Jogos sempre foram uma grande parte da minha vida. Bem, duh — considerando que tenho um blog com mais de 1.500 reviews ao longo de quase oito anos e meio, é justo dizer que eu passo muito tempo pensando em jogos. E, naturalmente, quando você passa tanto tempo obcecado por jogos, em algum momento sua mente se desvia para a ideia de criar um você mesmo.
Assim, desde criança eu sempre tive duas ideias de sque eu jurava que um dia me tornariam rico. A primeira era um jogo de futebol em que você realmente joga como árbitro. Você decide quem recebe um cartão amarelo, quem simulou e quem você expulsa da partida. E embora hoje em dia você possa desenterrar algum jogo em Flash ou título barato do Steam tentando fazer isso, nenhum estúdio de renome jamais teve a coragem — ou, mais provavelmente, a falta de bom senso — de torná-lo realidade.
Minha outra ideia bilionária? Bem, esta era ainda mais maluca: um jogo onde... você simplesmente vive uma vida. Você arruma um emprego, casa, tem filhos, decora a casa, tira férias e talvez incendeie a cozinha de vez em quando. Sabe, as coisas mais loucas! Infelizmente (para minha hipotética conta bancária), alguém chegou muito antes de eu sequer entender o que significava "documento de game design".
E isso nos leva à review de hoje: um jogo sobre viver a vida de outra pessoa. Um jogo que se tornou um fenômeno, definiu um gênero e basicamente transformou a vida cotidiana em algo que vale a pena jogar. The Sims.
Mas para realmente entender The Sims, primeiro precisamos falar sobre o cara que fez tudo acontecer — porque ele não era o tipo de desenvolvedor comum, "cara com diploma em ciência da computação que ama Doom". Não, Will Wright era um dos especiais. Você conhece o tipo: aqueles que enxergam. Aqueles que fazem arte — não "arte" como em golas altas pretas e óculos escuros em um lançamento de galeria, mas arte de verdade. O tipo de arte que escuta. O tipo que entende as pessoas.
Desde a infância, William Ralph Wright já era diferente. Seu jogo favorito na infância era Go. Sério — que garoto americano de oito anos lista Go como seu jogo favorito? O resto de nós estava ocupado jogando Banco Imobiliário ou dando caneladas numa bola, e lá estava ele, pensando em estratégias em um jogo de tabuleiro milenar.
De qualquer forma, Wright acabou se dando bem na programação de jogos para o Apple II e, mais tarde, para o Commodore 64. Tudo autodidata, obviamente. Seu primeiro jogo comercial foi Raid on Bungeling Bay (1984), um jogo de ação com helicópteros, com visão de cima, onde você bombardeia ilhas e fábricas inimigas até reduzi-las a escombros.
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Raid on Bungling Bay, 1984 |
O jogo se saiu incrivelmente bem — especialmente a versão para NES, que vendeu mais de um milhão de cópias. A maioria dos desenvolvedores iniciantes teria vendido a própria mãe por números como esse. Mas Will? Will era... diferente. Enquanto todos os outros viam um jogo de tiro de sucesso, o que realmente o interessava não era o bombardeio. Will descobriu uma coisa sobre si mesmo: ele se divertia muito mais mexendo nas ferramentas de edição de mapas do seu jogo de helicóptero do que jogando o jogo em si. E então ele se perguntou: "será que alguém mais se sentiria do mesmo jeito?"
Então ele fez o que qualquer híbrido de desenvolvedor-artista-filósofo faria — para transformar um editor de mapas em um jogo interessante, ele mergulhou fundo. Muito fundo. Wright começou a devorar livros e artigos acadêmicos sobre desenvolvimento urbano e teoria urbana, absorvendo conceitos que a maioria das pessoas preferiria mastigar vidro a ler. Ele se inspirou particularmente na teoria de System Dynamics, desenvolvido por Jay Wright Forrester em obras seminais como Urban Dynamics e World Dynamics. Adicione a isso uma pitada de curiosidade cósmica, vinda de coisas como Drake's Equation e o filme Powers of Ten, e você começa a entender o que se formava em sua mente.
Todos esses fios eventualmente se fundiram no que se tornaria um jogo sobre administrar uma cidade, conhecido como... SIM CITY.
Mas, a princípio, nem todos compartilhavam da visão de Will. Seus colegas na Brøderbund acharam a ideia ridícula. Quem diabos compraria um jogo sobre não destruir coisas? Sobre construir estradas e zonear subúrbios? Sobre gerenciar orçamentos e redes elétricas com cuidado? Isso é coisa de adulto — chato! Crianças querem ser bombeiros, pilotos de caça, super-heróis, pilotos de corrida — não prefeitos.
Ainda assim, Will acreditava que tinha algo especial. Então, ele bateu de porta em porta, sempre recebendo a mesma rejeição educada (ou não tão educada). Finalmente, ele e seu amigo Jeff Braun fizeram a aposta definitiva: juntaram suas economias, hipotecaram o que podiam e fundaram sua própria empresa — a Maxis.
E, bem... o fato de 35 anos depois você ainda saber o que é SimCity diz tudo sobre como essa aposta acabou. A visão improvável de Wright valeu a pena, e muito. Mas este não é o fim da história — e nem mesmo o maior sucesso de Will Wright.
Em 1991, Will já havia se tornado um nome respeitado nos círculos de game design. SimCity era um fenômeno tão grande que chamou atenção até da Nintendo, transformando o port de SimCity para o Super Nintendo em um dos títulos de lançamento de seu novíssimo videogame Sega-killer. A vida era boa; a Maxis estava em alta. Tudo parecia estar encaminhado... até que a tragédia aconteceu.
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SimCity, port para o Super Nintendo em 1991 |
Em outubro daquele ano, Will perdeu sua casa no devastador incêndio de Oakland de 1991. E por perder, quero dizer absolutamente tudo: ele acordou uma noite com cheiro de queimado, mal teve tempo de evacuar e, quando tudo acabou, sua casa havia queimado até o chão. Seu segundo carro havia sido reduzido a uma pilha de metal derretido.
E, no entanto, mesmo após tanta perda, Will sentiu algo inesperado: gratidão. Porque, por mais terrível que tudo tivesse sido, ninguém em sua família se feriu. O choque e o alívio o acompanharam enquanto ele passava pelo árduo processo de reconstruir sua vida literalmente das cinzas — comprando móveis de volta, peça por peça, decidindo o que importava e o que não importava, e lentamente observando uma nova casa tomar forma.
Em algum lugar daquela experiência profundamente pessoal, uma ideia começou a criar raízes. Não um uma história sobre a tragédia em si, mas sobre aquele processo — o cotidiano de construir (e reconstruir) uma vida, comprar coisas, fazer escolhas... mas onde os relacionamentos que você constrói são o que realmente importa no final.
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O Incêndio de Oakland de 1991 deixou 25 mortos, 150 feridos e destruiu mais de 3000 casas |
E como Will Wright era um desenvolvedor de jogos — e, principalmente, do tipo que conseguia ver além de pixels e lucro — ele pensou: por que não fazer um jogo sobre isso?
Quando ele apresentou sua nova ideia ao conselho da Maxis (mesmo sendo cofundador, ele não podia simplesmente fazer o que quisesse — ele ainda precisava convencer o conselho), mais uma vez, eles zombaram dele. Um jogo sobre... brincar de casinha? Sério? Na época, o público gamer era majoritariamente masculino, e a diretoria insistia que nenhum garoto seria pego comprando um jogo sobre tarefas domésticas e decoração de interiores. Para eles, todo o conceito soava como o oposto de diversão.
A proposta de criar um jogo em que as principais tarefas do jogador incluíssem desentupir vasos sanitários e realizar tarefas domésticas rapidamente virou piada na Maxis. Eles até deram um apelido nos corredores da empresa: "O Jogo da Privada". E embora seja verdade que a Maxis, como empresa, tinha a reputação de ser mais aberta a ideias excêntricas e experimentais do que a maioria dos estúdios da época, "O Jogo da Privada" aparentemente era onde eles traçavam a linha.
Depois de perder várias batalhas para que o projeto recebesse a luz verde — e testes de público por volta de 1993 confirmassem que, sim, aquele não era realmente o momento em que os garotos se aglomerariam sobre um jogo da vida doméstica — Will finalmente teve que mudar de tática. Mas aqui está a coisa sobre Will Wright: ele não é o tipo de cara que "deixa para lá e segue em frente". Então, em vez de abandonar a ideia, ele apostou no longo prazo.
Ele continuou trabalhando em outros projetos da Maxis, conforme solicitado — SimAnt, SIM CITY 2000, SimCopter — enquanto continuava a trabalhar no seu jogo de simulação de vida durante seu tempo livre. E quando não tinha horas suficientes no dia para fazer isso sozinho, pagava programadores do próprio bolso para manter o protótipo andando. Porque quando Will Wright acredita em algo, ele não faz pela metade. Ele simplesmente não é assim.
Levou vários anos até que uma chance real, uma chance de verdade, finalmente aparecesse para Will. Esse momento chegou em 1997, quando algo grandioso aconteceu: a Electronic Arts — sim, a mesma gigante corporativa famosa por vender franquias esportivas anuais como FIFA, Madden e NHL — decidiu comprar a Maxis.
Naquela época, a EA já era uma gigante, produzindo sucessos de milhões de cópias como uma esteira rolante de fábrica... e, bem, continua sendo até hoje. Mas os anos 90 foram uma época peculiar para as grandes editoras. Enquanto o dinheiro seguro continuava entrando com jogos de esporte, jogos de corrida e sequências, houve uma vontade repentina de diversificar. Sabe, a clássica ideia de "não colocar todos os ovos na mesma cesta" — porque ninguém consegue prever qual será a próxima grande moda dos jogos. Talvez sejam jogos de kart, talvez jogos de dança, talvez... seja lá o que for esse tal de POKEMON. Então, a EA, com sua carteira infinita, começou a devorar estúdios menores a torto e a direito como um Pac-Man bilionário.
E em 1997, a Maxis se tornou mais uma estatistica na lista de aquisições da Eletronic Arts. E isso, meu caro leitor, era exatamente o que Will Wright precisava.
HÃ, COM LICENÇA, MAS COMO SER ENGOLIDO POR UM CONGLOMERADO EXECUTIVO SEM ALMA AJUDA UM CARA QUE QUER FAZER ARTE?
Excelente pergunta, Jorge. Veja, o dinheiro é uma coisa particular: ele não se importa com nada. Ele não se importa se você rotula algo como "muito feminino", "muito estranho" ou "muito artístico". O dinheiro só se importa com uma coisa e uma coisa apenas: retorno sobre o investimento.
Na Maxis, Will tinha que convencer uma sala cheia de pessoas que ainda viam jogos como "brinquedos de menino" e de que nenhum menino gostaria de brincar de "casinha". Eles debocharam do jogo que eles mesmos chamaram de "O Jogo da Privada". Mas agora Will não precisava mais lutar contra essa
E o melhor de tudo é que ele nem precisaria provar que venderia para meninos. Tudo o que precisava fazer era apontar um mercado totalmente intocado: as mulheres. Literalmente 60% da população — completamente ignorado pela maioria dos desenvolvedores de jogos da época. E se era apenas sobre números, bem, Will conseguia lidar com números. Tudo o que ele precisava era entrar naquela sala de apresentação... e fazê-los ver o que ele viu.
Imagine a seguinte cena então: estamos em 1997.
A tinta na papelada de aquisição da EA-Maxis mal secou. Os novos chefes da Electronic Arts estão na cidade, todos de terno, sorrisos polidos, e Will Wright entra na sala de conferências com as mangas arregaçadas, os olhos brilhando como uma criança explicando por que os dinossauros obviamente ainda podem estar vivos em algum lugar.
Os executivos da EA se acomodam, provavelmente esperando ouvir dele um novo SimSomething: SimFarm 2, SimTraffic, SimShoppingMall. Você sabe, ideias respeitáveis e seguras as grandes corporações. Mas Will começa a falar sobre algo completamente diferente:
Will (animado, acenando com as mãos):
"Então, imagine isso: um jogo em que o objetivo do jogador... é viver uma vida. Conseguir um emprego, se apaixonar, decorar a casa, ter filhos..."
Ele consegue ver os sorrisos educados gerados por anos de etiqueta corporativa congelarem. Um deles pisca lentamente, como se o Windows 95 tivesse acabado de dar um PÃN de "Windows parou de responder".
Executivo nº 1 (recostando-se, cético):
"Espera aí. Então você está me dizendo... um jogo sobre fazer tarefas domésticas? Cortar a grama? Limpar o banheiro?"
Will (sorrindo):
"Sim! E é divertido, porque se trata de equilibrar tudo. Você não pode fazer tudo, então os jogadores fazem escolhas. E eles verão essas pequenas pessoas digitais reagirem às suas escolhas em tempo real."
Executivo nº 2 (franzindo a testa):
"Não sei, Will. Os meninos querem ser super-heróis, soldados, pilotos de corrida. Nenhum deles sonha em... desentupir uma pia."
Will (acenando com a cabeça):
“Boa observação. Só que eu estou pensando maior do que apenas jogos para meninos pré-adolescentes. Estamos falando de todos os outros. Mulheres. Famílias. Jogadores casuais. Idosos. O enorme grupo demográfico que ninguém está mirando diretamente nesse momento. Estamos ignorando 60% — talvez 70% — de toda raça humana. Esta é uma chance de atraí-los.”
Executivo nº 3 (confuso):
"Eu não entendo muito sobre mulheres realmente, Will, mas não acho que elas também tem muito interesse em desentupir pias..."
Will (suspira, inspira e recomeça):
“Olha, primeiro, não é sobre desentupir pias, vamos deixar as pias de lado, está bem? O que importa aqui é o cotidiano, a vida. Segundo, aqui está o porquê deste jogo ser diferente: no momento, estamos vendendo jogos para talvez 40% da população humana, na melhor das hipóteses — realisticamente menos pq estamos falando de jovens, principalmente. Mas há outros 60% — mulheres — que quase não recebem jogos feitos especificamente para elas e não tem muito interesse nos que existem agora. Este jogo também se conectaria com elas. Isso é enorme. Estamos falando em literalmente dobrar nosso mercado da noite para o dia.”
A sobrancelha de um executivo se contrai. Outro se inclina para a frente, levemente. Eles ainda estão céticos, mas é possível ver que algumas palavras como "dobrar o mercado" ativa partes dos cerebros deles adormecidos.
Will sente o momentum da sala se virando a seu favor e não para:
“E isso é só o começo. Vamos falar a língua de vocês: franquias anuais. FIFA, Madden... Eu sei como é. Grandes vendas todos os anos, mas licenças caras, taxas por imagem de atletas, atualizações constantes de engine... muitas peças móveis, certo?”
Eles concordam. Ele tem a inteira atenção deles.
WILL: “Agora imagine isso: The Sims não precisa ser relançado anualmente. O jogo principal permanece praticamente o mesmo por anos. Em vez disso, vendemos expansões a cada seis meses. Animais de estimação, férias, vida universitária, vizinhos, novos conjuntos de móveis, novos empregos, decorações de Halloween, banheiras de hidromassagem com tema de piratas — tudo o que você imaginar. Nenhum nome de atleta para pagar licenciamento. Nenhuma federação esportiva exigindo sua parte. Apenas nosso conteúdo, criado uma vez e vendido repetidamente.”
Um executivo lentamente abaixa a caneta.
WILL (com um sorriso): “Baixos custos de desenvolvimento, alto valor percebido, vida útil ilimitada. O jogo em si se torna uma plataforma — uma tela à qual continuamos adicionando. E cada nova expansão reengaja os jogadores e traz novos.”
EXECUTIVO 2 (cauteloso): “Mas como você sabe que as pessoas continuarão comprando?”
WILL: “Porque a vida nunca para de te dar coisas novas para desejar. Animais de estimação, casas maiores, novas tendências de móveis, feriados... Sempre há uma próxima coisa que as pessoas querem que seus Sims façam — porque sempre há uma próxima coisa que eles querem fazer na vida real. E nós vamos dar isso a eles. Não, nós vamos VENDER isso a eles."
Nesse momento, os engravatados não estão apenas se inclinando para a frente; eles estão praticamente babando. Alguém já está anotando. Outro está imaginando a receita trimestral subindo numa ascendente para sempre.
E naquela sala, bem ali, nasce uma ideia linda e terrível:
EXECUTIVO 3 (com um meio sorriso): "Então... você está dizendo que teremos nossa própria franquia anual... sem pagar um único dólar ao Ronaldo."
WILL: "Exatamente. Um jogo sobre a vida. E o que tem na vida? Tudo."
A sala se inclina para a frente. Os sorrisos se tornam reais. Os cifrões praticamente se iluminam em seus olhos. Um jogo que nunca acaba... e nunca para de vender.
EXECUTIVO 1: "Certo. Vamos fazer isso. Vamos ver se a vida realmente vende."
Foi isso. Os números faziam sentido, o pitch era irresistível e a ideia de finalmente explorar um mercado inexplorado selou o acordo. O "Jogo da Privada" deixou de ser uma piada. Virou The Sims — um jogo que mudaria tudo. Mas a luz verde da EA para o projeto não foi o fim da história. Nem de perto.
Porque mesmo que os executivos tivessem cifrões no lugar dos olhos, The Sims ainda era um experimento estranho e arriscado que nunca tinha sido feito antes. E se há uma verdade universal sobre executivos, é esta: eles odeiam incertezas (e sinceramente eu nem os culpo — se fosse o MEU dinheiro em jogo, eu também estaria suando em bicas com qualquer coisa não testada e aprovada milhares de vezes)
Entendi nada sobre o próximo jogo do Will, manda mais!
Então houve muitas conversas em voz baixa sobre o cancelamento discreto do jogo, até porque projetos serem aprovados e então cancelados sem muito alarde é uma coisa que acontece na industria o tempo todo. Enquanto isso, o pessoal veterano da Maxis também não estava exatamente animado. Imagine passar anos construindo a sólida reputação de SimCity e de repente os novos chefes corporativos chegam e dizem:
"Ei, vocês sabem aquele "Jogo da Privada" do qual vocês costumavam rir? É, vocês estão trabalhando nele agora."
A batalha pela sobrevivência de The Sims estava longe de terminar... e ela terminaria pelo resgate mais improvável de todos: um momento de afeto improvisado no grande carnaval de hype conhecido como E3.
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E3, 1999 |
Imagine: É 1999, Los Angeles, Electronic Entertainment Expo, a maior feira de videogames do mundo. Enquanto a Sega trabalhava no hype para o lançameto do primeiro console de sexta geração (o Dreamcast) e a Sony soltava a bomba da data do lançamento do PS2 para o começo de 2000, a Eletronic Arts lança seus sucessos de bilheteria em telas gigantes, deslumbrando multidões com explosões e trilhas sonoras licenciadas. E escondido em uma pequena cabine de canto? The Sims. Sem grandes banners, sem demos chamativas na feira — apenas um punhado de PCs rodando versões beta. Quase ninguém percebe.
Pelo menos, no início.
Agora, um pouco de contexto: durante o desenvolvimento, houve muito debate dentro da Maxis sobre se The Sims deveria incluir relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. Lembre-se, estávamos no final dos anos 90: a indústria mal reconhecia a existência de jogadores LGBTQ. A própria Maxis também pisou em uma mina terrestre em 1996, quando demitiu um programador gay que havia adicionado secretamente "caras gostosões" sem camisa no SimCopter — o que gerou uma polêmica na mídia e acusações de que a Maxis era antigay.
Então, quando se tratou de The Sims, a gerência decidiu: melhor não cutucar o urso. Removeram o romance entre pessoas do mesmo sexo dos documentos de design e eles apenas não tocariam no assunto, fim de papo. Problema resolvido, certo?
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Stand de The Sims na E3 1999 |
Então... estaria, não fosse o fato que ninguém contou a Patrick J. Barrett III.
Barrett, um programador da IA social do jogo, recebeu um documento de design antigo — o anterior à grande decisão de "nada de conteúdo gay". Então, sem saber das novas ordens, ele programou a IA para tratar Sims homens e mulheres igualmente: se dois Sims gostassem um do outro, eles flertariam, namorariam... talvez até se beijariam.
Agora corta para a E3. Barrett é solicitado a preparar três cenas de demonstração pré-planejadas que o jogo reproduziria automaticamente, para que a imprensa pudesse assistir sem que ninguém as controlasse ao vivo. Uma delas era um casamento entre um casal heterossexual. Mas havia tantos convidados que os desenvolvedores não tiveram tempo de criar manualmente o roteiro de cada Sim de fundo. Então, esses Sims de fundo simplesmente faziam... o que a IA decidisse.
Diante da multidão, o casamento se desenrola. E então, no meio da celebração, duas Sims, completamente sem roteiro, se olham... e começam a se beijar apaixonadamente. A multidão fica boquiaberta. Repórteres tateiam em busca de suas câmeras. A equipe da Maxis congela. A imprensa corre até ela:
"Vocês programaram isso?!"
E a resposta do pessoal da Maxis foi tão chocada quanto todo mundo que ali estava:
"Nós... uh... não programamos. A IA fez isso sozinha."
De repente, o pequeno e ignorado estande dos Sims está lotado. O que antes era "aquele estranho jogo de casinha" agora se tornou a história da feira: um simulador de vida tão avançado que seus personagens podiam decidir se apaixonar por conta própria — e até fazer algo tão escandaloso (para 1999) como beijar alguém do mesmo sexo. A mídia não parava de falar sobre isso. O burburinho se tornou impossível de ignorar.
Os executivos da EA talvez ainda sonhassem em acabar discretamente com o Jogo da Privada... mas agora não tinha mais como. A conversa havia escapado da sala de reuniões. Agora a indústria — e o público — queriam saber o que diabos Will Wright estava tramando.
Quer dizer, qual é: o maldito Will Wright — o cara do SimCity — estava criando um jogo sobre a vida como um todo... com IA de verdade comandando a coisa toda? Porra, a gente TINHA que ver isso. E assim, por causa de um único beijo improvisado pela IA, The Sims passou de "provavelmente cancelado" para "o próximo grande sucesso da Eletronic Arts no novo milenio".
Antes de The Sims finalmente chegar às lojas em fevereiro de 2000, Will Wright havia prometido à EA que o jogo poderia vender — se tivessem sorte — um milhão de cópias. Esse foi o discurso confiante que ele deu aos executivos, o tipo de número que você coloca em um slide para manter os executivos acenando positivamente.
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E3 1999: Will Wright apresenta The Sims em seu estande "quarto bagunçado". |
Mas lá no fundo o próprio Will temia que vendesse apenas cinquenta. E sim, isso inclui cópias compradas por sua própria família por pena. Porque, falando sério — não havia muitos precedentes para isso. Nenhum grande jogo de PC até então havia tentado simular algo tão mundano — e ainda assim tão estranhamente universal — como a vida americana comum.
Bem, e o resultado disso foi que a Maxis estava certa sobre o "Jogo da Privada": ele realmente ofuscou SimCity... mas não por envergonhá-lo, mas por eclipsá-lo total e esmagadoramente. The Sims não se saiu apenas bem. Ele explodiu.
Vendeu 16 milhões de cópias no mundo todo — e se tornou o jogo de PC mais vendido em cada um dos quatro anos seguintes ao seu lançamento. Sério: não apenas o maior jogo de 2000... mas também de 2001, 2002 e 2003. E só foi destronado em 2004 por... bem, ele mesmo. The Sims 2 levou a coroa em seguida.
Como Will havia prometido à EA naquela reunião de apresentação, os pacotes de expansão foram lançados como um relógio. Festas, faculdade, animais de estimação, férias — tudo o que você pudesse imaginar, eles vendiam. A magia não estava apenas no jogo base, mas no fato de poder continuar vendendo às pessoas pequenos pedaços da vida, para sempre.
Quando The Sims 3 foi lançado em 2009 e The Sims 4 em 2014, a série não era mais apenas um jogo — era uma plataforma, uma comunidade global. Os jogadores construíam casas, desenhavam personagens, criavam histórias e as compartilhavam online, muito antes de o "conteúdo gerado pelo usuário" se tornar o Santo Graal para todas as empresas do planeta.
Da noite para o dia, a EA se viu sentada em uma mina de ouro tão estranha e tão inesperadamente lucrativa que, a princípio, nem sabia o que fazer com ela. Levaria mais de uma década para que o mundo visse algo assim acontecer novamente... mas Minecraft é assunto para outro dia. Por enquanto, a verdade é simples: The Sims não foi apenas um sucesso. Foi algo com que ninguém — nem mesmo o próprio Will Wright — poderia ter sonhado.
Então, por que The Sims ressoa tão profundamente com todos nós — não importa quem você seja, de onde venha ou quantos anos tenha?
É tentador apontar primeiro as respostas óbvias. Claro, é divertido projetar a casa dos seus sonhos, enchê-la de lâmpadas de lava e camas em formato de coração e, em seguida, apagar a escada da piscina quando seu primo Sim irritante aparecer. E sim, isso sacia a mesma coceira criativa que montar conjuntos de Lego ou redecorar seu quarto às 3 da manhã na sua cabeça. Mas a verdadeira magia é mais profunda.
The Sims é, em última análise, um jogo sobre a vida cotidiana — e trata essa vida cotidiana como algo que vale a pena jogar, que vale a pena simular, que vale a pena se importar. Ele diz que as pequenas vitórias — conseguir uma promoção, dar uma festa de aniversário que não termina em incêndio ou simplesmente ver seu Sim passar o dia com a sanidade intacta — importam. E diz que fracassar espetacularmente (incendiar a cozinha, fazer xixi no chão, ser abandonado no jantar) pode ser tão memorável, e às vezes até mais divertido, do que "vencer". É um jogo em que você não está matando dragões ou salvando galáxias. Você está apenas... vivendo. E, de alguma forma, isso basta.
E é por isso que ele toca tantas pessoas. Porque todos nós — não importa quem sejamos — sabemos como é lutar com o trabalho e as tarefas domésticas, sonhar com uma casa melhor, ansiar por conexão, fracassar espetacularmente e tentar de novo. The Sims transforma esses momentos tranquilos do cotidiano em diversão. E, ao fazer isso, nos lembra silenciosamente que talvez haja algo extraordinário na vida comum que todos nós também vivemos.
E, ao mesmo tempo, The Sims nos dá o que os videogames fazem de melhor: a chance de viver outra vida. A vida de outra pessoa. Talvez até uma vida mais interessante. A maioria dos jogos faz isso com heróis, espadas e carros que custam mais do que a sua casa. Mas The Sims mostra que não precisa ser assim. Você pode fazer amizade com uma celebridade, ou, que diabos, ser a celebridade. Você pode morar em uma mansão com cinco jacuzzis, dar festas todas as noites, formar uma banda, construir um castelo gótico ou se tornar a pessoa mais rica do bairro — tudo isso sem sair da sua cadeira.
É essa mistura — a humanidade crua e compreensível das lutas diárias e a liberdade total para reescrevê-las como quiser — que torna The Sims tão poderoso. Ele não apenas simula a vida como ela é. Ele permite que você brinque com a vida como ela poderia ser. E, de alguma forma, isso nunca deixa de ser fascinante.
Então, este é The Sims. O jogo que mudou o mundo de tantas maneiras. Foi o primeiro jogo que muitas meninas instalaram em seus computadores — e muitas delas ainda estão por aí hoje, chutando bundas e ensinando seus próprios filhos que jogos podem ser legais, criativos e acolhedores. Foi também o primeiro jogo em que a maioria dos jogadores viu um relacionamento entre pessoas do mesmo sexo de perto — e simplesmente descobriu que... bem, é bem normal, na verdade. Gays são apenas pessoas comuns, não as piadas ou os bichos-papões que a mídia dos anos 90 os pintava.
Foi o jogo que mostrou a inúmeros jovens desenvolvedores que um jogo não precisa se encaixar em um molde — nem mesmo precisar de um objetivo — para ser ótimo. E quando você pensa nisso, faz sentido por que The Sims se tornou um fenômeno. Porque Will Wright não nos deu apenas mais um jogo; ele nos deu uma ferramenta para repensar o que os jogos poderiam ser — e talvez até mesmo repensar o próprio mundo.
E sabe de uma coisa? Olhando para trás, The Sims parece o jogo perfeito para dar início ao novo milênio. Em fevereiro de 2000, Will Wright declarou que algo novo havia começado: uma era que, mesmo que ainda desajeitada e imperfeita, seria mais inclusiva, mais curiosa e um pouco mais gentil. Apenas um mês depois, em março, o PlayStation 2 seria lançado, e os jogos alcançariam patamares que ninguém poderia ter sonhado uma década antes.
Os anos 90 terminaram não com um trailer de grande orçamento de um anti-herói edgelord trevoso ou um fatality sangrento — mas com um beijo lésbico inesperado no salão da E3, e o mundo apenas concordando silenciosamente: "okay, isso parece maneiro pra caralho, a gente quer mais disso". Os anos 2000 começaram bem ali.
E depois de quase nove anos administrando este blog, ainda estou tão animado para esta nova decada quanto no dia em que comecei com um humilde postzinho sobre CASTLE OF ILLUSION — na verdade até mais. Porque o que vem a seguir vai ser uma jornada e tanto: deuses gregos boladões, escalar colossus do tamanho de montanhas, peregrinar com summoners trágicas condenados ao sacrifício ou sua turma junguiana de TV resolvendo mistérios na chuva, além de todas as inúmeras coisas que eu nem faço ideia que existe e pelas quais eu vou me apaixonar.
Porque é aqui que a diversão realmente começa.
MATÉRIA NA AÇÃO GAMESEDIÇÃO 156 (Outubro de 2000)
MATÉRIA NA GAMERS