vide o Trump) através de substituir pessoas chave no governo por clones hibridos humanos/aliens.
Você é um hibrido que participava desse plano, até que se revoltou e sabotou a tentativa lá do começo do texto... aí você é jogado de volta na base dos hibridos, mas na verdade vc era humano que passou por uma lavagem cerebral pra acreditar que era um hibrido pq... hã... bem... e na verdade vc era o original do cara que vc matou na cutscene de abertura e não um indio negro surfista... e... então o original do cara que você matou quer se vingar de vc pq... hm, então você ajuda os ETs Bilus da base que não são maus, apenas um deles que é e liderou toda essa operação... mas o ETs Bilus não podem te ajudar pq... eles não tem capacidade de combate, mas aquele que liderou toda operação é um deles e tem...
Enfim, como dá pra ver a história não é lá essas coisas e foi traduzida com menos tesão ainda, então não espere nada realmente disso. O único momento realmente memorável do jogo é quando um experimento híbrido gigante que os advogados da Konami insistem que de forma alguma é baseado no xenomorfos de Alien te persegue pelos corredores por razão que um dos hibridos da base decidiu ir full jogos morais com vc pq... hã... hibrid-stuff, i guess?
Enfim, o jogo é uma perda de tempo colossal sempre que você não está lutando, e você gasta MUITO tempo fazendo coisas que não são chutes violentos. E honestamente, o combate é interessante, mas não TÃO interessante assim pra sustentar sozinho 20 horas disso - talvez a Konami tenha perdido a parte que normalmente RPGs tem histórias porque largar o jogo todo nas costas do combate carregar não funciona em um jogo com pelo menos duas dezenas de horas, por melhor que seja o seu combate.
O termo “perola escondida” é usado direto em jogos retrô hoje em dia. Tende a ser usado menos para descrever jogos que até são mecanicamente gostosinhos mas que passaram despercebidos, e mais para dizer “jogo que é okayzinho e que não vendeu um milhão de cópias”. É preciso algo original, algo estranho, algo realmente ótimo, mas esquecido para que o rótulo seja aplicado. É por isso que não tem como, em sã consciência, chamar HH de perola escondida.
Claro que está escondido nas areias do tempo dos videogames e com certeza tem algumas ideias verdadeiramente originais, mas a grande verdade é que os pontos fortes do jogo são sua abertura intrigante com bilongas hipnóticas, e um sistema de combate interessante - mas não 20 horas interessante. Você poderia pegar esses conceitos e fazer um bom jogo com eles, talvez aos moldes de PARASITE EVE se eles realmente queriam ir por essa pegada... mas não é o que foi feito aqui. Hybrid Heaven é um jogo meio chatinho que foi esquecido pela história por uma boa razão
MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 138 (Abril de 1999)
EDIÇÃO 064 (Julho de 1999)