quinta-feira, 10 de julho de 2025

[#1507][Mai/2000] NIGHTMARE CREATURES 2


Uma das coisas mais fascinantes dessa jornada insana pela história dos videogames, em ordem mais ou menos cronológica (depende das revistas, no meu caso) é descobrir os heróis não glorificados da história dos videogames — aqueles que a história mal menciona entre cartas de amor apaixonadas dedicadas a Nintendo, Capcom ou até mesmo a Konami. Esses, todo mundo conhece. Esses, todo mundo os elogia. Mas eu realmente acho que a Kalisto Entertainment não recebe metade do crédito que merece pelo que realmente fez pelos videpga,es.

EU SEI QUE VOCÊ É UM FURRY DOENTE, MAS AINDA NÃO ACHO QUE FURY OF THE FURRIES FOI TÃO IMPORTANTE ASSIM...

...Não é disso que estou falando, Jorge.

Capa europeia do jogo

O que quero dizer é: quando a quinta geração de consoles chegou, ninguém sabia realmente o que fazer com o gênero beat 'em up. Alguns desenvolvedores achavam que podiam simplesmente copiar e colar a jogabilidade 2D em 3D, ipsis literalis. O que nos levou a jogos como FIGHTING FORCE ou CRISIS BEAT — não exatamente desastres, mas sejamos honestos: eles não salvaram um gênero que já estava caminhando para o crepúsculo na era dos 16 bits.

Então veio a Kalisto Entertainment, que se arriscou e tentou evoluir o beat 'em up para uma nova era. Eles não adicionaram apenas bonecos tridimensionais, eles adicionaram um level design exploratório, combos rudimentares e um tom mais sombrio e melancólico. O que eles criaram foi algo que eventualmente chamaríamos de "hack and slash", o sucessor espiritual dos antigos beat 'em ups. Com o tempo, esse ramo da árvore genealógica dos games cresceu para absorver sistemas de RPG, design de mundo aberto e progressão de personagens — até chegarmos a coisas como The Witcher 3 ou NieR: Automata: épicos grandiosos e extensos que são, em um certo sentido, os bisnetos de FINAL FIGHT e RENEGADE.

E foi a Kalisto Entertainment que deu o primeiro passo, hesitante, porém revolucionário, com um joguinho chamado NIGHTMARE CREATURES. Claro, era bem rudimentar, mas lançou as bases sobre as quais muitos estúdios maiores se baseariam mais tarde. E, francamente, a Kalisto nunca recebeu o reconhecimento merecido por praticamente inventar o que se tornaria o gênero de ação mais popular do planeta na atualidade.


Mas essa história eu já a contei dois anos atrás (nossa, já faz tanto tempo assim? O tempo voa quando estamos sofrendo com a biblioteca de jogos licenciados da Titus). Cortamos agora para o ano 2000 e temos a Kalisto lançando Nightmare Creatures 2. Que, no meu otimismo ingênuo, presumi que seria apenas Nightmare Creatures... mas, sabe, 2. Mais monstros, mais becos góticos de Londres, talvez um combate mais intenso e bum: estamos bem.

É, mas não. Em vez de se acomodar no cadáver reconfortante do gênero que praticamente foram pioneiros, a Kalisto fez o que só loucos (e, aparentemente, desenvolvedores franceses) fariam: inventaram um gênero totalmente novo. De novo. Qualé pessoal, deixem alguns generos para o resto de nós inventar!

De qualquer forma, hoje veremos como a Kalisto Entertainment conseguiu fazer história não apenas uma, mas duas vezes — e por que Nightmare Creatures 2 não é apenas "uma sequência", mas algo muito mais estranho e, à sua maneira, meio brilhante.


Nossa história aqui retoma os eventos do primeiro jogo: estamos em 1816, e Adam Crowley (provavelmente o primo menos famoso e ainda menos sociável do Aleister Crowley) acaba de ser deixado para morrer por nossos heroicos caçadores de monstros. Mas sendo um mestre em alquimia e ocultismo — e, como cabe a um bom vilão, teimoso demais para permanecer morto — Crowley consegue se manter em um estado de semivida. Adjacente a um morto-vivo, por assim dizer.

Cem anos depois, em 1916. A Europa está atolada na miséria da Primeira Guerra Mundial e, naturalmente, é quando um bando de esquisitos encapuzados que se autodenominam Irmandade de Hécate decidem investigar livros proibidos de história. Eles descobrem as conquistas grotescas de Crowley de um século antes e chegam à conclusão lógica e ocultista: "Ei, vamos trazer esse lunático de volta. O que poderia dar errado?"


Entra em cena nossos aspirantes a heróis, um grupo secreto de caçadores de monstros conhecido apenas como "o Círculo". E no meio dessa confusão gótica surge Herbert Wallace, nosso protagonista estiloso da Era Edwardiana.

DEIXA EU ADIVINHAR: O JOGO É SOBRE WALLACE PARTINDO EM UMA JORNADA HERÓICA PARA DETER A IRMANDADE E, DEPOIS, LUTAR CONTRA ADAM CROWLEY NO FINAL DE QUALQUER FORMA.

O quê? Não, claro que não, Jorge. Isso seria chato. O que realmente acontece é que Herbert tenta... e falha espetacularmente. A Irmandade o captura e faz experimentos ocultistas ao ponto de deixa-lo mutilado mais do que um pouco insano. Quando terminam, Herbert é descartado como lunático quebrado cambaleando pelas ruas imundas de Paris.

O jogo começa de verdade quando Crowley finalmente ressuscita e libera seu novo pesadelo sobre a Europa. Enquanto a cidade desmorona sob o peso de monstros, pestes e uma destruição generalizada, as paredes do hospício também desmoronam e Herbert Wallace está livre, horrivelmente desfigurado, movido por sede vingança e pura insanidade. E ele tem um machado.

Tenho que dar os créditos à Kalisto Entertainment: em vez de nos dar um herói pulp genérico com cabelo perfeito e um passado trágico (como literalmente qualquer outro jogo de terror gótico faria), eles foram com tudo na direção oposta. Nosso personagem principal é um louco deformado, enfaixado e movido por nada além de vingança e raiva. Em qualquer outro jogo, o coitado do Herbie aqui seria o chefe final. Mas aqui ele é o protagonista — e eu adoro essa escolha.

Melhor ainda, toda a atmosfera do jogo se inclina para essa vibe distorcida. A trilha sonora de Rob Zombie é crua, barulhenta e completamente insana — exatamente o que um jogo sobre um lunático com um machado merece. Os designs dos monstros também evitam se tornar uma cópia de Resident Evil #5847; em vez de copiar e colar zumbis e encerrar o jogo, a Kalisto se entrega ao horror gótico completo: grotesco, surreal e, às vezes, quase belo em sua feiura.

O resultado não é o habitual simulador londrino vitoriano infestado de peste, nem mais um acidente de laboratório da Umbrella Corp. O primo mais próximo aqui se assemelha mais a Alice, do American McGee — onde a loucura não é o acompanhamento, mas o prato principal. O jogo inteiro transborda dessa qualidade descontrolada e febril, e é glorioso por isso.


Também ajuda muito o fato de Nightmare Creatures 2 ter sido lançado bem no final da vida do PS1 — o último suspiro da quinta geração. E, por causa disso, ele extrai até a última gota de poder da caixinha cinza da Sony. Os personagens são enormes e surpreendentemente detalhados para o hardware, e os inimigos são grandes, sinistros e cheios de toques de design distorcidos que transmitem a sensação de "a sanidade foi dar uma voltinha e a gente não sabe se ela volta".

E sim, se toda essa atmosfera de "o mundo enlouqueceu, nada faz sentido, aproveite seu machado" parece estranhamente familiar... bem, deveria. Nightmare Creatures 2 é uma das maiores inspirações da From Software para o que eventualmente se tornaria todo o seu "Soulverse". Você pode até argumentar  que Bloodborne é basicamente Nightmare Creatures 3 em 4K a 60 fps, só que com mais chapéus vitorianos e horror cósmico.

Mas a verdadeira genialidade da Kalisto Entertainment não estava apenas em criar o clima. E é aqui que damos a volta completa: o ponto que eu abri o texto em que, pela segunda vez consecutiva, eles não apenas criaram um jogo — eles praticamente criaram um gênero totalmente novo. De novo.


Então, aqui está como a jogabilidade realmente flui: Nightmare Creatures 2 é tecnicamente um hack 'n slash — mas não o tipo de hack 'n slash comum de "esmagar o botão até o controle chorar". Em vez de recompensar o aperto de botões sem sentido, o jogo o pune brutalmente. Se você apenas disparar ataques, os inimigos irão calmamente parryar e então retribuir seu entusiasmo com um agarrão que drena sua vida até você se arrepender de cada escolha de vida que vc fez até aquele momento.

Não, a maneira como você deve jogar NC2 é quase como um duelo de verdade. Pense menos no caos de Devil May Cry e mais na paciência de BUSHIDO BLADE. Você espera por uma abertura. Você não dá nenhuma. Você desvia. Você bloqueia. Cada golpe importa porque os personagens parecem pesados, presos ao chão por peso e momentum, e seu alcance realmente importa. Não se trata de apertar botões mais rápido que o monstro — trata-se de saber quando bater e quando recuar.

E sim, o jogo trava automaticamente o alvo, centralizando o movimento no inimigo. Porque, DOIS ANOS ANTES, THE LEGEND OF ZELDA: Ocarina of Time já tinha mostrado como fazer um jogo de luta 3D em que vc não fica flutuando pelo cenário. PORQUE IMAGINA LANÇAR UM HACK 'N SLASH 3D SEM TRAVAR O MOVIMENTO NOS INIMIGOS, NÉ HERCULES: The Legendary Journeys?

...Desculpem, me passei.

Outra coisa que eu PRECISO dizer sobre esse jogo: COMO A CAMERA É BOA. Sério, eu reclamei tanto de camera nessa quinta geração que eu cheguei a considerar que eu era um biruta exigindo algo fisicamente impossível, mas não. Taí. E o que eu pedia não era simples: a camera fica atrás do personagem quando ele vira e não entra dentro das paredes pra te impedir de ver o jogo. Só isso. Era realmente só isso que eu passei ANOS pedindo, e viu como dava pra fazer? Eu não sou louco! ... tá, eu sou, mas não sobre isso!!

O que quero dizer é que este é o verdadeiro cerne de Nightmare Creatures 2: duelos tensos e deliberados um contra um, onde timing, espaçamento, bloqueio e esquiva importam — e onde o peso da sua arma não é apenas cosmético, ele muda a forma como você luta. 

Agora pare um segundo. Pense nisso. Um hack 'n slash em terceira pessoa construído em torno de duelos, com forte ênfase em movimento, timing e punição por erros? Parece familiar? Sim, você está pensando o mesmo que eu, esse jogo é basicamente um proto-soulslike. O primeiro rascunho do gênero que a From Software mais tarde refinaria e se tornaria um fenômeno global — e do qual até mesmo séries como Assassin's Creed e (de alguma forma) Final Fantasy começariam a se inspirar anos depois.

Então, o verdadeiro jogo aqui é o timing: você espera por aquela preciosa abertura e tenta acertar um combo — algo como Quadrado, X, X ou X, Quadrado, Quadrado. Mas aqui está o problema: você precisa conectar fisicamente os três golpes, porque o posicionamento realmente importa. Se você conseguir, será recompensado com literalmente decepando um membro do seu oponente em gloriosa ultraviolencia. E se você conseguir decepar os dois braços o inimigo fica indefeso, e você pode finalizá-lo logo no início com um fatality brutal — ou, se estiver se sentindo paciente (ou não conseguir engatar o combo), pode continuar dando chip damage até que a barra de vida dele finalmente acabe. 


E permita-me dizer: Nightmare Creatures 2 faz muito bem essa parte. O combate é surpreendentemente satisfatório — cru, deliberado e pesado de uma forma que parece correta. O que não é surpresa, dado que anos depois todo o mundo dos games perceberia que "combate soullike" é extremamente satisfatório.

Mas aí surge a pergunta óbvia: se o combate é genuinamente tão bom, e o que ele faz é o mesmo que mais tarde tornaria jogos como Dark Souls ou Bloodborne clássicos amados... então por que Nightmare Creatures 2 não é mencionado com a mesma paixão? Por que não é aclamado como uma obra-prima oculta da 5ª geração? Bem... tem alguns problemas aqui. E eles prejudicam toda a experiência — às vezes de forma dolorosa.

Veja, as pessoas adoram usar a expressão "à frente do seu tempo", mas raramente ela se encaixa tão perfeitamente quanto em Nightmare Creatures 2. Porque aqui está a questão: NC2 realmente faz tudo o que se propõe a fazer muito bem... mas conseguir isso consome até a última gota de potência do pobre PS1. Os desenvolvedores tiveram que levar o hardware ao seu limite absoluto apenas para que aqueles modelos de personagens enormes, inimigos detalhados e o combate pesado de cortar membros funcionassem como o esperado.

Eita, ós as maluca mostrando a felpucia no PS1 bicho!

E essa abordagem de força bruta teve um custo — um custo bem alto. Todos aqueles recursos de sistema investidos para fazer o combate parecer e ser ótimo significavam que não havia muito mais sobrando para, bem... qualquer outra coisa. 

O que isso significa na prática é que Nightmare Creatures 2 não tem o melhor design de níveis do mundo. O jogo é basicamente uma série de duelos em corredores, enxague e repita até chegar ao fim da fase. Também não há praticamente nenhuma variedade de armas — e também não há exatamente um zoológico de diferentes tipos de inimigos. É um ponei de um truque só: um truque que executa muito bem, sem dúvida, mas que inevitavelmente começa a ficar sem graça mais cedo do que você gostaria.

De certa forma, não é diferente de Bushido Blade: depois de ver o que o torna especial — aquele combate tenso e baseado em fisica e timing —, não tem muito mais para continuar te surpreendendo. Exceto por uma pequena diferença: Bushido Blade é um jogo de luta de 20 minutos que você pode jogar em partidas curtas, enquanto Nightmare Creatures 2 arrasta essa experiência por cerca de seis horas.

Então, sim, o jogo precisava de mais — mais variedade, mais complexidade, mais maneiras de surpreender o jogador — para realmente se tornar o clássico que merecia ser. Mas no ano 2000, o PlayStation simplesmente não tinha como dar mais que isso, forçar mais provavelmente teria feito um buraco no chão da sua sala.

Levou, literalmente, quase uma década para que a tecnologia finalmente alcançasse o que o gênero precisava para funcionar. Foi somente em 2009 — nove longos anos depois — que a From Software pegou as ideias centrais de combate de Nightmare Creatures 2 e as fundiu com um design de níveis extenso e labiríntico, saído diretamente de um Metroidvania. Em seguida, eles adicionaram uma narrativa imponente e onírica, uma evolução de personagens no estilo RPG e um bestiário de inimigos tão bizarro, apavorante e descaradamente lovecraftiano que até os fãs de BERSERK tiveram que concordar em sinal de aprovação. Em outras palavras, levaria duas gerações inteiras de consoles até que Demon's Souls finalmente pudesse realizar o que Nightmare Creatures 2 só pode sonhar em ser.

A Kalisto Entertainment sonhou com um sonho ousado e surpreendentemente bem concebido — um proto-soulslike construído com combate intenso, atmosfera de terror e um anti-herói insano no centro. Mas o PlayStation simplesmente não estava pronto para essa visão. O hardware não conseguia dar o suficiente para dar ao jogo variedade, complexidade ou escopo à altura de sua ambição. E essa, no fim do dia, é a maior falha de Nightmare Creatures 2: ele ousou ir além do que era tecnicamente possível na época. No fim das contas, é uma relíquia ao mesmo tempo bela e trágica — um experimento à frente de seu tempo, cuja influência só floresceria plenamente anos depois do fim da Kalisto.


Então, sim, Nightmare Creatures 2 tem falhas — às vezes, dolorosas. É repetitivo, tem pouca variedade e range sob o peso de um PS1 fazendo o possível para não explodir em chamas. Mas mesmo com tudo isso, é um jogo que ousou sonhar mais alto do que sua geração poderia oferecer. Nos deu um louco trágico e desfigurado como herói anos antes do grande boom de anti-heróis edgy dos anos 2000; construiu seu combate em torno de peso, timing e punição anos antes de "soulslike" ser sequer uma palavra; e envolveu tudo em uma trilha sonora que soa como uma raiva em um mosh pit.

É brutal, desajeitado e um pouco mal polido as vezes — mas também é um antepassado estranho e fascinante de um dos gêneros modernos mais amados. E só por isso, já vale a pena pegar o machado e ver o que a Kalisto Entertainment tentou mostrar ao mundo — quase uma década antes do que seria tecnicamente possível.

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