quinta-feira, 4 de setembro de 2025

[#1546][Mar/2000] SOLDIER OF FORTUNE


No ano 2000, os FPS já se aproximavam da sua primeira década de existência. O que significa que, àquela altura, praticamente todas as ideias básicas já haviam sido feitas, refeitas e exploradas até a vaca miar. Não dava mais para simplesmente botar um rifle nas mãos de um soldado sem rosto e esperar que as pessoas se importassem. Nem com um com rosto,  para esse proposito. Quer dizer, sim, tecnicamente vc podia fazer isso, mas não se surpreenda quando todo mundo cagar para o seu jogo. Em 2000, você precisava de um gancho, um ponto de venda, algo para fazer seu FPS se destacar na multidão de jogos de atirar em nazistas/zumbis/demonios que já haviam inundado o mercado.

E se alguém entendia isso, era a Raven Software. Esses caras não eram apenas veteranos da indústria — eles praticamente foram padrinhos de batismo dos FPS. Por isso eu quero dizer que o escritório deles ficava literalmente na mesma rua da ID Software. John Romero passava por lá para jogar RPG de mesa com eles, John Carmack dava conselhos de programação como um vizinho emprestando açúcar, e Romero até projetou uma fase para o HEXEN: Beyond Heretic deles. Então eles realmente estavam sentados na primeira fila quando WOLFENSTEIN 3-D abalou o mundo e quando DOOM reescreveu tudo que pensavamos sobre jogos ocidentais. Com efeito, a Raven era tão buddy-buddy com a ID Software que mais pra frente eles próprios fizeram sequencias de IPs fundamentais da empresa como Quake 4 e o Wolfenstein de 2009. Então, é, sse alguém podia dizer que sabia uma coisa ou duas sobre design de FPS, eram esses caras.

O que nos traz de volta ao ponto: na virada do milênio, não era possível sobreviver no universo dos FPS sem um gancho. Você precisava de algo ousado, algo chamativo, talvez até algo controverso — porque, sejamos sinceros, publicidade negativa é muito melhor que publicidade nenhuma. E a Raven tinha uma ideia do que esse gancho poderia ser.

E esse gancho era, claro, violência.

[HÃ, VIOLÊNCIA? EM 2000? A ESSE PONTO ISSO NÃO ERA MAIS EXATAMENTE NOTÍCIA DE PRIMEIRA PÁGINA. ESSA DISCUSSÃO TINHA SIDO AO QUE, OITO ANOS ATRÁS?]

Hmm, entendo seu ceticismo, Jorge. E você tem razão — no final dos anos 90, até os exclusivos do Nintendo 64 estavam espalhando cérebros na tela como se não fosse da conta de ninguém (sim, estou olhando para você, Cerebral Bore do TUROK 2: Seeds of Evil). Mas aqui está a coisa: a Raven não fez apenas "um" jogo violento. Eles fizeram "Ô" jogo violento. Chamar Soldier of Fortune apenas de "um jogo violento" seria como chamar A Onda de apenas "um filme sobre pessoas com ideias políticas pouco convencionais". 

O que a Raven lançou foi, sem exagero, o videogame mais terrivelmente violento que eu já vi em toda a minha vida — e acredite, eu já vi jogo pra caramba (embora eu não esteja a par com os jogos recentes de Mortal Kombat, faço essa ressalva). Seja como for, o tipo de violencia que eu estou falando aqui é o tipo de violência que faria Kentaro Miura — o homem que fez "entranhas se espalhando como linguine" serem apenas uma tarde de terça comum em  BERSERK — largar a caneta e dizer: "Carai manos, peguem leve ae".

[AGORA VOCÊ ESTÁ EXAGERANDO. NÃO PODE SER TÃO VIOLENTO.]

Ah, mas pode. Permita-me pintar um quadro: imagine você atirando com uma espingarda em alguém à queima-roupa. Só que o tiro não o mata imediatamente, ela arranca sua perna. Ele cai no chão, se contorcendo, uivando de puro pânico. E não é um ferimento limpo — afinal, espingardas não são instrumentos cirúrgicos. Seu osso exposto se projeta do toco destroçado, se mexendo no meio da carne amputada enquanto ele arranha o chão, gritando por socorro. Ele está tecnicamente "fora de combate", mas o jogo não o transforma de imediato em um cadáver. Não, você decide se quer acabar com o sofrimento dele com um tiro de misericórdia... ou apenas ficar parado ali, ouvindo enquanto ele sangra até a morte, gritando até a vida se esvair. O que te der vontade, na verdade.

[ISSO É... ISSO É A COISA MAIS HORRÍVEL QUE JÁ OUVI EM UM VIDEOGAMES.]

Eu disse que não estava exagerando, Jorge. É com esse nível de sanguinolencia que estamos lidando aqui. Um tiro de espingarda à queima-roupa no estômago em Soldier of Fortune não é como em MEDAL OF HONOR, onde os inimigos elegantemente apertam a barriga e desmaiam no chão com classe. Não. Aqui, você abre o pobre coitado com um tiro, e a Raven Software garante que você veja cada intestino se contorcendo enquanto ele sangra — porque sim, eles realmente animaram as entranhas se movendo em tempo real enquanto sua vítima morre.


E não pararam por aí. A Raven exagerou nas animações de morte, Soldier of Fortune é, sem dúvida, o FPS com mais pontos de reação já programados em NPCs que eu lembro de ter visto. Os inimigos reagem de forma diferente dependendo de onde você os atinge, e a variedade é absurda. Uma bala na mão, no ombro, no peito, na garganta... cada uma vem com sua própria animação personalizada. E, sejamos honestos, metade do "charme" (na falta de palavra melhor) é catalogar morbidamente todas as maneiras possíveis pelas quais seus oponentes podem se dobrar, gritar e morrer de agonia.

[ISSO É A FORMA DE VOCÊ DIZER QUE PASSOU O JOGO TODO TENTANDO ATIRAR NA VIRILHA DOS INIMIGOS, NAÕ É?]

Jorge, olha, eu posso ser acusado injustamente de muitas coisas nesta vida, mas ter um senso de humor que nunca amadureceu além da quinta série? É, disso eu sou realmente culpado. Então, quando eu disse que a Raven Software sabia que seu jogo tinha que se destacar, eu não estava brincando — e eles também não. A engine de QUAKE 2, bastante modificada, possui 26 zonas de impacto distintas. Você não estava mais apenasa atirando nos inimigos — você estava basicamente tendo uma aula prática de anatomia com munição real.

A Raven se empolgou tanto com isso que na provincia da Colúmbia Britanica, no Canadá, Soldier of Fortune teve uma classificação padrão "Mature". Mas começaram a vir tantas reclamações sobre o quão grotesco o gore era que os reguladores voltaram, analisaram novamente e disseram: "Não. Isso não é apenas um jogo. É um filme adulto". Eles literalmente classificaram o jogo como pornografia. Não estou brincando — a Raven criou um jogo tão graficamente violento que o Canadá o considerou legalmente o equivalente digital de pornografia hardcore. É esse o nível da coisa.

É claro que, para que esse nível de violência fosse realmente divertido, a Raven não podia simplesmente te jogar em um campo de batalha cheio de recrutas azarados que estavam "apenas cumprindo ordens". Não, não, não — isso seria deselegante. Ninguém quer ver um pobre garoto digital recrutado pelo serviço militar obrigatório ter seus membros arrancados de 26 maneiras diferentes. Se você vai entregar um festival de sangue com detalhes tão viscerais (literalmente), precisa de inimigos tão vis, tão caricaturalmente malignos, que os jogadores possam apertar o gatilho sem uma única pontada de culpa.

E é exatamente isso que Soldier of Fortune oferece. Você não é um soldado em serviço patriótico — você é um mercenário sob contrato da ONU, eliminando a mais absoluta escória da humanidade que os anos 90 tinham a oferecer. Estamos falando de skinheads sul-africanos que acham que o Apartheid foi pouco e tinham aspirações de "fazer uma limpeza étnica direito", escravagistas traficantes de crianças em Uganda, torturadores de Saddam Hussein ocupados com hobbies medievais, os sabores mais repugnantes da Yakuza e, claro, a sempre confiável máfia russa. É basicamente uma viagem ao redor do mundo da imundície humana, embrulhada perfeitamente em um briefing de missão.

Então, alguns jogos propõe debates éticos e tons de cinza... mas não esse aqui. Isto é o mais preto no branco possível: monstros em pele humana de um lado e você com um rifle anti-tanques do outro. E eu queria poder sentar aqui e dizer que sou uma pessoa melhor do que assistir a um skinhead racista dar seus últimos suspiros enquanto tenta desesperadamente enfiar seus intestinos derramados de volta para dentro, só para eu rir e dizer: "Hmm, acho que é uma pena que sua suposta supremacia ariana não te torna à prova de balas, né?". Mas se eu dissesse isso, estaria mentindo descaradamente.


E isso é o charme do Soldado da Fortuna. Ele te equipa com as armas mais horríveis e sadicamente satisfatórias já vistas em um videogame até aquele momento — e então despeja uma montanha de vilões irredimíveis no seu caminho só para que você possa go crazy desde os primeiros segundos de jogo já que vc literalmente começa com a melhor arma possível.

De certa forma, Soldado da Fortuna parece o sucessor espiritual de BLOOD (1997). Enquanto BLOOD se deleitava com seu absurdo gótico e de filme de terror — esfaquear zumbis, explodir cultista em chuvas de sangue — Soldado da Fortuna pega esse ethos e o adapta para a era moderna. Saem os símbolos de ocultissmo e o ar camp de filmes B e em seu lugar, estão bandidos paramilitares, ragdolls 3D realistas e sistemas sangrentos tão detalhados que faziam os censores corarem. A filosofia, no entanto, é a mesma: violência não como apenas mais um elemento, mas como todo o espetáculo ao redor do qual o jogo é construído.

O que, eu tenho que dizer, é um uso um tanto estranho para uma IP licenciada.

[ESPERA, LICENÇA DO QUE?!?]

Bem… Soldier of Fortune, a revista. Dã.

[O QUÊ? VOCÊ ESTÁ ME DIZENDO QUE EXISTIA UMA REVISTA DE MERCENÁRIOS, TIPO A REVISTA FLUIR MAS PARA MERCENÁRIOS? ISSO É RIDÍCULO!]


Ok, sim, parece completamente insano quando você coloca dessa forma. Mas é um fato real: a revista Soldier of Fortune foi uma das publicações mais populares nos EUA durante os anos 70, vendendo mais de 120.000 cópias por mês em seu auge. Imagine uma revista de estilo temática para um nicho, só que ao invés da Capricho dar dicas para saber se o gatinho tá afim de vc, eles fazem reviews de equipamentos e estratégias de sobrevivencia no combate para mercenários e "aventureiros profissionais".

A revista foi fundada em 1975 pelo Tenente-Coronel Robert K. Brown, da Reserva do Exército dos EUA (aposentado), um veterano do Vietnã que serviu nas Forças Especiais. Após se aposentar, Brown começou a publicar um pequeno panfleto com informações sobre contratos de mercenários em Omã, onde um golpe de Estado tinha deixado o país em uma guerra contra insurgentes comunistas. Esse pequeno panfleto se transformou em uma revista de verdade que cobria zonas de conflito, tecnologia militar e — o mais controverso — oportunidades reais de trabalho mercenário.

Em seus primeiros anos, a SOF desempenhou um papel significativo no recrutamento de estrangeiros para lutar na Guerra Civil da Rodésia (que durou de 1964 a 1979). Mais tarde, virou uma plataforma que, intencionalmente ou não, influenciou voluntários que se juntaram à resistência Contra na Nicarágua. Sim, aqueles Contras — os mesmos que inspiraram o nome do CONTRA da Konami. (Mas, apenas para deixar claro, a Konami só achou que "CONTRA " soava legal. Os desenvolvedores japoneses não estavam secretamente executando operações psicológicas da CIA em cartuchos de NES.)


Então, sim. Soldado da Fortuna não era apenas um nome legal para um videogame — era uma revista de verdade voltada para mercenários, sobrevivencialistas... mas principalmente tiozões de sofá que acham que eles resolveriam todos os problemas do mundo com uma arma na mão, talkey? Mesmo Robert K. Brown admitiu em entrevistas que sabia que a maioria de seus leitores pertencia ao que ele chamava de "mercado Walter Mitty" — caras que fantasiavam sobre a vida emocionante de mercenário enquanto estacionavam em segurança em suas poltronas reclináveis. Claro, de vez em quando algum pai suburbano fazia as malas, partia para uma zona de guerra e prontamente aprendia que a guerra de verdade é muito menos como Rambo 2 e muito mais sobre descobrir, do jeito difícil, que achar que tudo se resolve só porque você tem uma arma não funciona tão bem quanto na sua fantasia — especialmente quando o outro lado também está armado. A maioria deles levou essa lição até o fim da vida… dali a alguns minutos.

Mas é aqui que as coisas ficam realmente loucas, pq no final dos anos 80 e início dos anos 90, a revista Soldier of Fortune se viu afogada em processos judiciais — porque, aparentemente, seus classificados não listavam apenas equipamentos de sobrevivência e serviços de guarda-costas... eram basicamente convites abertos para cometer assassinatos. Sobreviventes ou familiares de vítimas que foram alvos ou mortas por assassinos de aluguel recrutados por meio desses anúncios levaram a revista aos tribunais. 

Como por exemplo o caso do assassinato de Sandra Black: um veterano do Vietnã chamado John Wayne Hearn publicou um anúncio oferecendo "tarefas de alto risco" e, de alguma forma, foi contratado através da revista para matá-la — por dez mil. A família dela processou ele e a revista por US$ 21 milhões. Um júri concedeu US$ 9,5 milhões em indenizações (embora um tribunal de apelações tenha revertido esse veredito posteriormente por questões técnicas no processo)


Mas esse não foi o único sucesso de bilheteria. Em outro caso, um anúncio de classificados levou à morte de Richard Braun e ao ferimento de seu filho. Um júri condenou a SOF a pagar US$ 12,37 milhões em danos — posteriormente reduzidos para US$ 4,37 milhões.  Dessa vez os tribunais de apelação e a Suprema Corte mantiveram a sentença.

Depois disso, obviamente eles cancelaram os classificados de "mercenários de aluguel" que quase levaram a revista a falencia. Houve também uma grande discussão na época que era contra a constituição americana a imprensa ser responsabilizada pelo que as pessoas faziam com o que era publicado, mas por garantia a Soldier of Fortune realmente não quis pagar para ver. Hoje, a Soldier of Fortune continua viva como uma revista online sob a direção de Susan Katz Keating. Ainda é bizarro, sim — mas hoje é mais um site para nerds militares do que anúncios de mercenários de aluguel.

[TÁ, INTERESSANTE MAS... O QUE TUDO ISSO  TEM HAVER COM O JOGO EM SI?]

Sinceramente, não muito. Mas, já que a Raven Software se deu ao trabalho de adquirir a licença da Soldier of Fortune, imaginei que esta seria minha única chance para falar sobre um dos crossovers multimídia mais estranhos já criados para um videogame. E olha que eu já falei de um jogo baseado em uma linha de brinquedos sobre bonecos de teste de colisão da vida real, né THE INCREDIBLE CRASH DUMMIES?

Mas vamos voltar ao assunto. Porque, por mais que eu goste de assistir vilões poligonais se desintegrando de maneiras lindamente grotescas que deixariam um cirurgião de plantão do SUS enjoado, a verdade é a seguinte: se pararmos de falar sobre atitude e formos falar sobre a jogabilidade em si... hmm, as coisas ficam meio complicadas.

Primeiro, os inimigos. Todos são hitscanners (eu já expliquei esse termo uma dúzia de vezes nesse blog, seja um amorzinho e use a caixa de pesquisa, tá bom?), e pior ainda, seu dano é aleatório. O que quer dizer que não apenas eles te acertam automaticamente como podem tirar nacos gigantescos da sua vida sem que vc possa fazer nada a respeito. 

Isso fica pior ainda por causa do posicionamento, já que o level design aqui é deliberadamente sacana. Os inimigos spawnam atrás de você, ou pior, se materializam atrás de portas só depois que você já passou por elas. E como se não bastasse, certas áreas geram inimigos infinitamente. Às vezes, spawns infinitos podem fazer sentido para a atmosfera ou a tensão, mas aqui é muito mais apenas pra te dizer: "Ah, você achou que tinha limpado a sala? Que fofo. Morra de cansaço então."


E, por fim, mas não menos desgracento, a neblina. Sim, a famosa neblina nos jogos de 1999 para diminuir a distancia que vc encherga e impedir seu Pentium II de explodir em chamas renderizando um quilometro virtual inteiro. Muitos jogos dessa época fazem isso, só que aqui é particularmente pior pq o nevoeiro afeta apenas vc. Então embora você não consiga ver absolutamente nada através da neblina, os inimigos conseguem. O que significa que você vai passar metade do jogo tomando tiros de fora da tela. Tiros de hitscan, ainda por cima. Isso mesmo: hitscanners. Fora da tela. Na neblina. Se você já se perguntou como é ser um pato em uma galeria de tiro, a Soldier of Fortune tem o prazer de lhe dar essa lição.

Na época a maioria das revistas deu a Soldier of Fortune uma nota em torno de 7/10 ou 3,5/5 estrelas, e sinceramente, eu concordo 100%. O tom, a atitude, o absurdo e alegria de seu sistema de gore — é um 10 sólido em qualquer dia da semana. Mas, depois de tirar os membros decepados e as cabeças pela metade da frente, a jogabilidade em si se apoia demais nos truques mais baratos do manual dos FPS. Dano aleatório hitscanner, spawns maldosos, neblina que trapaceia mais que seu irmão mais novo em GoldenEye em tela dividida — tudo isso é material para "cinco, no máximo seis em dez".

Então, sim, essa média de 7/10 me parece bem razoavel: acima da média, mas não por muito. E essa é a parte meio triste. Porque com um conceito tão exagerado, tão divertido no papel, é impossível não desejar que o design tivesse se mostrado à altura em vez de arrastar a experiencia para baixo. Soldier of Fortune não precisava ser perfeito, mas, cara... merecia ser mais do que apenas "o jogo com a espingarda que faz as pessoas explodirem".

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 168 (Outubro de 2001)


MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
EDIÇÃO 073 (Abril de 2000)



MATÉRIA NA GAMERS
EDIÇÃO 062 (Abril de 2000 - Semana 4)


EDIÇÃO 068 (Junho de 2000 - Semana 2)