O ano de 1998 é frequentemente citado como o mais influente da história dos videogames, e vendo o lineup de jogos do final daquele ano realmente não é dificil entender da onde isso vem: no natal do ano de nosso Senhor de 1998 tinhamos opções de jogos como METAL GEAR SOLID, SPYRO THE DRAGON, THE LEGEND OF ZELDA: Ocarina of Time, GRIM FANDANGO, STREET FIGHTER ALPHA 3... pra onde você olhasse, era só tijolada pra escolher. Porém se você prestar realmente atenção nas listas de melhores jogos daquele ano tão importante, um nome aparece também com uma frequencia periclitante: meia-vida.
Aí, aqui estamos nós em 2024 e você que nunca tinha sequer visto esse tal de "meia-vida" fica curioso e vai jogar o jogo... apenas para descobrir que ele parece ser um FPS relativamente normal. Você coça a cabeça confuso, "tá, não é um jogo ruim, mas... o que ele tem de especial? Parece um jogo de tiro em primeira pessoa comum, qual que é o negócio?"
E eu te direi que o negócio, meu caro amigo imaginário nascido da minha absoluta falta de contato humano, é que Half-Life é uma daquelas coisas que você precisa entender o contexto da época e especialmente como as coisas eram feitas antes e passaram a ser feitas depois dele. Dizer que "Half-Life" é "só um jogo de tiro" é o mesmo que dizer que Watchman é "só uma HQ de super heróis" ou Dragon Ball Z é "só um anime de lutinha". Tecnicamente não está errado, mas então vc realmente precisa entender como as coisas eram antes dessas coisas e pq essas obras mudaram para sempre os seus generos/midias. Hoje, eu vou explicar pq Half-Life é tão importante.
Vamos lá, pegue um FPS padrão em 2024 e vamos ver o que encontramos aqui: um level design mais ou menos direcionado (é realmente dificil "se perder", quando foi a ultima vez que você viu um FPS com "mapa da fase"?) em que o tempo do jogador é ocupado com ou ação ininterrupta, ou NPCs desenvolvendo um cenário, em alguns casos até mesmo contando uma história (e alguns casos realmente raros, até mesmo uma história ambiciosa). Os inimigos tem uma certa IA e de modo geral vc sente que está progredindo no jogo em direção a algum objetivo ou lugar. Seja Halo, Call of Duty ou Medal of Honor, é mais ou menos isso que vc encontra. Todo mundo comigo até aqui? Ótimo.
Agora... corta pra 1996 e você vai ver que os jogos de tiro em primeira pessoa eram absurdamente diferentes a um nivel conceitual. Essencialmente o level design é um labirinto, vc precisa encontrar chaves (normalmente 3, de cores diferentes) escondidas sabe lá Cthullu onde, e muito do seu tempo vai ser andando em silencio em corredores vazios se batendo com o level design do labirinto. A IA dos inimigos simplesmente inexiste, quando vc entra no range de ativação do mob ele corre pra cima de vc atirando e é mais ou menos até onde vai. O jogo não tem muito um senso de progressão narrativo e se vc pegar os mapas de um labirinto e apenas trocar as texturas das paredes eles podem se encaixar em qualquer jogo.
E isso é apenas uma simplificação grosseira, meu ponto é que como dá pra ver tirando que a camera é em primeira pessoa parecem generos inteiramente diferentes na própria forma que eles são pensados. Mesmo quando os jogos de tiro em primeira pessoa passaram do falso 2D (que imitava 3D) de DOOM e seus clones, para builds em poligonos 3D como QUAKE ou TUROK: Dinosaur Hunter, muito pouco mudou conceitualmente. Então a questão que realmente cabe ser feita é: em que ponto, exatamente, os jogos de tiro em primeira pessoa deixaram de ser alguma variação labirintica de DOOM e passaram a ser os designs focados em ação que conhecemos hoje?
Ao se fazer essa pergunta, agora você começa a entender o quanto Half-Life mudou as regras do jogo.
Considere então que, na época em que HL1 foi lançado, o auge do gênero era QUAKE 2. Um ótimo jogo por si só, e a engine GoldSrc é até usada em Half Life. No entanto, QUAKE 2 é um jogo inteiramente baseado em combate. E quando digo inteiramente, quero dizer inteiramente MESMO. Tirando uma cutscene no começo, não tem muita história, nenhum diálogo, nenhum NPC e nenhuma IA. Você recebia uma arma básica no início do jogo e continuava atirando em tudo que se movia até o jogo terminar. Era assim que os FPS rolavam na época.
Então, como algo semelhante ao monolito negro de 2001: Uma Odisseia no Espaço, Half Life entra em cena e exemplifica o que um FPS poderia vir a ser. O jogo não começa com você aparecendo em uma sala com uma arma, mas lentamente você vai descendo para dentro da instalação e vê as ações do dia a dia de Black Mesa. Detalhe: não é uma cutscene, as coisas estão acontecendo em tempo real na engine do jogo, com efeito vc não perde o controle do personagem e nem precisa olhar se não quiser - mas azar o seu, o mundo vai continuar fazendo as suas coisas tendo a sua atenção ou não. E na verdade, você nem começa com uma arma!
Quando você chega na instalação de pesquisa da Black Mesa os NPCs falam com você (pelo nome, nada menos) e aparentemente estão cientes de sua presença. Eles direcionam você para pontos no jogo, fornecendo exposição e contexto - tudo sempre rodando na engine do jogo, vc não apenas não precisa ouvir como se quiser apenas dar um tiro na cara deles enquanto eles falam nada vai te impedir.
A pira do jogo é que um acidente (ou não) acontece e por alguma razão aliens interdimensionais tomam a instalação. Seu plano inicial é fazer seu caminho até a superficie e dar o fora dali, e para esse proposito Half-Life não tem "fases" e com certeza não tem os labirintos dos antigos FPS, o jogo é uma jornada mais ou menos guiada pelos corredores e depositos de uma Black Mesa atulhada não apenas de aliens, mas posteriormente militares que estão ali para fazer a queima de arquivo e enterrar todas as testemunhas nas profundezas da terra - o que inclui você, claro.
Toda area do jogo em um único mapa |
Então aqui HL faz uma troca: ao invés de te dar um labirinto para você ficar se batendo por umas duas horas a cada fase, aqui você tem um caminho mais ou menos linear abarrotado de inimigos e situações diferentes a cada tela. O desafio é muito menos passar horas caminhando tentando encontrar onde ir e mais abrir seu caminho no tiro porrada e bomba sala por sala. O fato que os jogos de tiro usam esse modelo até hoje é uma boa dica de qual formula os jogadores curtiram mais.
Tem que ser observado, entretanto, que a Valve entendeu perfeitamente como criar um ritmo inteligente. Ao longo do jogo, não é apenas monstro atrás de monstro: o jogador fazia pausas nos tiroteios por meio de quebra-cabeças, desde enfrentar armazéns com armadilhas até desativar equipamentos de laboratório com defeito. Esses segmentos oferecem pausas valiosas que impedem que o jogo se torna cansativo, pq ação no talo sempre também exauri o jogador.
E com efeito, a Valve tomou a decisão de fazer o que podia para reduzir ou eliminar os tempos de loading do jogo o máximo que podia para nunca quebrar a sensação que vc está andando em um único ambiente interligado, não "fases". Os FPS até esse ponto tinham um "nível" claramente definido - você entrava de um lado, trabalhava que nem um cão para chegar no fim e era apresentado a uma tela de carregamento conforme o próximo nível era carregado. Half Life optou por um mundo contínuo. O jogo essencialmente "pausa", com uma mensagem "Carregando..." e 3 segundos depois você esta se movendo novamente. O jogo não carrega um "nível" completamente novo para conseguir isso, até porque isso não existe aqui, ele carregava progressivamente o trecho da instalação que os desenvolvedores sentiam ser necessário.
A festa na firma noite passada foi louca, heim |
Porém não é apenas no level design que HL rompe completamente com os antigos FPS, tem uma questão tão importante quanto: a IA é surpreendentemente avançada para a época. Civis se encolhem de medo quando confrontados com perigo, soldados inimigos montam armadilhas e tentam te flanquear , e algumas das bestas alienígenas mais idiotas até tirariam uma soneca ou saem para comer um lanche se houver um cadáver por perto. Baratas são atraídas por objetos "fedorentos" e se dispersam se expostas à luz. Os escravos Vortigaunt fogem para salvar suas vidas se você os machucar — eles não querem morrer — tornando-se os primeiros personagens de IA em um jogo de tiro programado não apenas para ter um padrão de ataque, mas também uma vontade. Como dá pra ver, a IA é absurdamente sofisticada para a época.
Isso, é claro, para não falar dos próprios NPCs da instalação: até então, ninguém pensava em incorporar NPCs por qualquer outro motivo além de dar a você algo para matar (fora das missões de escolta, que felizmente não existem nesse jogo). Em HL, você conhece centenas de funcionários da Black Mesa, alguns lhe dão itens ou abrem portas, mas a grande maioria existem principalmente para enfeitar o cenário, passar instruções ou mesmo apenas para serem comidos para demonstrar as capacidades ferozes da próxima grande ameaça.
É realmente impressionante como a Valve guardou mecanicas e inimigos novos para usar só nos ultimos 10% do jogo, especialmente quando eu lembro que eu já joguei coisinhas como SOUTH PARK que nem para colocar dois inimigos diferentes na fase eles se prestavam |
Todas essas rotinas de programação se juntam para fazer de Black Mesa um mundo vivo e pulsante, em uma época que os FPS eram labirintos desertos, e isso se deveu em grande parte à IA que foi projetada principalmente para parecer organica.
Claro, você pode argumentar que a história de Half-Life não é particularmente estelar (no jogo mesmo não é muito desenvolvido para além de "houve um acidente de laboratório, dê o fora, o governo pode ter algo com isso") e que muitos dessas qualidades que eu descrevi já foram vistas espalhadas aqui e acolá em jogos como 007 GOLDENEYE ou mesmo SHOGO: Mobile Armor Division (não que três pessoas além de mim lembrem desse jogo), mas eu não estou afirmando que HL "INVENTOU" essas coisas, e sim que foi quando tudo isso foi realmente juntado pela primeira vez em um produto bem polido e disse "escuta, DOOM foi legal e tal... mas isso foi a cinco anos atrás, agora é isso que realmente dá pra fazer com um jogo de tiro".
E assim Half Life se tornou o padrão que é seguido até hoje no genero, simples assim.
Com efeito, todas essas que Half Life fez foram tão adotadas e usadas em tantos jogos desde então, que se você pegar o jogo sem entender o contexto nenhuma delas vai parecer mais especial ou mesmo interessante. É como ter um amigo na casa dos 20 e poucos anos que só recentemente viu os filmes de Star Wars e ele não entender por que as pessoas dão tanta atenção pra essa franquia: da perspectiva dele, tudo o que Star Wars faz é algo até meio cliché, no minimo óbvio. Para quem conheceu Star Wars em 2024, essa pessoa não vai achar tão especial pq ela cresceu apreciando as coisas que Star Wars fez pelo cinema antes de ver a origem do que lhe deu essas coisas.
Half-Life é exatamente isso, sob muitas formas o primeiro dos jogos de tiro em primeira como entendemos o genero hoje. Então toda vez que um Grunt entrar em pânico e fugir de você em HALO, toda vez que seu comandante o chamava de lado para lhe dar uma ordem em CALL OF DUTY, toda vez que você aprender sobre a história de Rapture por meio de um dos registros de áudio do BIOSHOCK, tudo isso é graças ao dia que Gordon Freeman e seu pé de cabra tiveram um dia muito, muito ruim no novo emprego.
MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 162 (Abril de 2001)
MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
EDIÇÃO 059 (Fevereiro de 1999)