Papo sério irmão, que porra de boca é essa do 007? |
Se muitas desenvolvedoras estavam batendo cabeça com essa coisa dos anos 90 de fazer a passagem dos jogos 2D para os jogos 3D, não pense que os estudios de cinema estavam tendo a vida muito mais fácil que isso, não.
Isso pq poucas coisas são mais dificeis do que adaptar os valores de um filme para uma nova geração, jovens geralmente não querem gostar das mesmas coisas que os seus pais. Para o cinema, isso significa que suas franquias antigas dos anos 70 precisariam de uma roupagem nova... e isso é muito mais fácil falar do que fazer.
Rocky, por exemplo, teve filmes terriveis do nosso carismático boxeador tentando se conectar com uma nova geração, mas Rocky 5 não foi a única vitima dessa desconexão: tivemos filmes como Karate Kid 4 ou Robocop 3. É, vocês fingem que não lembram, mas Robocop 3 passou de uma critica social da sua época para... isso:
E uma das maiores franquias que precisava fazer esse salto geracional era, como você pode imaginar por esse post, 007. E de todas as "releituras anos 90" do cinema, uma das que reconhecidamente deu certo foi justamente essa.
Isso pq o ultimo filme do 007 tinha sido lançado em 1989, Licença para Matar, e a ideia era lançar o próximo em 1991. Só que houveram inúmeras, inúmeras disputas legais pelos direitos de distribuição dos filmes, processos e gente processando por ter sido processada, uma putaria sem fim.
O resultado disso é que o filme só entrou em pré-produção em 1993, e de 1989 para 1993 o mundo havia mudado muito: a União Soviética foi de base e sem a guerra fria havia muita duvida se ainda fazia sentido um filme sobre espionagem. Mais ainda, em uma era de computadores e informação instantanea via satélite (a internet ainda não era uma coisa realmente), fazia sentido a figura do agente secreto?
Felizmente, essa foi a grande sacada que o roteirista Michael France teve: ele inclusive foi até a Russia para entrevistar ex-agentes da KGB e entender melhor como esse novo mundo pós-guerra fria. Ao invés de se basear em algum livro ou conto de Ian Flemming (que morreu nos anos 60 ainda), esse é um roteiro inteiramente original. Um novo Bond para uma nova era.
Não é pq vc vai dar partida em um tanque que isso é desculpa para não estar bem arrumado |
Então a história do filme é essa: quando a União Soviética caiu, foi um barata-voa pra fazer uma grana com todo aquele parque militar que do dia pra noite não tinha mais dono. O que, de fato, aconteceu no mundo real e mais do que uma organização terrorista se lavou de comprar equipamento militar restrito em queima de estoque (com efeito, "O Senhor das Armas" é muito sobre isso). E nesse filme em particular, uma dessas tecnologias militares que se perderam durante o apagar das luzes foram os satélites Goldeneye.
Agora o interessante aqui é que o Goldeneye não é um raio da morte do céu nem nada do tipo, ele é um dispositivo tático que dispara um pulso eletromagnético que acaba com toda tecnologia em uma cidade. Ou seja, a batalha aqui não é mais para salvar o mundo da ameaça socialista, mas sim salvar a tecnologia e a vida moderna.
E é aqui que entra nosso agente Double-O Seven, que é descrito por sua própria chefe como "uma reliquia da guerra fria, um dinossauro sexista e misógino", o que é um take bastante interessante para o personagem. Ainda sim, o Bond de Pierce Brosnan é bastante interessante porque ele é muito mais um macho sigma seguro de si mesmo do que o macho alfa frequentemente desagradavel dos anos 60 - outra adaptação aos tempos modernos.
"What, No Small Talk? No Chit-Chat? That's The Trouble With The World Today. No One Takes The Time To Do A Really Sinister Interrogation Anymore." |
Então sai o machão arrogante que pega as mocinhas a força pq "sabe que é isso que ela quer" (algo que definitivamente não envelheceu bem dos filmes antigos do James Bond) e entra um cara muito mais cool e seguro de si mesmo.
Para acentuar ainda mais a diferença, o vilão do filme é essencialmente uma versão antiga do James Bond. O agente 006, interpretado por Sean Bean, é essencialmente um 007 dos anos 60 com sua arrogancia, as frases de efeito em momentos que ele deveria estar tenso e seu descaso com a vida como se isso fosse uma coisa cool. Eu achei essa uma escolha de design muito interessante, o novo e moderno James Bond enfrenta o que é essencialmente um antigo Bond - mesmo sua motivação é basicamente a conclusão que o 007 chegaria se ele ficasse tempo demais no trabalho.
Também tem que ser observado que o filme tenta, no melhor do que a sensibilidade dos anos 90 permitia, tratar as mulheres com respeito. Claro que hoje ainda parece datado e sexista, mas nos anos 90 eles genuinamente estavam tentando acertar.
Isso quer dizer, por exemplo, que agora não apenas Bond tem uma chefe mulher (papel que Judy Drench ocupou até os filmes recentes do Daniel Craig), como a "Bond Girl" Natalya Simonova. Inteligente? Check. Sabe se virar? Check. Importante para o enredo, em vez de ser a pimbada da vez do Bond? Hmm, tá, vai, check.
Ela sobrevive a um massacre na primeira cena, o que é sempre um sinal de que a mulher não deve ser menosprezada. Mais importante, ela trata Bond como um igual, não como um salvador, o que é um take certamente refrecante. Na verdade, ela até aparece no final para salvar a pele dele e o Bond de Pierce Brosnan não parece terrivelmente constrangido de precisar de ajuda de uma mulher como seus antecessores o seriam, se ele precisa de ajuda para concluir o serviço então ele precisa de ajuda, não precisamos criar caso sobre isso. Ele é cool desse jeito.
Adicionalmente, Natalya não tem um nome ridiculo, o que nem sempre pode ser dado como garantido em um filme do 007. Não é mesmo, Pussy Galore?
Como eu disse no começo, modernizar uma franquia é algo que raramente funciona... mas que deu certo aqui. Goldeneye mantém tudo que fazia dos filmes de 007 interessantes (as cenas de ação em locações lindissimas, os gadgets e 007 sendo cool) e tira as coisas dos anos 60 que haviam se tornado datadas ou apenas francamente ofensivas.
Adicione a isso temas modernos como o cenário pós-guerra fria, e a relevancia de um espião nos tempos da tecnologia, e temos um filme bastante interessante. Com efeito, o filme fez tão bem em modernizar o 007 para a geração dos anos 90 que quando chegou a hora de novamente atualizar o personagem para uma nova geração em 2006, novamente chamaram o diretor Martin Campbell e novamente ele deu uma roupagem completamente nova (e adequada ao seu tempo) em Cassino Royale de 2006.
Mas essa é outra história. A seguir: o video game licenciado.
O que normalmente soa como algo terrível, mas esse não é o caso aqui e por vários motivos. Pra começar, o jogo saiu dois anos depois do film e isso sempre é uma coisa boa já que quer dizer que o jogo não foi rushado para ser lançado junto com o filme. Dois anos é tempo mais do que suficiente para desenvolver um jogo de qualidade nos anos 90.
Em segundo lugar, é um jogo da parceria Rare-Nintendo que estava chutando bundas e anotando nomes com a trilogia DONKEY KONG COUNTRY e KILLER INSTINCT. Verdade que eu fiquei desapontado com sua sequencia KILLER INSTINCT GOLD, mas agora eu entendo que é pq as melhores mentes da Rare estava m trabalhando neste aqui.
Então, é, dá sim pra esperar grandes coisas desse jogo MESMO ele sendo um jogo licenciado de filme. E grandes coisas ele entrega, eu te digo.
E que grandes coisas são essas, vc pergunta? Bem, deixa eu colocar dessa forma: 007 Goldeneye é o primeiro FPS moderno que existiu. E o que caralhas é um "FPS moderno", vc pergunta?
Bem, hoje, em abril de 2023, quando você pega um FPS para jogar vc espera algumas coisas dele. Vc espera alguma variedade no gameplay (fases de furtividade, fases dirigindo veículos, fases de sniper, etc). Vc tb espera que a história não apenas seja parte importante da narrativa via cutscenes, mas que elas seja tão importantes que as fases sejam fortemente baseadas na história. Nós apenas esperamos isso hoje em dia.
Outra coisa que nós esperamos é que as fases tenham objetivos especificos ligados a narrativa, ao invés de apenas coletar chaves em labirintos. Escoltar um NPC e mante-lo vivo no meio do fogo cruzado, encontrar um gerador e sabota-lo, recuperar documentos e entrega-los ao seu contato. Hoje, é apenas esperado que existam missões variadas ao ponto que elas flertam com os puzzles de survival horror ou point'n click de saber qual item usar onde, e esse jogo faz isso.
Mais uma coisa que esperamos nos FPS hoje: tiros em partes especificas do corpo. Um headshot mata, um tiro na mão faz o alvo derrubar a arma, um tiro no torso de não matar pelo menos desiquilibra o adversário. Isso é algo que sequer precisa ser explicado e na verdade é muito bizarro se um jogo não fizer isso.
Agora pegue tudo isso e compare com o contexto da época. É apenas muito diferente de como as coisas eram feitas. E enquanto um que outro elemento que eu citei podiam ser encontrados em jogos separados (STAR WARS: Dark Forces tinha objetivos, DUKE NUKEM 3D tinha cenários urbanos), nenhum deles costurou todas essas coisas na experiencia que hoje entendemos como um FPS deve ser.
Quando vc pensa nos FPS até então, vc pensa essencialmente em alguma variação de DOOM. Mesmo os jogos em 3D ainda usam os conceitos de design de DOOM: coletar chaves em labirintos. Aqui o conceito é radicalmente diferente, vc precisa manter o hacker sob a mira de sua armas até que ele destranque as portas, ou tem que tirar fotos da máquina do juízo final dos bandidos. Tudo isso não em labirintos aleatórios, mas em fases desenhadas de acordo com a narrativa da história.
Essa é uma gigantesca mudança na dinâmica de como você aborda o jogo, uma mudança tão grande que ela é utilizada até os dias de hoje.
Mas isso não é tudo. As configurações de dificuldade faze, mais do que apenas dar aos inimigos mais energia e causar mais dano, elas mudam significativamente o nível e seus objetivos, a ponto de, se você terminasse o jogo no easy não teria feito metade do conteúdo do jogo. Não é incomum você encontrar um objeto interagivel no cenário que aparentemente não faz nada, mas é pq tem uma missão para aquilo em uma dificuldade mais alta.
Com efeito, esse jogo tem uma quantidade de conteúdo desbloqueavel impressionante mesmo para os dias de hoje. Ele tem, por exemplo, achievments anos e anos e anos antes disso ser uma coisa realmente. Se você terminar a fase com condições especificas (em determinado tempo, sem tomar dano, etc), isso desbloqueia cheats como recompensa (vida infinita, munição infinita, inimigos com cabeção, etc). É o mesmo principio dos achievments só que ao invés de ganhar um troféuzinho que não serve pra nada, vc ganha algo para usar dentro do jogo.
E então, é claro, tem a coisa do multiplayer. Em 1997, não era realmente uma grande coisa para os nerds juntarem seus computadores num porão e passarem a noite jogando deathmacht uns contra os outros desde os primeiros dias de DOOM. Não tem nenhuma invenção da roda aqui.
MAS mas mas mas MAS, tem sim uma coisa muito significativa: Lan partys eram uma coisa muito de nicho e dava um trabalho do caralho. Não é todo mundo que se dispunha a sair com um computador de baixo do braço, fazer configurações arcanas em DOS para jogar com os coleguinhas. Era realmente um puta trampo, coisa de nerd em um tempo que ser nerd não era nada glamuroso ou mesmo evocava os direitos humanos mais básicos.
Então quando eu digo que é uma coisa de nicho na época, é muito mais do que hoje é usar Linux, por exemplo. Quem usa diz que é super simples e sequer entende como alguém pode não usar, mas a realidade é que 99,9% do usuario comum apenas não vai se dar ao trabalho.
O multiplayer aqui é a mesma coisa. Vc podia pegar 4 caras, fazer cada um trazer seu PC, seu monitor, fazer o cabeamento e programações obscuras para jogar uns contra os outros em QUAKE?
Podia. Mas 99,9% das pessoas jamais iria fazer isso. Já para jogar um FPS multiplayer de Goldeneye vc precisa apenas de quatro controles e um sofa, a praticidade não pode SEQUER começar a ser comparada. E por isso Goldeneye foi o FPS multiplayer de uma geração, pq não tinha forma mais simples de meter uns pipocos nos coleguinhas.
Vc pode argumentar, não sem razão, que outros jogos faziam coisas muito melhores do que Goldeneye na época. E é verdade. O sistema de mira não é mas NEM DE PERTO tão suave quanto QUAKE, os gráficos são bem blocudos comparados com os jogos de PS1 e mesmo a IA dos inimigos é meio troncha (e eu realmente não gosto da irregularidade dos respawns dos inimigos, que em algumas partes das fases é infinito, em outras na mesma fase não é).
Individualmente, 007GE não faz nada que exploda sua cabeça, mas quando vc junta tudo que ele faz, aí então temos um daqueles jogos que mudou os video games para sempre. A primeira fase do jogo, por exemplo, sozinha tem furtividade, sniping, múltiplos objetivos, bem como objetivos adicionais baseados na dificuldade.
O sistema de mira foi bem desenhado para caber nas limitações de um stick de console, a música acrescentou muito ao ambiente, e o jogo é foi recheado de pequenos detalhes que estão ali apenas para mostrar o quanto a Rare estava se importando (como os tiros ficarem nas paredes, ou poder tirar o chapéu do guarda na ventilação são bons exemplo).
Por todas essas razões, Goldeneye não apenas foi o terceiro jogo mais vendido do Nintendo 64, como é frequentemente citado como um dos melhores FPS de todos os tempos. Enquanto pode ser argumentado que vários aspectos do jogo não envelheceram bem, esse não é realmente o ponto aqui e sim tudo que esse jogo significou.
E ainda significa, já que ele é literalmente o esqueleto sobre o qual os jogos modernos ainda são construídos até o dia de hoje. Ele é para os FPS de hoje o que SUPER MARIO 64 é para os jogos de plataforma modernos, e não tem como ser muito maior do que isso realmente.
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Edição 097 (Janeiro de 1996)
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Edição 023 (Fevereiro de 1996)
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Edição 023 (Outubro de 1997)
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