Suponho que a esse ponto eu não precise realmente apresentar Steven Spielberg, grande cineasta, conhecido por alguns dos filmes mais memoraveis da história do cinema como Jaws, ET e Jurassic Park. Pelo que Estevão da Massa é menos conhecido, entretanto, é que ele tem um dedo sexual para videogames: ele fode tudo que toca.
A história do desastre do jogo de ET para Atari é bem documentada (embora o jogo MUITO ruim, não é tão ruim quanto se diz também), porém um caso mais pitoresco é a infame desventura conhecida como "The Dig". Vamos então nos aprofundar nesse buraco... pq "Dig"... sacaram? Hã? Hã?
Humor y Piadas, gente.
A Cavada é um daqueles projetos de entretenimento cuja longa e tumultuada história torna a história da coisa mais interessante do que o próprio produto final. Não que o jogo final seja catastroficamente ruim, apesar de ser apontado frequentemente como o pior point'n click da Lucas Arts... bem, o pior da Lucas Arts ainda é bastante decente. E pessoalmente eu odeio muito mais SAM & MAX HIT THE ROAD: The Dig comete o pecado de ser chato boa parte do tempo, mas ao menos não é um daqueles PnC cuja solução dos puzzles é "supermercado não voa pq banana não tem caroço". Mas bem, suponho que devemos começar essa história do começo.
A produção desse jogo iniciou em 1989, e foi interrompida e reiniciada repetidamente em nada menos que três versões diferentes de si mesma antes de finalmente ser lançado em 1995 (tornando-se a produção de aventura mais longa da história do estúdio) - marcando o que muitos chamam de fim da era de ouro da Lucas Arts. Sim, verdade que hoje um jogo passar 6 anos em desenvolvimento... não é o que se chama de rápido, mas também não é nada anormal. Porém em 1989 em que jogos eram programados por meia duzia de caras em alguns meses... bem, levar 6 anos é pq algo errado não deu certo nessa história.
A ideia original para The Dig veio de, como eu já disse, Steven Spielberg, que concebeu uma premissa para usar como enredo para sua série de televisão Amazing Stories. Em poucas palavras, a ideia era Treasure of the Sierra Madre encontra Forbidden Planet - uma história envolvendo uma equipe de astronautas que acabam em um planeta alienígena abandonado e lutam tanto em sua crescente desconfiança um pelo outro quanto contra o ambiente perigoso em seus esforços para sobreviver e possivelmente escapar.
Por razões logísticas e orçamentarias, a história nunca chegou às televisão (nem à telona, uma possibilidade isolada que havia sido comentada em algum momento), mas Spielberg decidiu levar a ideia para o estúdio de videogame do seu amigo George. Spielberg sempre foi um grande fã de videogames, e os veteranos da LucasArts contam que Spielberg não apenas ligava pedindo dicas para eles como ia ao estúdio para ver no que os desenvolvedores estavam trabalhando com mais frequência do que o próprio Lucas.
Seja como for, uma equipe foi designada para construir um point'n click a partir da ideia básica de Spielberg em 1989. Após alguns ajustes (entre as ideias de jogabilidade propostas estava a inclusão de elementos de sobrevivência como a necessidade constante de comida e água) ... eles viram que não iam conseguir fazer essa proto-ideia de survival game funcionar e essa encarnação de The Dig foi arquivada. ´
Pelos próximos seis anos, por várias vezes The Dig foi desencavado (olha eu de novo aí) e trabalhado por algum tempo antes dos desenvolvedores concluírem que aquele jogo não ia funcionar - não sem a Lucas Arts parar o que estava fazendo e começar do zero com The Dig, pelo menos. E como você pode imaginar, um estúdio está sempre fazendo alguma coisa, então parar seus outros projetos para começar do zero uma ideia que não estava funcionando seria ... problemático.
O que pega, entretanto, é que Spielberg estava muito interessado em ter a sua ideia transformada em um jogo... e não apenas ele é fucking Steven Spielberg, como ele é amigo pessoal do chefe George Lucas. Então por capricho do Estevão, The Dig continuou sendo levantado da cova várias e várias vezes até que o próprio dono da porra toda interveio e disse "tá bom, enchi o saco dessa merda, vocês tem seis meses para lançar esse jogo e encerrarmos esse assunto para sempre". E foi mais ou menos assim que começou a corrida contra o tempo para a produção de The Dig, o que possivelmente poderia dar errado em um cenário desses, né?
Bem, a história do jogo é bastante familiar devido a alguns filmes que foram feitos DEPOIS do jogo: um observatório espacial em Bornéu descobre que um asteroide chamado Átila está em rota de colisão devastadora com nosso planeta. A NASA imediatamente monta uma pequena equipe na tentativa de mudar o caminho da trajetória para fora do caminho da Terra através da colocação calculada de dois pequenos explosivos nucleares.
Eu gosto bastante da introdução desse jogo, que mostra a equipe que será enviada ao asteroide através de uma conferencia de imprensa que passa bem a ideia de qual é a personalidade desses personagens e quais os pontos de tensão que podem surgir entre eles. É um setup muito bom.
Assim que o jogo começa você tem um pequeno tutorial onde as cargas são colocadas e detonadas. Após isso é que o jogo REALMENTE começa: o seu personagem, o comandante militar Boston Low revela aos outros dois membros de sua equipe de desembarque (a jornalista independente/especialista em linguística Maggie Robbins e o arqueólogo alemão Ludger Brink) que um segundo objetivo da missão é investigar o asteroide em busca de evidências de origem alienígena. O que explica pq eles trouxeram uma linguista e um arqueologo para explodir um meteoro.
Ao explorar o interior oco do asteroide, nossos heróis se deparam com uma construção metálica que acaba se revelando uma nave que a equipe inadvertidamente ativa, e os três astronautas acabam em outro sistema solar no terreno desolado de um planeta aparentemente abandonado com qualidades semelhantes à Terra (como atmosfera, gravidade e ar respirável), mas que de outra forma é menos convidativo devido ao seu estado de decadência e abundância de perigos. Visualmente o planeta lembra um pouco a aridez alienígina de OUT OF THIS WORLD, e isso é uma coisa boa.
Ao procurar um meio de voltar para casa ou pelo menos sobreviver em um planeta que não parece ter nenhuma fonte de comida, o arquelogo Brink morre em um acidente de escavação quando o chão cede, deixando Low e Maggie sozinhos para explorar os restos do que era evidentemente uma civilização de seres tecnologicamente avançados que parecem ter desaparecido inteiramente. Eles descobrem uma biblioteca holográfica, misteriosos guias fantasmagóricos e máquinas avançadas - algumas ainda funcionais como bondes esféricos que os personagens usam inicialmente para se locomover pelo planeta.
Ainda no começo do jogo, Low se depara com um estoque de cristais verdes de "vida" que ressuscitam com sucesso Brink... embora não se possa dizer que a criatura progressivamente mais obsessiva e paranoica após ser ressuscitado seja a mesma pessoa... ou sequer ainda seja uma pessoa, já que eles literalmente usaram tecnologia alienígena que eles não fazem a mais remota ideia do que seja ou quais suas consequências.
Então esse é o cenário inicial de The Dig: um mundo que tem um mistério intrigante a ser resolvido, possibilidade de aventura ao estilo Indiana Jones com ruinas a serem exploradas e até mesmo terror ao estilo "O Enigma de Outro Mundo" com um companheiro de equipe possivelmente infectado com alguma coisa alienígena. Setup muito rico e interessante para explorar em um point'n click, certo?
Certo... ou pelo menos seria se a Lucas Arts fizesse alguma coisa essa premissa. Devido aos problemas de desenvolvimento no projeto e o pouco tempo para fazer as coisas, o problema é que o jogo acabou sendo apenas uma coleção de puzzles (de qualidade altamente questionaveis, mais sobre isso daqui a pouco) sem muita narrativa ligando eles. The Dig está muito mais perto do tenebroso THE LEGEND OF KYRANDIA: BOOK ONE - FABLE AND FIENDS do que o excelente FULLTHROTTLE da Lucas Arts lançado apenas meio ano antes. Diabos, ele está muito mais para MYST ( embora não tão ruim, claro) do que um jogo da Lucas Arts...
O jogo tem uma primeira meia hora interessante que estabelece os parametros, mas dali pra frente muito pouco acontece e o que acontece não é muito bem escrito - não para o padrão de qualidade que nos acostumamos a esperar da Lucas Arts, pelo menos. Isso seria atenuado se os puzzles fossem divertidos, mas isso é a última como com a qual alguém os descreveria: eles são, de longe, a pior coisa sobre o jogo.
Os quebra-cabeças da LucasArts são obscuros na melhor das hipóteses, mas aqui parece que eles realmente nem estavam tentando. Embora encolher um suéter em uma secadora por 200 anos para descongelar um hamster congelado em MANIAC MANSION: Day of Tentacle fosse ridículo, pelo menos estava amarrado à tonica cartunesca do jogo e casa. The Dig é um pântano confuso de orbes, cristais e máquinas alienígenas estranhas que farão com que você só consiga resolver os puzzles através de muita tentativa e erro.
Tá, okay, é uma tecnologia alienigina e a intenção é ser um arqueólogo decifrando a cultura enigmática de uma civilização alienígena perdida. Não é para fazer sentido para humanos, eu entendo... e não é completamente aleatório como SAM & MAX HIT THE ROAD... mas não tem como negar que é muito chato ficar apertando botões e cristais aleatoriamente pra ver se acontece alguma coisa.
E se os puzzles que cobrem 70% do jogo são chatos - para colocar simplificadamente - a conclusão da história não é realmente muito melhor que isso. Como tantas histórias ambiciosas de ficção científica, The Dig desmorona no final. Todos os mistérios do planeta são explicados em uma única conversa, e isso se torna muito menos interessante como resultado. É o mistério que torna o jogo atraente, e perdê-lo me deixou um pouco vazio. Não é que as ideias por trás do jogo sejam ruins, mas se for para se executado da forma rushada que foi então era melhor deixar as respostas em aberto.
Geez... se o gameplay é chato e a narrativa é fraca, esse jogo tem alguma qualidade pelo menos? Algumas. Sua interface, como a do FULLTHROTTLE, é bastante simplificada e não apresenta verbos na tela, simplicando para apenas clicar no lugar e o personagem já fazer a ação adequada - o que é bom. O inventário também é acessado por um clique com o botão direito, e não existe combinação de itens no inventário, o que torna esse jogo bem simples de se jogar (e que é como os Point'n click fazem até hoje, sinal que esse era o caminho certo).
Outra coisa interessante é que esse jogo foge bastante do estilo habitual da Lucas Arts: diferente de tudo que o estudio fez, ele praticamente não tem humor. E quando tem alguma piada é mais um personagem sendo sarcástico e cuzão do que para ser engraçado realmente. The Dig é um jogo com um clima pesado e algumas cenas até bem fortes, como um personagem tendo que serrar a própria mão ou criaturas sendo ressucitadas e mortas repetidas vezes.
Uma coisa frequentemente dita é que este jogo adquiriu a reputação de ovelha negra da Lucas Arts justamente porque não é tão cômico quanto seus antecessores, do que eu discordo. Embora certamente tenha aspirações diferentes de jogos como THE SECRET OF MONKEY ISLAND ou FULLTHROTTLE, eu argumento que não é a relativa falta de humor do jogo que o faz se destacar como talvez de menor calibre do que outras produções da empresa. Qualquer direção pode ser bem-sucedida desde que seja bem feito, mas a narrativa e o gameplay de The Dig são essa coisinha que eu descrevi acima.
E não ajuda muito que a dublagem do jogo, tirando Robert "T1000" Patrick que dubla o protagonista, parece que todos envolvidos tomaram três litros de antidepressivos antes de começar a gravar e a esse ponto são fisicamente incapazes de demonstrar qualquer emoção. Ouvir personagens que estão supostamente lutando por suas vidas falarem com a emoção de quem vai cair na cama e apagar não é exatamente um trabalho estelar...
Agora, apesar de todos os seus problemas, A Cavada foi um sucesso comercial da Lucas Arts, e não é muito dificil entender o porque: ao mesmo tempo em que se começava a dizer que os videogames superariam o cinema dentro em breve (o que hoje é verdade financeiramente, embora a questão artistica ... a gente chega lá), a grande verdade é que toda publicidade que cercava The Dig apontava com clareza impiedosa o quão rasos era essa bravata e quão profundo o complexo de inferioridade dos jogos realmente era: o nome de Spielberg era garantido para aparecer no primeiro parágrafo de cada anúncio, prévia ou, eventualmente, review. “Steven Spielberg está se dignando a mostrar interesse em uma coisa como videogames!”, era a mensagem implícita.
E não estava errado, não em 1995 pelo menos. O nome de um dos maiores diretores dos anos 90 (especialmente no ano seguinte a Jurassic Park) vendeu mais de 300 mil cópias que se fosse deixado por seus próprios méricos dificilmente venderia 1/10 disso.
Deve-se dizer também que o hype gerado pelo nome do Spielberg foi um bem desproporcional à sua contribuição real. Depois de fornecer a ideia inicial para o jogo - uma ideia que seria transformada além de todo reconhecimento quando o jogo foi lançado - Spielberg continuou a se colocar disponível para consultorias ocasionais: nos anos que o jogo ficou no agoravai-éarquivado, ele se encontrou com a equipe para quatro sessões de brainstorming, duas das quais também incluíram seu amigo George Lucas, ao longo de cerca de dezoito meses.
E enquanto é claro que muito da influencia de Spielberg fez esse jogo um dia sair do papel e sua paixão pelo projeto é inegavel, porém é menos claro qual foi sua contribuição real para o jogo em si. Nem Spielberg nem Lucas são, para dizer o óbvio, designer de jogos e, portanto, tendiam a se concentrar em coisas que poderiam render filmes assistíveis, mas eram menos úteis para fazer um jogo jogável.
Enfim, o meu ponto com essa review é que um Point'n Click precisa ser, antes de qualquer coisa, uma experiencia agradavel para se jogar por algumas horas e The Dig falha nesse teste. Em um esforço para criar personagens “dramáticos” (algo com que a Lucas Arts não tinha experiencia), ele cai na armadilha de simplesmente tornar seus protagonistas desagradáveis.
Todos eles são clichês ambulantes: o sempre cool homem branco que resolve todos os problemas mesmo não tendo as qualificações pra isso, a mulher que é supercapaz mas precisa lembrar a cada 5 minutos que é capaz apesar de ser subestimada por ser mulher, o arrogante cientista alemão que se transforma no vilão da coisa.
O diálogo é chocantemente desajeitado, cheio de recauchutagens cansadas de frases de filmes de ação, e como eu disse, a dublagem que parece que foi gravada com três meses de salários atrasados - mesmo Robert Patrick, que é de longe o melhor ator dessa bagaça, se aproxima de uma civilização alienígena desconhecida do outro lado da galáxia com todo o entusiasmo de um critico da Folha de São Paulo de barriga cheia lendo em voz alta um cardápio do McDonald's. E os puzzles não serem melhores que a atuação ou escrita definitivamente não faz favor nenhum ao jogo.
E no final de The Dig, a resolução do mistério alienígena é tão banal quanto sem sentido, um 2001: Uma Odisseia no Espaço depois da lobotomia. Definitivamente não é “uma história profunda na qual a exploração da emoção humana desempenha um papel tão importante quanto a exploração de um mundo de jogo”, como o marketing da LucasArts tinha prometido
The Dig é uma ideia que já não era espetacular para começo de conversa (tanto que veio de um episódio pra TV da série fracassada do Spielberg, e não um grande filme que virou jogo como o marketing do jogo quer que o nome dele faça você pensar), e após anos sendo revirada de ponta cabeça por diferentes equipes com diferentes visões... sua versão foi montada de forma funcional, mas nem sempre bem, e nunca com inspiração. E assim acaba sendo a única coisa que um jogo nunca deveria ser: é meio... bem, bastante chato.
MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
Edição 053