sexta-feira, 26 de setembro de 2025

[#1562][Fev/2000] DANGAN


A desconstrução de gênero sempre foi uma das minhas abordagens favoritas em qualquer mídia — especialmente porque não é nada fácil de executar. Para desmontar um gênero, você precisa primeiro entendê-lo de cabo a rabo e isso significa captar não apenas as regras e os clichês que o definem, mas também as razões subjacentes do PORQUÊ essas regras existem em primeiro lugar. Só depois de dominar o que faz um gênero funcionar é que você pode começar a fazer perguntas incômodas, subverter expectativas e propor cenários “e se” que forçam o público a reconsiderar a fundação de tudo. Quando bem feito, é genial — vide obras como Madoka Magica, Neon Genesis Evangelion ou Orgulho e Preconceito (sim, Jane Austen tinha uma visão absurdamente lúcida um século antes do seu avô nascer): um comentário artístico, um espelho voltado para as convenções. Quando mal feito, é só uma bagunça.

Porque tem o seguinte também: às vezes, o que chamamos de “desconstrução” não é intencional. Às vezes, uma obra acaba desmantelando um gênero simplesmente porque falha em entendê-lo. Em vez de desmontá-lo com precisão cirúrgica, ela apenas tateia no escuro, ignorando princípios fundamentais que existem por um bom motivo. E, ao fazer isso, ela mostra involuntariamente o porquê desses princípios estarem ali em primeiro lugar.


Pegue o gênero beat 'em up, por exemplo. Se você já jogou um — mesmo que casualmente — com certeza está familiarizado com o clássico sinal de “Go”. A fórmula é simples: você avança, a tela trava, ondas de bandidos (ou punks, por alguma razão o beat'm up tem uma política muito rigida em surrar todos os punks da cidade apenas por eles existirem) surgem, e você não pode prosseguir até ter limpado o último deles. Só então um grande “Go” piscando (ou algo do tipo, como “Hurry!”) aparece na tela, dando permissão para você seguir com a pancadaria.

Estamos todos tão acostumados com essa mecânica que raramente paramos para fazer a pergunta óbvia: pra quê? Por que esse clichê existe? Por que os desenvolvedores optaram por travar a tela até que todos os inimigos sejam eliminados? Que problema isso estava resolvendo?


A resposta, se você parar para pensar, é bem simples: se eles não fizessem isso, nada impediria você de correr pela fase inteira e chegar à saída sem dar um único soco. Isso não seria um “beat 'em up” , seria apenas... um “walk 'em by”. Ou talvez um “m'up”, se você quiser ser bem minimalista. O ponto é que o travamento de tela não é apenas uma esquisitice aleatória — é uma solução de design deliberada e um pilar do gênero.

E por que estou falando disso? Porque é aí que entra Dangan, uma peculiaridade do PS1 exclusiva do Japão que me ensinou o verdadeiro significado dessa escolha de design ao ignorá-la completamente. Dangan é um híbrido de top-down shooter e beat 'em up que não usa travas de tela. O que significa que, quando os inimigos aparecem, nada — absolutamente nada — impede você de passar correndo por eles. Você pode deixar grupos inteiros de potenciais agressores para trás, olhando para você com cara de tacho.

E essa omissão de algo que parecia tão pequeno acaba se tornando todo o ponto que quebra o jogo. Sem perceber, Dangan se torna uma desconstrução acidental de beat 'em ups. Ao se recusar a usar um dos pilares mais básicos e testados pelo tempo do gênero, ele te força a pensar: “Ahhh, é por isso que eles faziam daquele jeito!” E, por mais educativo que isso seja na sua formação gamer, não muda o fato que o jogo parece inacreditavelmente bobo sem isso.


Então, sim, Dangan é uma grande tolice porque não há nada, de fato, te impedindo de correr direto para a saída. Claro, de vez em quando o jogo joga um obstáculo na sua frente, como um veículo inimigo que fisicamente bloqueia seu caminho, mas esses momentos são raros e quase parecem acidentais, como se os designers apenas tivessem spawnado aquele inimigo ali e por acaso acontece dele estar bloqueando o caminho. Ainda sim, na maior parte do tempo você pode simplesmente correr de todos os inimigos como se estivesse atrasado para o ENEM.

Agora, para ser justo, você pode lutar. A opção está lá. Mas por que você faria isso? Não há literalmente nenhum incentivo — zero pontos a serem conquistados, sem loot, nenhuma recompensa além da sensação calorosa de arriscar voluntariamente sofrer dano por nada. Até porque os inimigos respawnam infinitamente, apenas para garantir que vc tenha certeza que parar para lutar não é só uma tremenda perda de tempo, como você só vai perder recursos sem ganhar absolutamente nada em troca.


Ainda assim, vamos dar o crédito onde é devido: se você escolher lutar, as mecânicas em si não são terríveis. Para um híbrido de shooter top-down/beat 'em up, o básico é surpreendentemente sólido. Seu personagem responde rápido, move-se em um ritmo ágil, e seus socos têm um alcance respeitável com detecção de colisão limpa. Até as armas vêm em uma variedade pequena, mas genuína, o suficiente para evitar que o projeto pareça um placeholder completo. Mas aí está o problema: toda essa jogabilidade funcional e decente é deixada à deriva em um vazio de design. O jogo te entrega um conjunto de movimentos responsivos e um sistema de combate que funciona... mas se esquece de dar a você um motivo para usá-los. É como construir uma churrasqueira perfeitamente funcional numa casa onde todos são veganos.

A história... bem, eu não tenho a menor ideia. O jogo nunca foi lançado fora do Japão, e digamos que eu não sou exatamente fluente em waifuês. Mas honestamente, duvido que eu esteja perdendo muita coisa. As cutscenes entre as missões são pequenos clipes em CG onde nada visualmente dramatico acontece, com apenas uma caixa de texto jogada por cima — e, mesmo para um jogo de PS1, essa é uma escolha bizarra. Sem dublagem, apenas uma energia de cinema mudo com CGI de meados dos anos 90. Se tem algo que grite “orçamento apertado” mais que isso, eu desconheço.


E isso é Dangan em poucas palavras: uma peculiaridade do PS1 tão obscura que eu suspeito que até os próprios desenvolvedores esqueceram dela uma semana após prensarem o disco gold. Tecnicamente, não é um desastre. Os controles funcionam, o combate é funcional, o co-op é perfeitamente utilizável... mas nada disso o salva de ter um dos piores level designs que eu já vi na minha vida. Quando seu loop de gameplay incentiva os jogadores a ignorar 90% do conteúdo, você tem um problema bem sério aqui. Como a revista Gamers tão bem colocou, "esse jogo não causaria impacto se fosse lançado em 1994, quando o Playstation foi lançado. Imagine o impacto na era do PS2". Palavras mais verdadeiras jamais foram ditas.

E por falar na Gamers... Olhando em retrospecto, acho que eu não deveria ter ficado surpreso. Em 2000, a Gamers passou a ser semanal em uma tentativa desesperada de competir com a internet. Eu sabia que antes cedo do que tarde eles estariam raspando o fundo do tacho pra achar o que resenhar. O que eu não fazia ideia era o quão fundo esse panelão ia — ou que, lá no fundo, eu encontraria Dangan, acenando para mim com todo o desespero de um jogo que está sendo lembrado por alguém pela primeira vez em mais de vinte e cinco anos.

MATÉRIA NA GAMERS
EDIÇÃO 065 (Maio de 2000 - Semana 3)