Em 2000, era normal — quase esperado — que boa parte dos jogos japoneses nunca saíssem do Japão. As publishers frequentemente acreditavam que o custo da localização não compensaria: esses títulos pareciam muito específicos, muito imersos na cultura local para venderem o suficiente no exterior... o que era verdade na época. Também é verdade agora que a cultura japonesa está muito mais inserida na vida global do que há mais de vinte anos — você certamente vai ter bem mais facilidade para encontrar um público hoje disposto a pagar por um gacha com garotas-cavalo do que na era do PS2.
Dito isso, a maioria dos jogos que ficaram no Japão não são tragédias pelas quais devemos chorar. Mais frequentemente sim do que não, eram mais curiosidades esquisitas do que experiencias para levar para toda sua vida — pense bem mais em ROOMMANIA #203 do que em WONDER PROJECT J. Ainda assim, de vez em quando, um jogo verdadeiramente notável ficava sem tradução, um crime que só encontraria justiça décadas quando uma tradução feita por um fã mostraria ao resto do mundo tudo o que perdemos. Aconcágua é um desses casos.
[ESPERA UM MINUTO, EU JÁ VI VOCÊ JOGAR ESTE JOGO. É OKAY E TAL, MAS EU DIFICILMENTE O CHAMARIA DE "OBRA-PRIMA".]
E não é, nem de longe, Jorge. O que torna Aconcágua memorável não é o roteiro ou os puzzles. O verdadeiro presente que nos foi negado por décadas não é a jogabilidade, mas sim o fato que esse jogo tem o melhor nome de personagem da história dos videogames: PACHAMAMA. Isso mesmo, tem uma personagem literalmente chamada PACHAMAMA neste jogo, e por anos nos foi negada essa glória. PACHAMAMA, Jorge!
[...OK, ESTOU REVOGANDO SEUS DIREITOS DE ASSITIR RICK AND MORTY AGORA MESMO — ESTE TIPO DE HUMOR CLARAMENTE TE AFETANDO.]
Bem, minhas tolices à parte, aqui estão os fatos: Aconcágua é um point-and-click para PlayStation 1 que nunca saiu do Japão até que uma tradução feita por fãs finalmente o tornou acessível ao público ocidental em 2022. E sim, também é verdade que Pachamama é o nome de personagem mais legal já pronunciado em um videogame. Mas deixando de lado a nomenclatura divina... do que se trata este jogo, na verdade?
Primeiro, um pouco de geografia. Aconcágua não é apenas um nome chiquetoso — é a montanha mais alta do mundo fora da Ásia. Em outras palavras, o último lugar onde você gostaria de se ver perdido depois de não ter virado a direita em Albuquerque. E em especial essa região dos Andes já carrega um peso de pavor no imaginário popular graças ao filme "Alive", de 1993 — baseado na queda real do voo 571 da Força Aérea Uruguaia em 1972. Os sobreviventes ficaram presos nos Andes por meses e, como é sabido, recorreram ao canibalismo para sobreviver as condições brutais. O filme se inscreveu na lista de traumas coletivos dos anos 90 (logo a direita de tubarões e um pouco antes de dirigir atrás de caminhões carregados de madeiras): não apenas virou uma referência na cultura pop, mas algo que até hoje as pessoas efetivamente pagam extra para evitar voos que cruzavam os Andes.
[ENTÃO ESTE É UM JOGO DE PS1 ONDE VOCÊ FICA PRESO NO ACONCÁGUA E TEM QUE RECORRER AO CANIBALISMO PARA SOBREVIVER? ISSO É INCRIVELMENTE SOMBRIO — NÃO É DE SE ESPERAR QUE NUNCA TENHA SAÍDO DO JAPÃO!]
Bem... sim, mas não realmente. O jogo, sim, usa a seu favor o marketing do pavor que o filme cimentou na mente das pessoas, mas sua execução é muito mais branda. A história do jogo se passa no país fictício sul-americano de Meruza — claramente inspirado na província argentina de Mendoza. Meruza está no meio de uma tempestade política: um movimento rebelde pressiona por eleições livres após anos sob uma ditadura militar pesada. Agora, os generais não estão exatamente entusiasmados com a perspectiva de perder o poder, mas há muita pressão internacional para que eles simplesmente batam na mesa e declarem: "Não, somos uma ditadura sangrenta e vamo meter o pipoco em quem encher o saco!".
Especialmente porque Meruza não é uma república das bananas sudamericana qualquer — é um país rico em gás natural. O que significa que o Tio Sam está rondando a região como um abutre, esperando apenas uma desculpa para trazer "liberdade e democracia" enquanto convenientemente instala um governo fantoche mais favorável aos interesses comerciais americanos. Diante do risco de sanções, isolamento ou até mesmo intervenção militar, os governantes de Meruza adotaram uma solução menos drástica. Eles dão um grande sorriso para as câmeras e dizem: "Democracia? Ora, nós amamos a democracia! Olha, até estamos realizando eleições!"
Claro que se a líder da oposição — o próprio símbolo da esperança democrática — morrer em um acidente repentino, trágico e totalmente casual, como digamos, o avião dela bater nos Andes... bem seria uma tragédia, realmente, mas essas coisas acontecem o tempo todo, né?
Com o dia da eleição se aproximando, o jornalista japones Katoh voa para Meruza para cobrir o evento histórico. No mesmo avião está Pachamama — ativista, filha do presidente deposto e a figura rebelde que o povo apoia. O que, como você pode imaginar, torna este o pior voo que se poderia reservar em Meruza naquele momento. Para o regime militar, é uma oportunidade de ouro: eliminar a face da oposição com um "acidente" do qual nunca se poderá provar nada.
Então, com toda a sutileza de uma marreta, eles plantam uma bomba. O avião explode no ar e cai no próprio pesadelo nevado do Aconcágua. Katoh e Pachamama tentam escapar dos destroços apenas para descobrir uma realidade sombria: de todos a bordo, apenas cinco sobreviventes restaram. Presos nos Andes congelantes, eles precisam se unir, se organizar e buscar um caminho para a segurança. Mas a sobrevivência é apenas metade da batalha. Os militares de Meruza sabem exatamente não podem de forma alguma permitir que essas testemunhas sobrevivam e contem ao mundo o que realmente aconteceu.
Então, como você pode ver, a história por trás de Aconcágua é genuinamente interessante. É mais politicamente fundamentada e enraizada na geopolítica do mundo real do que a maioria dos jogos que eu costumo abordar aqui, e isso por si só já é um diferencial. É claro que, se formos historicamente precisos, as ditaduras sangrentas sul-americanas dos anos 70 não foram exatamente combatidas pela CIA — muito pelo contrário, foram ativamente apoiadas por ela. Mas esse é um ninho de vespas que eu não vou chutar hoje. O que eu vou falar hoje é que você realmente faz em Aconcágua.
E é aqui que o jogo nos traz uma segunda surpresa. Ele não se destaca dos outros da sua época apenas no tom, mas também na mecânica. Porque, em vez de oferecer mais um clone de jogo de tiro em terceira pessoa, RPG ou survival horror, Aconcagua se apresenta como uma aventura point-and-click — um gênero que, no ano 2000, já estava em declínio na maioria dos mercados. No PS1, entre todos os lugares, é praticamente um alienígena.
Ao contrário da maioria das aventuras point-and-click, Aconcagua não coloca você na pele de um único protagonista. Em vez disso, você controla cinco personagens jogáveis, alternando entre eles à vontade com um único toque de botão. O único outro jogo que me vem à mente com uma estrutura semelhante é MANIAC MANSION: Day of Tentacle — mas Aconcagua vai além. Aqui, as habilidades e personalidades individuais dos personagens são o cerne da resolução de puzzles. Cada sobrevivente tem uma habilidade única que você precisará usar para avançar.
Katoh – Nosso protagonista jornalista japonês. Sua habilidade "única" é usar uma luva de escalada para escalar coisas escaláveis. Só isso. A faculdade de jornalismo no Japão deve ser bem doida se é com isso que te formam.
Steve – Um babaca de primeira, mas também um engenheiro elétrico brilhante. Se algo faísca, zumbe ou faz barulho, Steve dá um jeito.
Julia – Ela se apresenta como uma jornalista americana cobrindo a história das eleições. Mas em cinco minutos ela está despachando inimigos casualmente como se estivesse estrelando um filme de ação dos anos 80. Spoiler: ela é obviamente da CIA. Qual é, Julia, você não está enganando ninguém.
Lopez – Outro sobrevivente de acidente e o músculo do grupo. Sua função inteira é resolver quebra-cabeças que envolvem levantar coisas pesadas (sempre com os joelhos, nunca com as costas.)
Pachamama – Por último, mas não menos importante, a própria líder rebelde. Sua habilidade única é que ela é literalmente a única do grupo que fala espanhol. O que significa que é ela quem lê mensagens, decodifica transmissões e interroga inimigos capturados. O que levanta uma questão ainda maior: por que raios um veículo de notícias japonês enviou um repórter para os Andes que não fala uma única palavra de espanhol? E as pessoas ainda se perguntam por que a mídia impressa morreu...
E, para o crédito do jogo, Aconcágua faz bom uso de seu design de quebra-cabeças baseado em personagens. As habilidades realmente importam e — felizmente — as soluções nunca caem na lógica completamente ablublé das ideias que assola tantos jogos do genero. Você não precisa esfregar uma galinha de borracha em uma polia só para abrir uma porta. A lógica aqui é realista, compreensível e até satisfatória quando funciona.
Mas aqui está o problema: Aconcágua também insiste em ser realista demais. Ele só permite que os personagens realizem ações que façam sentido para eles naquele momento específico. O que parece bom na teoria — imersivo, até — mas na prática... a teoria é outra.
Digamos que você já sabe que um motor quebrado precisa de uma engrenagem de reposição. Você já viu isso com outro personagem. Você fez a anotação mental. Agora você troca para um personagem perto das engrenagens em perfeito estado. E ao tenta pegá-la... Não. O personagem apenas diz que não precisa daquilo. Então, o que você faz? Você arrasta o personagem por várias telas, mostra o motor pra ele, espera o momento da lâmpada acender ("Ah, preciso de uma engrenagem!") e então volta a pé para que ele finalmente possa pegar a maldita coisa. É uma burocracia totalmente desnecessária que só arrasta o ritmo e faz o jogo ser artificialmente mais longo da pior forma possível.
Mas, sinceramente, o que provavelmente desanimou a publisher a não lançar o jogo ocidente não foi a resolução de quebra-cabeças, às vezes desajeitada. Claro, isso diminui a diversão às vezes, mas não é tão insuportável. O maior problema foi a apresentação — porque Aconcágua insiste em ser realista e pé no chão.
[HÃ, E COMO REALISMO É RUIM? OS JOGOS NÃO BUSCAM ISSO?]
Bem, sim... e não. Há realismo, e há realismo.
Visualmente, o jogo está comprometido com a autenticidade árida: montanhas cobertas de neve, extensões infinitas de destroços, rochas irregulares e pouco mais. Usando tecnologia 3D completa, o extinto estúdio WAC WAC! construiu um mundo que alterna constantemente entre modelos de baixa poligonalidade na jogabilidade e renderizações mais detalhadas durante as cutscenes. Para a época, o nível de detalhes é impressionante: vastos locais abertos, vários personagens se movendo na tela, neve caindo, fogueiras crepitando. Valores de produção altos e direção de arte de bom gosto.
[VIU? ISSO PARECE ÓTIMO.]
E é... mas tem um porém. Ao se prender a essa atmosfera séria e realista, o jogo deixa pouco espaço para efeitos visuais, piadas ou momentos de alívio cômico que a maioria dos videogames utiliza. Há ação, claro — mas o tom geral é sóbrio, até depressivo, claramente inspirado no filme Alive, de 1993. E embora eu respeite a ambição de tentar entregar um drama realista em uma mídia que geralmente nos dá mascotes coloridos, entendo por que as editoras não achavam que o público ocidental em 2000 clamava por dois discos de uma miséria monótona de sobrevivência.
Agora, pessoalmente eu não me incomodo com isso, Eu aceito todos os tipos de histórias, sérias ou bobas. O que me incomoda não é o tom — é a escrita. Isso porque "superficial" mal começa a descrever. Na verdade, dá a volta completa e chega a ser a ser involuntariamente hilário. Olha, eu econsigo lidar com diálogos ruins, mas quando você tem falas como:
"Olha, imperialistas malignos!" gritam os personagens japoneses e americanos em uníssono.
"¡Jajajaj, soy malo y imperialista!", responde o vilão sul-americano.
É aqui que eu traço a linha.
E, veja, eu realmente respeito um jogo que ousou se aventurar na geopolítica do mundo real anos antes de Assassin's Creed ser sequer um rabisco em um guardanapo. Também dou um elogio extra a Aconcagua por não ser um jogo de apontar e clicar em que a lógica dos puzzles faz Tex Avery parecer completamente são racional em comparação — o que infelizmente acontece mais sim do que não.
Mas, dito tudo isso... não posso fingir que o produto final é estelar. É bom. É interessante. Vale a pena conhecer. Mas não é um conteúdo de primeira linha. Na melhor das hipóteses, parece um filme decente para assistir durante um voo: divertido o suficiente para algumas horas, mas dificilmente o tipo de experiência que mudará sua vida ou redefinirá o meio.
[TEM CERTEZA DE QUE "UM FILME PARA ASSISTIR NO VOÔ" É A METÁFORA QUE VOCÊ QUER USAR PARA UM JOGO SOBRE UM ACIDENTE DE AVIÃO?]
... é, ponto válido. Acho que "curador de filmes de avião" é outro emprego dos sonhos que eu deveria riscar da lista.
MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
EDIÇÃO 074 (Maio de 2000)
MATÉRIA NA GAMERS
EDIÇÃO 063 (Maio de 2000 - Semana 1)