sábado, 29 de novembro de 2025

[#1607][Out/2000] MEDAL OF HONOR: Underground

Há não muitos meses atrás, eu escrevi a review sobre a entrada mais bem-sucedida de Steven Spielberg na história dos videogames. Embora eu recomende fortemente a leitura da minha análise de MEDAL OF HONOR, também sei que você provavelmente não vai – então eis a versão resumida. Depois de filmar "O Resgate do Soldado Ryan", Spielberg ainda estava na pilha de contar histórias da Segunda Guerra Mundial. E, enquanto ele não é exatamente o maior fã do mundo de sequencias (algo que THE LOST WORLD: Jurassic Park provou muito bem), ele também é um nerdão de videogame como qualquer um de nós. Então, ele apresentou à DreamWorks a ideia de usar seu know-how cinematográfico para criar um videogame mais realista, mais pé no chão e mais respeitoso com a era do que o típico jogo de tiro de videogame costumava ser.

E ele não estava brincando. Ele queria o pacote: trilha sonora orquestrada, um veterano de verdade como consultor histórico, ambientes meticulosamente pesquisados, armas com coice e cadencia de tiros historicamente acuradas, comportamento inimigo que pelo menos tentava ser realista dentro das capacidades do PS1… todo aquele jazz. O resultado, MEDAL OF HONOR, foi uma obra-prima que empurrou os videogames um passo para frente enquanto mídia narrativa – não servindo como fantasia de poder adolescente, mas sim usando a tecnologia para criar uma experiência atmosférica e historicamente embasada. Não vou me alongar muito mais sobre o MEDAL OF HONOR original – até porque o que importa aqui é o que aconteceu depois.

Porque, é claro, existe um "depois". 


Veja bem, MEDAL OF HONOR pode ter sido um projeto de paixão para Spielberg e sua equipe, mas paixão sozinha não paga as contas. Para tornar este jogo realidade, eles tiveram que fazer um pacto com o diabo. Ou, mais precisamente, com a Electronic Arts – e desde já eu gostaria de me desculpar formalmente com o Sr. Lúcifer por compará-lo a uma corporação tão sem alma. A EA adquiriu os direitos, e isso significou uma coisa e apenas uma coisa: o sino do almoço havia tocado, e uma franquia novinha em folha, anualizada e produzida em escala industrial estava prestes a entrar em cena.

E assim nasce "Medalha de Honra 2 — Omelette du Fromage Edition", porque nada grita "narrativa autêntica da Segunda Guerra" como a EA afiando suas facas e preparando o sacrifício anual.

Nossa história aqui – porque sim, existe uma história, e o pobre estagiário da EA que sugeriu incluir uma provavelmente foi devorado pelos lobos muito antes do jogo terminar a produção (afinal, tentar transmitir emoção humana viola toda doutrina corporativa da EA) – começa no primeiro MEDAL OF HONOR. Ao longo daquele jogo, muitas das cartas que você encontrou e os briefings que o Tenente James Patterson recebeu mencionavam que sua inteligência vinha da Resistência Francesa. Mais especificamente, de uma espiã operando na Europa ocupada: uma agente conhecida apenas Manon Batiste.


Bem, Underground é essencialmente um prequel. Ele mostra como Manon passou de uma combatente da liberdade anônima para uma lenda dentro da Resistência – alguém que não apenas sabotava os planos nazistas, mas lhes dava enxaquecas tão severas que mais de uma mesa alemã encontrou seu fim sob murros de oficiais ao som de "NEIN! NEIN! NEIN!". E eis a parte genuinamente interessante: Manon é baseada em uma figura histórica real, a extraordinária Hélène Marguerite Deschamps Adams

A história de Hélène é o tipo de biografia que faz até os jogos de ação mais espetaculosos mal escritos. Ela estudava em um convento quando os nazistas invadiram a França, e enquanto a maioria dos adolescentes da sua idade se preocupava com provas ou paqueras, ela decidiu se juntar à Resistência Francesa. Simplesmente assim. "Rebeldia adolescente" é bem diferente quando é contra a Wehrmacht.

Hélène recebendo uma homenagem da equipe de produção do jogo em 2000

Ela começou como mensageira – um trabalho já bem arriscado – e logo avançou para missões completas de espionagem atrás das linhas inimigas. Suas contribuições incluíam relatar sobre aeródromos, campos minados alemães, baterias antiaéreas e defesas camufladas ao longo da costa do Mediterrâneo. Ela salvou paraquedistas americanos de serem capturados em zonas de queda e ajudou famílias judias a escaparem pela fronteira para a Espanha.

Um de seus papéis mais ousados foi se passar por secretária dentro da sede da Milice na França Colaboracionista. Esse era um ninho de colaboradores, dedos-duros e fascistas entusiasmados que mantinham arquivos cheios de nomes marcados para execução ou deportação. Hélène removia silenciosamente vários desses cartões todos os dias, durante meses, efetivamente salvando centenas de vidas. E se você considerar que grande parte da inteligência usada para a invasão aliada do sul da França em 1944 veio de agentes da Resistência como ela – incluindo seus próprios relatórios –, não é exagero dizer que ela ajudou a salvar o mundo. Hélène Deschamps Adams faleceu em 2006, aos 85 anos, de insuficiência cardíaca, tendo recebido numerosas condecorações dos governos americano e francês por seu heroísmo. 

Mas, por mais fascinante que a figura histórica real por trás de Manon possa ser, voltemos aos fatos: este jogo é, antes de tudo, apenas engrenagem nas planilhas de contabilidade da EA. Então, não espere uma experiência narrativa – não espere muito de qualquer experiência, na verdade. Claro, você pode ler alguns briefings se estiver com vontade, mas uma vez que a jogabilidade começa, a mudança de James Patterson para Manon Batiste não significa absolutamente nada. E não estou exagerando: a EA nem se deu ao trabalho de mudar as mãos segurando a arma. Sim, você leu direito. Você supostamente está jogando com uma heroína da Resistência Francesa, mas ainda está olhando para exatamente o mesmo par de mãos grossas de homem americano do jogo anterior. Isso é o quão fundo estamos no território de "engrenagem corporativa". 

Para ser justo, eles pelo menos se esforçaram um pouco no menu. A interface é tão estilosa quanto a do primeiro jogo, embora desta vez esteja emoldurada dentro de um bunker subterrâneo disfarçado de adega. É um toque estético inteligente – destacar adereços diferentes revela submenus como Opções, Multijogador, Novo Jogo, e assim por diante. A apresentação nunca foi um problema da série MEDAL OF HONOR, especialmente sob a supervisão da DreamWorks. Digam o que quiserem, mas eles sabiam como vestir bem um jogo.

É quando você aperta Start, pega o controle e calça as botas de "Com-Certeza-Não-é-James-Patterson-de-Peruca" que Underground começa a parecer bem aquém do original. Os desenvolvedores não mudaram nada nos inimigos. Eles são todos iguais, até as animações de morte recicladas. Nem um único frame novo à vista. É decepcionante, com certeza, mas também extremamente característico da EA: por que inovar quando você pode simplesmente aprovar os mesmos assets, colocar uma nova palavra depois do título e era isso. Os efeitos sonoros também estão inalterados, os mesmos cliques de bala, as mesmas explosões enlatadas, os mesmos gemidos wannabe-Wilhelm que você já ouviu centenas de vezes. Nada disso é ruim per se – apenas descaradamente preguiçoso.

Mas vamos aos problemas reais.


Medal of Honor: Underground é, obviamente, um jogo feito rushado e não é dificil notar isso: passagens são cheias de bugs, chegue muito perto de um canto e a parede começa a vibrar como se estivesse desmoronando. Sua boneca agora enrosca em uma grande quantidade de aberturas que nunca foram problemas no jogo anterior, e mesmo portas que parecem abertas apresentam o risco de vc ficar preso nelas.

Slowdowns são frequentes, especialmente quando muitos inimigos aparecem ou quando você está recarregando - basicamente qualquer coisa que exija mais quadros de animação já faz a programação suar. Tem uma missão em um castelo onde entrei em uma sala de exposições, me aproximei de um canto e tudo ficou pitch black, exceto as vitrines. Era como se os desenvolvedores tivessem esquecido de programar o contato com uma parede inteira. E por mais irritantes que esses bugs sejam, eles não são nada a coisa mais chata do jogo inteiro: inimigos materializam-se do nada. Constantemente. Você limpa uma sala, prossegue com cautela, e de repente – PLAU – um nazista aparece atrás de você. Não raramente em cima de você, ocupando fisicamente o mesmo espaço. Compartilhando seu oxigênio. Tornando-se uma só carne... você entendeu a ideia.

Junte com pequenas coisas – como munição no chão que estão bugadas e não podem ser alcançadas – e toda a experiência começa a parecer menos com uma sequência verdadeira e mais uma tentativa apressada de ganhar dinheiro surfando no bom nome do jogo original.


Mas, pra ser justo, nem tudo é ruim. Kudos onde kudos são devidos: o level design – que era minha maior crítica em relação à segunda metade do jogo original – realmente mostra sinais de criatividade aqui. Underground pode ser um tanto relapso mecanicamente, mas pelo menos os cenários não são chatos. Alguns dos conceitos de fases são genuinamente únicos, e a campanha leva você em uma viagem surpreendentemente variada pela França e até pelo Norte da África. É uma tela mais ampla do que o primeiro jogo jamais ousou pintar.

Tem uma fase em um castelo, por exemplo, onde você enfrenta Cavaleiros Nazistas – sim, cavaleiros de verdade, em armaduras medievais completas, trabalhando para o Terceiro Reich. O primeiro que encontrei estava posado como uma estátua. Naturalmente, dei um tiro nele. Ele não se moveu, então eu ignorei e continuei andando. Então ouvi passos de metal atrás de mim, virei e vi a "estátua" correndo em minha direção com a espada levantada, imagina o cagaço que eu tomei. Não é todo dia que posso dizer que fui emboscado por um nazista fazendo cosplay de Dark Souls.

É bobo, sim – mas também é divertido. Esses pequenos toques mostram uma centelha de imaginação. Momentos como esse – espalhados como estejam – provam que alguém da equipe genuinamente tentou agitar as coisas. E quando o jogo não está glitando, quebrando, colapsando ou convocando inimigos espontaneamente do vácuo, a jogabilidade é relativamente sólida.

Mas então, justamente quando você começa a pensar que a EA pode ter permitido que uma molécula de boa vontade escapasse, o jogo te lembra de quem o publicou. Porque se você morrer, reinicia a missão inteira. Não existe um mísero checkpoint depois  de uma missão cumprida dentro da fase e isso é uma escolha de design desnecessariamente cruel.

No final, Medalha de Honra: Subchão é uma contradição estranha – um jogo que não deixa de ter sua boa dose de imaginação, mas que é estrangulado pela inércia corporativa. Você pode ver centelhas de brilhantismo enterradas sob seus escombros: os locais variados, a ocasional explosão de design de nível inteligente, até a decisão ousada de destacar uma combatente da Resistência feminina décadas antes que isso se tornasse comum. Essas ideias mereciam melhor. Elas mereciam polimento, refinamento, tempo… todas as coisas que uma sequência apressada e de linha de montagem nunca iria receber.

Em vez disso, ficamos com um jogo que parece um pacote de expansão inacabado usando um sobretudo e fingindo ser uma sequência completa. Não chega a ser um insulto ao original, não é o pior FPS do PS1, nem é o desastre que alguns afirmam ser. Mas definitivamente é o momento em que Medal of Honor deixou de ser o experimento inspirado de Spielberg na Segunda Guerra e entrou pra linha de montagem da EA.

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