quarta-feira, 26 de novembro de 2025

[#1605][Jun/1999] INCREDIBLE CRISIS


Jorge! Daipinchi! Estamos em uma crise!

[AH NÃO. VOCÊ JÁ FEZ ESSA PIADA NÃO UMA, MAS DUAS VEZES COM DINO CRISIS E DINO CRISIS 2. NÃO FOI ENGRAÇADO DA PRIMEIRA VEZ, NÃO FICOU MAIS ENGRAÇADO NA SEGUNDA E ACHO QUE ATÉ VOCÊ CONSEGUE VER UM PADRÃO AQUI]

Não, é sério! Esta não é uma crise qualquer. Não é nem uma crise do tipo "tranquei meu carro com as chaves dentro" ou "o leite venceu ontem e eu bebi msmo assim".
Não, meu amigo. Estamos em uma… CRISE INCRÍVEL!

[... MEU ÚNICO ALÍVIO É QUE EU VOU TER 3 ANOS INTEIROS DE DESCANSO ANTES QUE ELE FAÇA ESSA MESMA PIADA DE NOVO EM DINO CRISIS 3...]

Veremos a respeito disso, Jorge. Veremos a respeito disso...

Mas o que veremos hoje é uma relíquia realmente bizarra da era do PS1 — o tipo de jogo que normalmente nunca sai traduzido no ocidente. Só que esse, de alguma forma, chegou às praias americanas, provavelmente por causa de um naufrágio e uma matilha de golfinhos super instruídos que decidiram traduzir esse jogo... tá, essa piada não está indo a lugar nenhum. Vamos adiante.


Enfim, meu ponto é: o senso de humor deste jogo é tão descaradamente japonês que você praticamente sente o choque cultural te dar um tapa na cara. Pense nas cutcenes de Katamari Damacy, algo nessa pegada de "uau, isso é... japonês pra caceta mesmo". É esse o nível que estamos lidando. E honestamente, como poderia ser diferente? Este é, afinal de contas, um trabalho de Kenichi Nishi.

[O FAMOSO... QUEM?]

Então, Nishi é um daqueles criadores excêntricos, bem populares nos cirulos cult cujo nome você provavelmente nunca ouviu, mas cujos jogos lhe são bastante familiar. Ken-chan começou como designer em vários RPGs e jogos de ação na Telenet Japan — porque em algum ponto no final dos anos 80 a Telenet foi para os jogos japoneses o que a Herbert Richters foi para a dublagem brasileira, e meio que empregou todo mundo que estivesse passando perto da porta. Se você já trabalhou com desenvolvimento de jogos e falava japonês, as chances são de que você passou pelo menos uma tarde naquele escritório.

Mas as coisas ficaram interessantes por volta da reestruturação da empresa em 1993. Kenichi Nishi saiu da Telenet e foi parar na Square, onde atuou como designer de campo em alguns projetos obscuros dos quais você provavelmente nunca ouviu falar como CHRONO TRIGGER e SUPER MARIO RPG: Legend of the Seven Stars. Sabe — aqueles joguinhos pequenos e desconhecidos que totalmente não redefiniram os videogames.

Moon: Remix RPG Adventure, jogo de PS1 de 1997

Após essa breve, mas historicamente explosiva passagem, Nishi fundou a Love-de-Lic junto com vários outros refugiados da Square. O estúdio desenvolveu apenas três jogos, nenhum dos quais escapou das fronteiras do Japão na época, mas todos os três se tornaram lendas de cult.

Por exemplo, Moon: Remix RPG Adventure, projetado pelo próprio Nishi — facilmente o título mais revolucionário deles. A premissa é que um garoto é sugado para dentro do seu RPG favorito só para descobrir que agir como um tipico "herói de RPG" te faz ser meio babaca. Invadindo a casa das pessoas. Grindando a fauna. Saqueando sem restrição moral. Coisas que tomamos como garantido, mas esse é um dos primeiros jogos que eu conheço a fazer esse meta-comentário sobre o RPG.

[VOCÊ DISSE QUE ESSE É UM DOS CASOS QUE EU NÃO RECONHECERIA O NOME MAS O JOGO ME SERIA FAMILIAR. EU NUNCA OUVI FALAR DESSE TAL DE MOON]

Provalmente Moon: Remix RPG Adventure não mesmo, mas e se eu te disser que Toby Fox já citou abertamente Moon como uma das suas inspirações para Undertale? E de lá, Nishi só ficou mais e mais estranho até o ponto que ele colaborou com o falecido Kenji Eno nos jogos Newtonica. Eno, se você se lembra, é a mente perturbadora por trás de D2, que eu analisei há alguns meses, e cujos instintos criativos podem ser resumidos como: "E se a arte... fizesse você fazer as perguntas que você tem medo de imaginar que existem?". Só essa parceria já deve dar uma dica da energia com a qual estamos lidando hoje.

AstroBot, ganhador do Jogo do Ano de 2025, tem uma referencia a Incredible Crisis pq o pessoal da Sony tava muito doido da Sukita

E agora que estamos todos na mesma página sobre a pedigree dessa grande tolice, vamos ao dia mais estranho na vida da família Tanamatsuri! ... pelo menos, eu acho que seja o dia mais estranho deles. Talvez isso seja apenas uma terça-feira normal nessa vizinhança, sei lá.

Então, Incredible Crisis acompanha um único dia na vida da família Tanamatsuri — e este não é um dia qualquer. É o 80º aniversário da Vovó e tudo o que ela pede é que todos cheguem em casa cedo para apreciar um belo jantar com ela. É um pedido simples e fofo. Mas então, este é um jogo de comédia japonês de PS1 do ano 2000, o que significa que é óbvio que absolutamente nada vai sair conforme o planejado. Na verdade, tentar simplesmente "chegar em casa" rapidamente se torna sobre sobreviver a um apocalipse em pequena escala. Mas vamos a isso.


O jogo se divide em quatro capítulos, cada um narrando as desventuras cada vez mais insanas de como foi o dia de um membro diferente da família. Estruturalmente, é uma coleção de minigames com uma história — parte sitcom pastelão, parte WarioWare da Shopee. E de alguma forma só escalona a partir daí.

Taneo, o patriarca da família, é a primeira sessão. Ele é um salaryman raíz: terno, gravata e rotinas de exercícios obrigatórias no trabalho — porque aparentemente nada aumenta a produtividade como ser forçado a dançar ao meio-dia. Então o jogo começa com um minigame de ritmo, e honestamente, é a introdução perfeita porque destaca a arma secreta do jogo: a Tokyo Ska Paradise Orchestra, que compôs toda a trilha sonora. A música deles é incrível e me lembra muito as músicas de THE BLUES BROTHERS (o filme, não o jogo lixo da Ocean). 

No que é talvez o crossover mais aleatório de quase 9 anos desse blog, eis a parceria entre Emicida, Zeca Pagodinho, Prettos e a Tokyo Ska Paradise Orchestra.

Mas então um acidente envolvendo o globo decorativo de uma estátua gigante dá horrivelmente errado, causando destruição no prédio. Os exercicios de dança no horário de almoço de Taneo terminam abruptamente, e com ela seu dia de trabalho. A partir daí segue uma jornada improvavel de Taneo tentando voltar para casa enquanto o  mundo conspira contra ele da forma mais biruta possível, culminando com uma "massagem" na cabine privativa de uma roda-gigante com a Carmen Sandiego de liquidação. Eu não posso exatamente elaborar como Taneo vai de ser perseguido pelo globo do Planeta Diario a um minigame com teor sexual onde você move as mãos dele com base nas instruções ofegantes dela, mas isso é o que acontece. 

Suponho que Etsuko — a esposa de Taneo — teria algumas coisas a dizer sobre o dia do senhor seu marido, porém ela tinha o bastante no seu prato naquele mesmo dia. Determinada a cozinhar o prato favorito da sogra para a festa, Etsuko sai para comprar ingredientes. Simples assim. Mas então ela acidentalmente acaba envolvida no meio de um assalto a banco e é cooptada para ajudar exatamente a mesma femme fatale que acabou de seduzir seu marido. Isso leva a uma sequência de minigames onde ela tem que:

*   esgueirar-se pelo banco enquanto evita os assaltantes,
*   ajudá-los a roubar um cofrinho de porco (sim, sério),
*   e então escapar em uma prancha de snowboard como se estivesse de repente fazendo teste para 1080° Snowboarding 2: A Vingança da Mãe.

Mas ela ainda não terminou.


Após sua ousada fuga de snowboard, ela acaba dentro de uma base militar — e em um próximo passo perfeitamente lógico, ela sequestra um caça a jato para chegar em casa a tempo. Isso dispara um minigame de voo em túnel que parece um descendente de Zaxxon, enquanto você desvia de aviões que vêm em sua direção, portas se fechando e toda violação de normas de segurança conhecida pelo homem. Então ela emerge do túnel e imediatamente se encontra em um duelo aéreo com... um urso de pelúcia gigante. Sim. Um urso de pelúcia gigantesco de nível kaiju. O confronto funciona como uma fase no Modo All-Range do STARFOX 64, exceto que, em vez de fazer barrel roll e atirar nos minions de Andross, seu trabalho é disparar mísseis no ursinho de pelúcia mais pistola do mundo. Claro.

A seguir, a confusão segue com as crianças e a família Tanamatsuri continua seu combo de caos acontecendo. O pequeno Tsuyoshi, o filho de nove anos, não está tendo um dia muito melhor que o de seus pais. Por acaso ele acaba encolhido ao tamanho de um inseto. E naturalmente, no momento em que ele fica no tamanho da Tatsumaki de One Punch Man, a natureza declara a temporada de caça aberta. 
Seu dia se torna uma homenagem a "Querida, Encolhi das Crianças" e ele tem que:

*   sobreviver a cair no poço de um formiga-leão como se estivesse reencenando Star Wars com artrópodes domésticos,
*   escapar de uma teia de aranha,
*   e, meu favorito pessoal, pegar uma carona com um misterioso barqueiro que acha que estar desse tamanho a coisa mais normal do mundo, pq não é o fato de ter 5cm de altura que vai arruinar o dia de trabalho de um japonês.


Então, a essa altura, nós assistimos três membros da família Tanamatsuri sobreviverem à todo tipo de nonsense aleatória que desafia a física imaginável, e você naturalmente assume que é só porque isso é comédia japonesa onde qualquer coisa pode acontecer. Então, entrando no segmento final, eu totalmente esperava que a filha gyaru da família enfrentasse alguma calamidade igualmente insana. Eu estava mentalmente preparado para os colegas de escola dela virarem zumbis com cérebros de torta de cereja. Ou talvez ela invocasse um demônio acidentalmente por pronunciar errado seu dever de casa de kanji. Algo nesse sentido.

Mas então o jogo fez algo absolutamente impensável: ele... conecta as coisas
Uma revelação da história que realmente explica toda a loucura do dia. Eu não estava pronto. Eu me senti traído. Eu vim aqui para nonsense, não para estrutura narrativa.

Acontece que o dia da Ririka começa quando ela descobre uma nave alienígena bebê — basicamente um daqueles OVNIs miniaturas adoráveis de "O Milagre Veio do Espaço"— e, após alguma confusão, faz amizade com ele. Este extraterrestre tampinha tem o poder de encolher ou aumentar qualquer coisa com sua mágica alienígena. E enquanto Ririka está tentando ajudar o pequeno a se reunir com seus pais-OVNI, eles estão sendo perseguidos por agentes dos Homens de Preto.


E esta é a fonte do apocalipse Tanamatsuri. Tudo se encaixa, como o momento aleatório no capítulo do Papa Tanamatsuri onde a Ririka liga para ele e pede para ele defender OVNIs de mísseis do exército? Na hora você dá de ombros porque é só outra aleatoriedade japonesa, mas não, acontece que ele estava defendendo os pais do bebê. A mesma coisa para o urso de pelúcia kaiju da Mama Tanamatsuri ou o encolhimento súbito do Tsuyoshi. Tudo dano colateral subproduto de uma garota, um OVNI bebê e uma força-tarefa governamental muito persistente.

Esta reta final genuinamente me pegou de surpresa. Eu não esperava que Incredible Crisis de repente puxasse uma história coesa do seu carro de palhaços — mas ele puxou. E essa reviravolta tornou a experiência inteira ainda melhor.


Então este jogo absurdamente estranho sobre uma família japonesa típica tem tudo:
  • a trilha sonora é incrível,
  • a comédia é absurdismo japonês de primeira qualidade,
  • e ainda tem uma história interconectada que secretamente tece todo o caos em algo que se assemelha a coerência narrativa.
Então... Incredible Crisis é a joia escondida mais inesperada de todos os tempos?
Um diamante enterrado no último lugar onde você jamais procuraria?
Um milagre enviado para o Ocidente por acidente, possivelmente via localização movida a golfinhos?

Bem... quase.

Porque tem um porém. E eu sei que isso pode chocar você — por favor, sente-se para esta revelação —
mas video games são, na verdade, feitos para serem jogados.
Eu sei. Chocante.
Mas infelizmente, Incredible Crisis parece ter perdido esse memorando. Porque a jogabilidade em si, de verdade, é... meio ruim.


Não me entenda mal — as situações são incríveis, os cenários são hilários, todo esse jazz. Mas os minigames que você joga em si não são grandes coisas. Bem agressivamente medíocres. Enquanto um que outro minigame consegue tirar um sorriso (como o quiz que te dá três segundos pra respoder perguntas como quantos metros tem um quilometro, qual foi o primeiro presidente dos Estados Unidos e quanto é 2154611 x 175522320... espera, o que?!), apesar de todas as situações malucas, a jogabilidade geralmente se resume a apenas três categorias bem sem gracinha:
  • button-mashing,
  • minigame de repetir padrões, estilo Genius,
  • ou testes básicos de reflexo do tipo "desvie-da-coisa" que parecem QTEs.
Em resumo: Incredible Crisis é quase uma obra-prima... até o momento em que vc tem que jogar ele, aí fica meio chatinho. No final, Incredible Crisis é um jogo abençoado com a criatividade selvagem e sem restrições da era Dreamcast, mas tragicamente essa imaginação está acorrentada a uma jogabilidade que parece saída do 3DO. É um jogo que você vai lembrar com carinho pela sua personalidade, sua trilha sonora e sua estranheza... mas não por como se joga. O que é meio que um problema em um videogame.

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 161 (Março de 2001)


MATÉRIA NA GAMERS
EDIÇÃO 074 (Julho de 2000 - Semana 4)