domingo, 6 de dezembro de 2020

[PC] SAM & MAX: Hit the Road (Novembro de 1993)[#576]



Em 1994, a Lucas Arts estava toda e não estava prosa. Não que eu faça ideia do que isso significa, mas eu gosto dessa expressão de qualquer jeito. O que eu quero dizer é que enquanto sua competição com a Sierra no genero dos Point’n Clicks era ferrenha no mercado dos nerds chatos de computador que adoram dizer coisas com “mas tecnicamente...” e fazer um discurso de três páginas sobre porque Star Trek contém ciência de verdade, para com o público mais casual que só queria um jogo para se divertir essa competição sequer existia.

 Os jogos da Lucas Arts eram coloridos, engraçados, faceis de jogar e o jogo não te punia a cada clique (tipo ter que começar o jogo todo de novo porque a três horas atrás você esqueceu de clicar no pixel 428A antes de avançar de tela), enquanto os da Sierra tinham um visual lavado e eram impossíveis de serem jogados a menos que você fosse esse cara:


 Ergo, a Lucas Arts estava num strike de sucesso inacreditável. Tão a frente da sua concorrente que, inevitavelmente, isso os levou a fazerem o seu pior jogo até então porque no fim o que realmente te mata é ela, a arrowgansia!

 Mas vamos começar do começo...

Ah, desenhar as Filipinas sem nenhum material de referencia IS TIGHT!

No começo dos anos 90, Steve Purcell era um dos mais proeminentes artistas da Lucas Arts e por “proeminente” eu quero dizer que quando você pensa no visual dos jogos deles daquela decada você está automaticamente pensando na arte dele. Especialmente na série Monkey Island, na qual ele foi diretor de arte da porra toda, então ele tinha grande moral dentro do estúdio. Moral (que resultou em contatos) que ele manteve até hoje, já que atualmente ele é mais conhecido por ter sido roteirista e diretor de Valente.

 Mas então, após o excelente O DIA DO TENTÁCULO, a Lucas Arts estava pensando em qual seria seu próximo jogo... quando Purcell levantou o fato que ele tinha sua própria revista em quadrinhos indie, e que os personagens seriam perfeitos para um Point’n Click da Lucas Arts.

Nós não falamos sobre o acidente, nunca.

Sam é um cachorro de 1m80 que veste terno e chapéu e se descreve como “um policial freelance”, e Max é descrito como uma “coisa hipercinética parecida com um coelho”. Os dois moram em Nova York, e trabalham num escritório caindo aos pedaços. Muitos casos investigados pela dupla comum com uma ligação do Comissário, personagem que nunca aparece e informa à dupla onde é o problema da vez. Esse “onde” pode ser o bar da esquina, o Antigo Egito ou mesmo a Lua. As histórias de Sam e Max são uma mistura de cartoon com paródia de detetivesco noir, então não é totalmente fora de propósito eles resolverem um crime com Max fazendo uma bigorna cair na cabeça do vilão enquanto Max comenta cinicamente o quanto isso é uma solução forçada para a narrativa.

 E esse é o primeiro problema que o jogo de Sam e Max apresenta, um bem grande: obviamente que o criador do jogo estava totalmente familiarizado com esses personagens e com esse cenário, afinal foi ele que criou os quadrinhos também. E claro que a equipe de produção também, afinal eles trabalham com o cara então é natural que eles conhecessem Sam e Max. O problema foi que não pareceu ter ocorrido a nenhum dos envolvidos

Excemplo, para conseguir dinheiro vc tem que usar "pegar" na toca de rato. Pq? Pq é uma piada recorrente nos quadrinhos que os ratos do escritório sempre roubam as coisas deles, mas para quem não acompanha é apenas... aleatório.

O resultado é... estranho. Veja, não é como se você não pudesse entender o jogo sem conhecimento prévio do material porque isso é um point’n click de 1994, não literatura russa, mas a sensação que você está pegando um episódio pela metade é bastante grande. O jogo não gasta muito tempo apresentando os personagens e apenas é repleto demais de piadas internas e o que claramente são esquetes recorrentes que não fazem sentido para quem não acompanhava os quadrinhos dos personagens.

 Isso se observa bastante, por exemplo, na interface do jogo. Ao contrário dos menus clássicos de “look, take, use, give, etc”, esse jogo tem apenas icones que não são intuitivos. Se você está familiarizado com os personagens e como o humor de Sam e Max funciona, você meio que entende o objetivo dos icones e saberia vagamente o que Sam iria perguntar, mas para qualquer um que está conhecendo a série agora (o que é a grande maioria das pessoas, realmente), então os icones são apenas aleatórios e você tem que usar todos em tudo pra ver se alguma coisa acontece - o que é a maneira mais porca de jogar um point’n click.

Isso não quer dizer que o jogo não seja ocasionalmente engraçado, especialmente quando explora o ponto forte da dupla que é o fato que Sam é um coelho sociopata e Max é um detetive noir que não se importa realmente. Vez ou outra o jogo me fez rir com seu senso de humor deturpado, como quando eles estão com uma bomba nas mãos e Max pergunta o que fazer com ela

Sam: Max, where should I put this so it doesn't hurt anyone we know or care about?
Max: Out the window, Sam. There's nothing but strangers out there.

O jogo tem momentos bons assim, mas na maior parte do tempo apenas parece que eles estão fazendo ou dizendo coisas random because random e isso é bem menos engraçado.

Enfim, nesse primeiro jogo de Sam e Max (e único por mais de uma decada, S&M nunca ganhou outro jogo até se tornar território da nostalgia), nossos heróis tem que resolver acontecendo no circo. Bruno, o Pé Grande, desapareceu e sequestrou Trixie, a Garota do Pescoço de Girafa. Os proprietários estão ansiosos para que suas atrações secundárias sejam devolvidas a eles, então Sam e Max são convocados para caçá-los. Eles rapidamente acabam seguindo a trilha de Conroy Bumpus, uma estrela da música country arrogante com uma inclinação para a caça de espécies ameaçadas de extinção. Suas investigações os fazem rodar por todo o país indo de uma armadilha para turistas tosca para outra (muitas delas baseados em lugares beira-de-estrada reais, como a Rock Frog que cobra para as pessoas verem uma pedra... que sequer parece com um sapo), enquanto eles descobrem o verdadeiro mistério por trás do desaparecimento de Bruno e salvam a raça dos Pé Grande no processo.

As locações do jogo são versões exageradas de armadilhas para turistas safadas que a equipe de produção encontrou ao longo da vida, como esse "O Maior Rolo de Barbante do Mundo" que é uma atração de beira de estrada em Branson, Missouri

Essa descrição definitivamente soa como algo que parece um jogo da Lucas Arts, porém o mesmo definitivamente não pode ser dito a respeito da execução, que é todo o meu ponto inicial sobre como a hubris da LA tornou esse jogo hediondo. Eles estavam tão cheios de si que não consideravam a possibilidade de falhar, e isso se reflete muito na qualidade dos puzzles desse jogo.

 Por exemplo, você começa o jogo com Sam e Max no seu escritório recebendo a ligação do seu chefe que eles tem um caso. Então eles precisam pegar as ordens e fazer o trabalho deles. Que caso? Ir onde? Fazer o que? Como? A Lucas Arts não se importa em te responder isso, porque afinal esse é um jogo da Lucas Arts e vc já está se divertindo, certo?


Vejamos por exemplo, o que acontece no começo de Secret of Monkey Island: nosso herói Guybrush Treepwood anuncia que quer ser um pirata (apesar do seu nome estúpido) e então alguém lhe diz que ele tem que ir a taverna falar com o conselho de piratas, que lhe dará três tarefas para se provar digno de ser um pirata. E você achando que pirataria teria muito menos burocracia envolvida, hã? Mas esse é o charme do jogo, de qualquer modo o que você tem a fazer faz sentido e cabe a você fazer gambiarras para conseguir executar. Esse é um começo bom de um jogo muito melhor. Aqui, no entanto, a LA apenas diz “whatever, faz as coisas ae, sei lá”.

 Sabe o que você tem que fazer para pegar sua missão inicial nesse jogo? O primeiro puzzle? Olha só isso: você tem que ir até o lado de fora do prédio, vai ter um gato parado lá fazendo nada. Aí você tem que selecionar USAR em Sam e usar o coelho em cima do gato. O coelho vai se atracar com o gatinho e recuperar o mandado que ele tinha comido.

 OKAAAAY... É BASTANTE NONSENSE, TÁ... MAS PELO MENOS O JOGO DÁ ALGUMA PISTA DO QUE FAZER, CERTO? ATRAVÉS DE DIALOGO É DADO UMA INDICAÇÃO QUE O GATO ENGOLIU AS SUAS ORDENS E QUE VOCÊ PRECISA RECUPERA-LAS, OU UMA DEIXA VISUAL OU ALGO ASSIM, CERTO?

 Então, não. Absolutamente nada de nada é indicado ao jogador. A ÚNICA maneira de resolver esse “puzzle” é usar todas as combinações possíveis de itens em todos os lugares interagiveis. Não é nem que o jogo “tem uma linha de raciocinio dificil de adivinhar o que o programador estava pensando”, o jogo não tem linha de raciocinio AT ALL! Agora imagine isso aplicado a três horas de jogo e temos uma caixa de bosta que eventualmente pode ser bonita de ser olhada e ocasionalmente engraçada, mas em momento algum faz um bom jogo.

 ESSA É UMA IMAGEM MUITO DIFICIL DE SER VISUALISADA, SAIBA VOCÊ

 Entendível. De qualquer maneira, meu ponto é que Sam e Max Hit the Road cometem praticamente todos os pecados de design de puzzle já concebidos pelo homem e o fazem sem esforço e incessantemente: itens importantes estão escondidos no background e é muito fácil pasar po eles, não há lógica nos puzzles e as poucas pistas de contexto são razoavelmente obscuras, para dizer o mínimo), para não mencionar que a interface de icones sem sentido torna tudo mais dificil do que de alguma forma já era

Para abrir a garrafa de vinho você precisa levar o picador de gelo para o psiquico transformar ele em um saca-rola. Problema: não tem nada na descrição da garrafa que você tem como abrir ela ou que algo nesse sentido deve ser feito

 Existem apenas duas formas de jogar esse jogo: tentando todas as combinações de itens em TODOS os lugares desse jogo, ou apenas seguindo um walkthrough. Não existe terceira opção. Se isso não é a definição categórica do que faz um point’n click ser ruim, então eu não sei mais o que seria.

 Adicione a isso um enredo que foi feito nas coxas (o jogo abusa demais do “agora colete 4 coisas aleatória para avançar” do nada, claramente apenas para extender sua duração artificialmente) e que deve ter uns dois ou três puzzles no jogo inteiro que fazem algum sentido lógico. Portanto, a única coisa que resta para aguentar o jogo é o humor. Como eu disse, eu meio que gosto do senso de humor do jogo, pelo menos a maior parte dele, mas as piadas que fazem sentido são poucas e raras. Sam e Max têm algumas boas conversas legais, mas a maioria dos dialogos desse jogo ou apenas é completamente aleatório, ou é uma piada interna na Lucas Arts, ou é uma referencia para os fãs dos quadrinhos.

Para abrir o pote você tem que dar ele para o balconista, o problema é que não tem nada que indique isso no jogo todo, a única saída é literalmente tentar dar o pote para todo e cada NPC do jogo até alguma coisa acontecer. Sério.

Eu meio que posso imaginar que eles pensaram que se estão adaptando um quadrinho que usa muito humor non-sense Looney Toons, eles deveriam fazer um jogo nesse sentido. Bem, eles não deveriam, random pelo prazer de ser random é algo que definitivamente não funciona com puzzles e o resultado é esse jogo que pode ser bonito de ser olhado, mas é uma porcaria para ser jogado.

https://youtu.be/jJCji-i9pTU?list=PLOrATrGDrd8zC64LYvgzyHLlupiVBgUoR

MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 002