segunda-feira, 24 de novembro de 2025

[#1603][Jun/2000] TVDJ

 

Durante a maior parte da minha vida, eu sempre acreditei que o PlayStation 2 era um console fácil para se programar. Quer dizer, foram mais de 10.900 jogos de PS2 lançados mundialmente—a maior biblioteca de qualquer console doméstico da história. Certamente um aparelho que gerou tantos títulos não poderia ter sido tão difícil de trabalhar, né?

Então imaginem minha surpresa quando descobri que a CPU do PS2, a infame Emotion Engine, na época foi descrita como um pesadelo para os programadores. No ano 2000, os desenvolvedores não apenas tinham que aprender uma nova arquitetura, eles tinham que reaprender programação quase do zero num campo minado feito de unidades VU, cadeias de DMA e uma documentação da Sony que era borderline-sádica. Na época virou uma piada recorrente que a única "emoção" que a Emotion Engine produzia consistentemente era o desespero.


E mesmo diante dessas informações, a conta ainda não bate pra mim. Porque pra cada obra-prima revolucionária do PS2, existem centenas de jogos bizarros, mal-acabados, agressivamente medíocres e tão profundamente de mal gosto que eu me recuso simplesmente a acreditar que os desenvolvedores se deram ao puta trabalho de lutar contra o hardware para produzir... isso

E como vocês podem imaginar, uma vez que um console acumula mais de dez mil jogos, o fundo do poço não é apenas raspado, é minerado industrialmente por todo o nada que ele pode oferecer. O que nos traz ao jogo de hoje: um título tão assustadoramente preguiçoso, tão desinteressado em justificar sua própria existência, que genuinamente me fez reavaliar se a Emotion Engine era realmente tão difícil assim. Porque, honestamente, não faz sentido acreditar que alguém tentou sinceramente... e produziu isto.

Mas vamos começar do começo: TVDJ, na verdade, tem uma premissa bastante charmosa. Tem essa emissora de TV administrada por animais antropomórficos que está fazendo um trabalho catastroficamente ruim em ter numeros de audiência. E talvez—apenas talvez—um dos motivos seja que esses furries se inclinem muito mais para Five Nights at Freddy's do que, uh, Gelbooru, se é que me entendem. Eles não são aqueles furries fofos do tipo "raposinha fofinha com cheiro de baunilha numa campina em um sabado de manhã", eles são mais do tipo "se eu encontro essa coisa num corredor escuro, eu pego um crucifixo e saio correndo pela minha vida". Mas divago.


Elenco estranho à parte, eu gosto genuinamente da ambientação. Tem um charme que me lembra uma versão nightmare fuel da TV COLOSSO—um programa que eu realmente gostva muito quando criança. E, considerando que estamos vivendo numa era onde filmes de terror B baseados em personagens infantis são praticamente um evento sazonal, eu não me surpreenderia se um dia tivéssemos "O Dia em que 327 Gilmares Devoraram São Paulo". Por que não? Já cruzamos todas as outras linhas. Mas—novamente—divago.

Enfim.

Esta emissora de TV falida precisa de um milagre, uma faísca, algo para arrastar sua audiência para fora da Fossa das Marianas. Então eles contratam um editor novinho em folha—e esse alguém é você. Seu trabalho é editar os programas de TV deles em tempo real, alternando entre as câmeras para deixar a "audiência" feliz, e essa pontuação da audiência são os pontos que você faz no jogo. Então, naturalmente, sendo o gênio das artes visuais que você é, você decide usar a ferramenta mais poderosa conhecida pela humanidade... algo garantido para fazer a audiência disparar... algo que moldou a cultura dos memes por duas décadas e contando: YouTube Poop.

…espera, o quê?

Então é assim que todo esse circo funciona: os atores furries performam qualquer nonsense furry que eles supostamente deveriam estar fazendo na câmera, e seu trabalho é escolher quais tomadas vão para a edição final. Em termos de jogabilidade, isso se traduz em uma barra de ritmo dividida em segmentos, e cada botão face insere um "comprimento" diferente de clipe. As cenas em si são puramente cosméticas. Você poderia estar cortando para uma raposa sapateando ou um coelho tendo um colapso existencial—em termos de jogabilidade, não faz a menor diferença.

O que realmente importa são os botões:

  • Triângulo preenche 1 segmento
  • Quadrado preenche 2
  • Círculo preenche 3
  • X preenche 4

É isso. Esse é o documento de design inteiro, essa é a gameplay toda. Então, se a barra tem, digamos, 12 segmentos, o que exatamente impede você de preenchê-la com X três vezes e deu? Nada. Absolutamente nada.
Ou apertar Círculo quatro vezes.
Ou Quadrado seis vezes.
Ou Triângulo doze vezes.

Não importa. De forma nenhuma. Todo input leva ao mesmo resultado: "a barra enche". O jogo não liga para timing, estilo, criatividade, ou mesmo para a lógica audiovisual básica da edição. Você não é um editor de TV realmente, vc apenas tem que encher a barra. E esse é o jogo inteiro. Nenhum sistema mais profundo. Nenhum desafio de ritmo. Nenhuma estratégia além de "adição básica".


Quando eu disse que isso era uma mistura preguiçosa, eu não estava exagerando para efeito cômico. Se alguma coisa, eu fui generoso demais. Jogos de ritmo não precisam ser física quantica, mas TVDJ genuinamente parece que os desenvolvedores tentaram ver o quão baixo eles podiam passar por baixo da barra de esforço. Isto é o tipo de preguiça que devia ser estudada pela NASA, sério

No seu auge — no auge absoluto da jogabilidade — a segunda metade de TVDJ introduz uma mecânica ousada e revolucionária. Algo tão arrojado, tão inesperado, tão inovador que merece um lugar no Museu Nacional de Design de Jogos do Smithsonian.

Alguns segmentos…
pedem que você…
mantenha L1 pressionado.

E é isso. Toda a sua experiência de jogo, senhoras, senhores e entusiastas de furries. Uau. Simplesmente… uau. Quer dizer, o que mais posso dizer? Eles realmente olharam essa mecânica e pensaram: “Sim. Isso é o suficiente. Manda bala” ? E claro, tecnicamente você ganha mais pontos ao combinar diferentes tipos de edições. Mas sejamos honestos — estamos no ano 2000. A última pessoa que realmente se importava com pontuação em videogames morreu de velhice cinco anos atrás. 

Mas talvez você esteja pensando: “Não pode ser só isso. Com certeza tem mais, né?


E sim — surpreendentemente — tem mais. Claro que tem. Porque depois de preencher a barra com suas escolhas de edição duvidosas, o jogo reproduz os cortes que você supostamente “selecionou”, e o que você obtém é essencialmente a sopa primordial da qual o YouTube Poop moderno surgiu.

Está tudo lá:  os cortes aleatórios, a sincronização maluca, a edição de áudio que parece que sua TV está tendo uma convulsão. É puro nonsense, apresentado sem vergonha nenhuma. É o tipo de edição caótica que a Geração Z racha o bico de rir, por razões que escapam a todos os neurônios do meu crânio envelhecido. Juro, eu oficialmente cheguei à idade em que não entendo mais metade dos barulhos que os jovens chamam de comunicação, que dirá entender seu senso de humor. Ou eu sei lá se jovens acham graça de alguma coisa, pra mim eles vivem numa bolha de apatia e tanto faz como tanto fez pra eles. Mas momento "velho grita contra as nuvens" a parte, divago³.

Bem, eu suponho que se você nasceu em 2010 ou depois, isso se qualifica como ápice do humor. Eu não sei. E eu sei menos ainda por que a Sony pensou que era uma ideia brilhante lançar, no ano 2000, um jogo aparentemente projetado para crianças que nem sequer existiam ainda. Me fale sobre estar à frente de seu tempo...

Mas ok, tudo bem—então pelo menos o jogo tem alguma variedade, certo? Quer dizer, se cada botão corresponde a uma câmera/feed diferente, então certamente você teria um monte de cenas únicas para brincar, mesmo que o produto final seja um nonsense puro. Isso é legal, né? Isso pelo menos te daria algo para se agarrar, né?

... né?

Bem, se você honestamente acreditou nisso, eu sugiro educadamente reler a parte que eu descrevo o a "jogabilidade" para compreender totalmente a preguiça de nível Olímpico com a qual estamos lidando aqui. Você realmente acha que eles colocaram esse tipo de esforço? Você acha? Porque—alerta de spoiler—eles não colocaram.

Existem apenas quatro segmentos. Quatro. Que mal dão dois minutos de cenas cada um... e o jogo os usa de novo e de novo e de novo. A programação diária desta emissora de TV consiste em apenas quatro programas de dois minutos passados mais de oito vezes por dia. Não é à toa que a emissora está falindo, né? Se eu tivesse que assistir os mesmos quatro programas de variedades com furries em loop, eu desligaria a TV e começaria a ler livros ou algo igualmente desesperado.


E sério, esse tipo de reciclagem de conteúdo era um truque comum nos tempos do NES, quando os desenvolvedores reutilizavam fases com uma troca de paleta para aumentar artificialmente a duração do jogo. E mesmo naquela época nós chamávamos isso de preguiçoso e barato. Mas aqui estamos nós, no ano 2000, no PlayStation 2, uma potência da sexta geração ostentando 128 bits, 32 MB de RAM e aproximadamente 8.578 flip-flops ou qualquer jargão técnico aleatório que a Sony estava se gabando na época... e eles estão usando os mesmos truques de orçamento baixo que jogos bucha de Nintendinho usavam em 1987? Sério?

Porque sério, cara, até desenvolvedores picaretas como a Color Dreams—sim, aquela fodenda Color Dreams—pelo menos se davam ao trabalho de colocar uma troca de paleta de cores em suas fases reutilizadas. A Sony, enquanto isso, não se deu ao trabalho de fazer nem esse esforço microscópico. Eles não mudaram as cores. Eles não remixaram. Eles não reenquadraram. Eles literalmente copiaram e colaram a mesma filmagem de novo e de novo e deram de ombros como se dissessem: "Eh, tá bom assim". Por quê? Porque... por que diabos não? 

Olha, eu entendo. Eu realmente entendo. A animação em cel-shading é genuinamente bonita e impressionante para a época. Eu entendo completamente que produzir mais filmagens teria exigido trabalho e é óbvio que o orçamento não estava nem perto do tamanho necessário para conseguir isso. Eu entendo a contabilidade da situação.

Mas Sony... minha coisa fofa... minha amada... minha BFF, Sony... posso te oferecer uma sugestão humilde?


Claro, eu sei que não sou ninguém. Eu sei que não estou em posição de te ensinar como administrar seu negócio—especialmente quando seu negócio no ano 2000 envolvia imprimir dinheiro com a marca PlayStation como se fosse um esporte olímpico. Mas mesmo assim... QUE TAL VOCÊ NÃO TENTAR FAZER UM JOGO QUE SEU ORÇAMENTO NÃO PODE POSSIVELMENTE SUPORTAR?!

Porque caceta, é como se Guillermo del Toro acordasse um dia e dissesse: "Ei, vou fazer Pacific Rim 2," (porque eu me recuso a aceitar que exista qualquer outra coisa com esse título), e então o filme acaba com cinco minutos de duração porque ele só tinha dez milhões de dólares e não podia pagar por mais nada.

Ok, financeiramente eu entendo o motivo, mas... QUE CARALHAS, GUILLERMO?! Se seu orçamento inteiro é dez milhões, então talvez—apenas talvez—seu conceito não devesse ser "robôs gigantes realistas socando kaijus com física realista!". Não é assim que dinheiro funciona! Não é assim que o cinema funciona! Não é assim que NADA funciona!


E o mesmo se aplica aqui. Porque se seu grandioso conceito de jogo é: "Nós vamos usar um cel-shading lindo, estiloso e de ponta... para dez minutos no total de cenas", então Sony, cara mia, talvez você devesse escolher outro conceito, cáspita! Ninguém está te OBRIGANDO a usar cel-shading! A Polícia Galáctica dos Games não apontou uma blaster para sua cabeça exigindo que você produzisse uma tech demo subfinanciada disfarçada de jogo de ritmo!

Se você não pode pagar por isso—
APENAS NÃO FAÇA.
Faça outra coisa.
Simplifique o projeto.
Dimensione a ideia.
Faça literalmente QUALQUER OUTRA COISA dentro do seu orçamento.
Porra, não é ciência de foguetes! Não é nem ciência da Emotion Engine, é apenas lógica que qualquer dono de uma barraquinha de cachorro-quente sabe! Que desgraça, meu!

Olha, sério, eu sou tolerante. Eu juro que sou. Eu faço o meu absoluto melhor para abordar jogos antigos com a mentalidade e sensibilidade de sua era. Eu tento levar em conta limitações técnicas, restrições de produção e todo esse pagodão. Eu realmente tento. Eu sou aquele cara que defende jogos FMV e não julgo jogos de 1995 pelos poligonos que vc pode contar nos dedos. Eu realmente me esforço.

Mas eu ainda sou apenas humano no final do dia.


E jogar o mesmo YouTube Poop oito vezes seguidas—num loop de jogabilidade que mal se qualifica como um jogo de ritmo? É aqui que eu traço a linha. É aí que minha boa vontade termina, minha paciência evapora e minha sensibilidade de historiador bate o ponto e vaza. 

Chega.
Existe orçamento.
Existe preguiça.
E então... existe esse negócio aí que eles fizeram.
E simplesmente não dá.
Não dá.

Mesmo pelos padrões da época, mesmo pelos padrões de experimentos obscuros do PS2, mesmo pelos padrões de qualquer que seja a rede de transmissão furry amaldiçoada sobre a qual este jogo trata—isto não é aceitável. Existe um ponto em que você para de perdoar limitações e começa a questionar escolhas de vida, e TVDJ atinge esse ponto como um busão das seis e meia atrasado. Te larguei pras cobras, tá louco.

MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
EDIÇÃO 077 (Agosto de 2000)


MATÉRIA NA GAMERS
EDIÇÃO 074 (Julho de 2000 - Semana 4)