quarta-feira, 19 de novembro de 2025

[#1597][#1598][Jun/1999][Jun/2000] PERSONA 2: Innocent Sin e Eternal Punishment

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PERSONA 2: Innocent Sin (Jun/1999)


Videogames são uma mídia esquisita. Um dia, a coisa mais profunda que a indústria tem a oferecer é um encanador bigodudo resgatando uma princesa de um dragão-tartaruga com problemas de raiva, e então—você pisca, alguns anos se passaram—e de repente você está explorando masmorras psicológicas construídas em torno das ideias do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. Isso é um puta de um salto.

Mais precisamente, em 1996, a Atlus decidiu criar um spin-off para Megami Tensei, sua já infame e bizarra série de RPGs de “Pokémon demoníaco” onde você coleta demônios e toda sorte de esquisitices mitológicas do mundo todo. E quando eu digo esquisitices, é esquisitices mesmo. Estamos falando de coisas como Mara do Budismo do Sri Lanka. Sim, AQUELE demônio. O que parece a aula de educação sexual mais tryhard do mundo cruzando a linha de chegada de uma maratona. Enfim—antes que nos percamos no pesadelo freudiano do Monstro Carruagem de Pênis—vamos voltar ao spin-off.

Achou que eu tava brincando?

Então, em 1996, a Atlus nos deu um spin-off de MegaTen que focava menos nos monstros, folclore e mitos, e mais na não menos aterrorizante natureza da mente humana—que, sejamos honestos, é bem mais bizarra quanto qualquer compêndio de demônios. Baseado diretamente nas ideias do mencionado médico suíço, REVELATIONS SERIES: Persona é essencialmente um estudo de caso psicológico estrelado por uma jovem chamada Maki Sonomura e os muitos "palácios da mente" (sim, não foi Sherlock que inventou o termo) representando vários aspectos de sua psique, ou suas "personas", se você preferir a terminologia da marca.

Jung acreditava que todo mundo usa "máscaras"—conscientemente ou não—para se encaixar melhor na sociedade. A pessoa que você é no almoço de domingo com seus pais não é a mesma pessoa que surge numa festa rave de quinta-feira de manhã, e nenhuma das duas é o mesmo filho da mãe descontrolado que você se transforma depois de falhar pela décima oitava vez em conseguir quatro estrelas em Overcooked 2. (E pela última vez: deixe a louça na pia. EU LAVO, CACETA!.)

Mas sim—máscaras. Essas "personas" são as facetas da nossa personalidade que apresentamos conforme a necessidade, pequenas performances curadas para manter a sociedade funcionando. Útil? Com certeza. Mas elas também podem se tornar prisões. Passe tempo demais atrás de uma máscara, e você eventualmente esquece quem você era sem ela. E essa é basicamente a espinha dorsal temática de toda a série Persona. Identidade, performance, repressão, a luta para reconciliar quem somos com quem fingimos ser.


A Atlus sempre foi esquisita—sua criatividade variando entre ousadia e "caracara, o que é que eles fumaram dessa vez", que o diga o jogo da vovó beijoqueira—mas mesmo para os padrões deles, usar um videogame para explorar eus sombra, traumas suprimidos e o inconsciente coletivo estava empurrando a mídia para um território genuinamente diferente.

E então eles fizeram Persona 2: Pecado Inocente, que pegou tudo isso, aumentou o volume, embrulhou em um pacote de teoria da conspiração com lenda urbana e perguntou: "Tá bom, mas e se os rumores literalmente remodelassem a realidade?". Mas estamos nos adiantando.

REVELATIONS SERIES: Persona original era, narrativamente falando, um dos saltos mais ambiciosos que qualquer conceito de videogame tinha dado até aquele ponto. Ele almejava um nível de profundidade psicológica que a maioria dos jogos nem fingiria perseguir até uma década depois. Infelizmente, a jogabilidade não exatamente acompanhou a ambição. Eu já escrevi uma review inteira sobre esse jogo, então para saber o que deu errado eu recomendo ler a analíse de REVELATIONS SERIES: Persona. Podemos então vamos avançar três anos, para 1999.

Aparentemente não satisfeita com apenas um pouco de trauma psicológico, a Atlus decidiu dar outra chance ao conceito, lançando Persona 2 como uma duologia de dois jogos—dã, é isso que "duologia" significa, eu sou realmente o mestre das palavras—começando com Innocent Sin. É uma nova abordagem ao núcleo temático da série, mas desta vez com uma jogabilidade muito mais suave, um senso de ritmo melhor e 20% mais Adolf Hitler. E não, eu não estou inventando isso. Eu não tenho a capacidade criativa para inventar isso. Quem me dera ter. Ou talvez eu deveria ser agradecido por não ter. Mas estou me adiantando. De novo.

Achou que eu estava brincando? (2)

Como o primeiro jogo, Persona 2: Innocent Sin começa com uma lenda urbana. Na Seven Sisters High School—"Sevens", para os íntimos—os estudantes comentam sobre um ritual. Supostamente, se quatro pessoas ligarem para seu próprio número de telefone à meia-noite, alguma entidade misteriosa aparecerá e concederá seu desejo mais verdadeiro.

Então, naturalmente, nossos protagonistas adolescentes turboalimentados hormonalmente decidem fazer exatamente isso. Por que não fariam? Se os adolescentes de videogame parassem para pensar nas coisas, metade do gênero jRPG deixaria de existir.

Eles realizam o ritual, e assim como o boato prometeu, uma figura estranha chamada Joker se materializa. Mas o boato não mencionou a letra miúda: para conceder o desejo de uma pessoa, o o Coringa, o Palhaço, o Joker, o Bobo rouba a vontade das outras, reduzindo-as a cascas vazias e ocas—ainda vivas, ainda de pé, mas absolutamente sem a centelha que as torna humanas. O que é exatamente o tipo de tramoia pata-de-macaco que você esperaria de um contrato demoníaco.


Esse incidente propele nossos heróis de cabeça em uma perseguição pela cidade de Sumaru, tentando impedir o Joker de espalhar mais baderna e, com sorte, recuperar a vontade roubada de seus amigos. É uma premissa simples—pare o cretino mascarado—mas, a primeira vista, tematicamente é uma continuação lieral da ideia de Persona: máscaras, identidade, eus roubados, o perigo de abrir mão de quem você é. Mas aqui está a coisa: o Coringa é o menor dos problemas de Gotham City, digo, Sumaru City.

Porque enquanto você caminha pelos corredores da Sevens você notará algo meio estranho: muitos estudantes estão usando bandagens no rosto. Por quê? Epidemia de acne? Clube de luta secreto no subsolo? Alguém trouxe a maldição da múmia da viagem de formatura? Não.

É por causa de um boato que está rolando de que o emblema da escola é amaldiçoado, e se você não removê-lo do seu uniforme, ele vai literalmente derreter seu rosto. Alguns jovens reviram os olhos e zombaramm de como as pessoas são crédulas. Alguns jovens não têm mais um rosto. Ok, as coisas estão ficando esquisitas.

Mas espera—isso é Persona, então claro que fica mais esquisito. Quando nossos heróis voltam à escola mais tarde, eles descobrem que o relógio da torre está se movendo de novo, e todo mundo está em pânico com isso. Por quê? Porque alguns anos antes, um professor caiu nas engrenagens do relógio e morreu. O relógio ficou parado desde o acidente, e um boato começou a circular de que se ele começasse a funcionar de novo, ressuscitaria o professor junto com "todo o inferno que ele traria de volta". Os jovens dizem muitas coisas. A maioria, bobagem. Só que não em em Innocent Sin, as bobagem tem consequências. Porque adivinha? O boato é verdadeiro.


No momento em que o relógio começa a funcionar de novo, os terrenos da escola se tornam um pesadelo infestado de monstros. Demônios e criaturas grotescas de repente saem de toda sombra (ou, em terminologia de jRPG, a Fada do Encontro Aleatório fica um pouco animada demais). Estudantes se trancam em salas de aula, tentando desesperadamente sobreviver enquanto você, como protagonista, tenta descobrir o que diabos está acontecendo com seu colégio que era até então totalmente.

E assim você descobre que os rumores na cidade de Sumaru não só se espalham, eles se manifestam. O que começa como uma lenda urbana do colégio assombrado-da-semana rapidamente se transforma em um pânico city-wide onde verdade, ficção e paranoia coletiva começam a se fundir em uma grande sopa metafísica. E nossos heróis estão presos no meio disso, tentando impedir o mundo de ser reescrito por fofoca, exagero e superstição adolescente.

Persona sempre foi sobre a ideia de máscaras e identidade, e Innocent Sin adiciona uma nova reviravolta temática: "O que acontece quando uma cidade decide que suas mentiras são mais interessantes que a verdade—e a realidade concorda?"

Então nossos heróis não entendem exatamente o que está acontecendo ainda, mas sabem que os rumores estão se tornando realidade. Todos eles. Os estúpidos. Os assustadores. Os "por que alguém sequer FALOU isso em voz alta?". E eles sabem que há um trickster maligno do mal que odeia o bem se chamando Coringa causando caos, então deve ser ele, certo? Quer dizer, qual a probabilidade de dois fenômenos de distorção da realidade completamente não relacionados acontecerem na Cidade de Sumaru ao mesmo tempo? Essa cidade nem tem um time de futebol local. Mal tem verba para um evento de distorção da realidade, quem dirá dois.


Enfim, o resultado é que quase metade do jogo é gasta nessa grande caça ao Coringa, lutando contra seus subordinados no caminho. Porque é claro que o Coringa leu o Guia do Vilão de Anime Para Iniciantes, então é claro que ele tem quatro generais do mal—o Círculo Mascarado. Eles são basicamente seu fã-clube, exceto que em vez de comprar camisetas, eles roubam a vontade das pessoas para ele. Quatro indivíduos (ou três manos e uma mina, se você preferir) que dominaram o Jogo do Coringa, tiveram seus desejos concedidos e agora o servem como adoradores leais.

E é aqui que o ritmo de Innocent Sin dá de cara em uma parade de concreto mas das bem rebocadas. Isso porque a decisão de dividir Persona 2 em dois jogos separados não é ruim por si só. Conceitualmente, é até meio interessante—duas metades de um quebra-cabeça narrativo maior. Só que a Atlus claramente precisou esticar o conteúdo para justificar essa divisão, e, meu amigo, dá pra sentir nos seus ossos. Tem uma longa sequência, beirando o interminável, de masmorras onde muito pouco de consequência acontece. O loop se torna:

  1. Encontrar um membro do Círculo Mascarado.
  2. Entrar na masmorra temática deles.
  3. Arrastar-se por um número absurdo de encontros aleatórios.
  4. Lutar contra o chefe.
  5. Arrancar a verdade deles na porrada.
  6. Eles se recusam a falar, agem de forma misteriosa, então morrem dando a deixa para o próximo membro do Círculo assumir o seu lugar.
  7. Repita.

Essa trilha de migalhas infrutífera se arrasta por mais de um terço do jogo inteiro. A essa altura, você não está desvendando um mistério—está batendo de porta-em-porta torcendo para que alguém finalmente te diga quem o Coringa realmente é. Então sim, o ritmo em Persona 2: Innocent Sin é péssimo. É de longe a parte mais desagradável da experiência, e o motivo pelo qual muitos jogadores largam o jogo antes de chegar na segunda metade genuinamente fantástica.


A boa notícia é que pelo menos não foi a jogabilidade o problema desta vez. Se comparado com a mecânica travada e grossa de REVELATIONS SERIES: Persona, a Atlus realmente consertou muitos dos problemas que atormentavam o original. E se deixarmos de lado o purgatório do ritmo por um momento, Persona 2 finalmente começa a mostrar do que a série era capaz.

Quando você pega o jeito do sistema de combate de Persona 2, a primeira coisa que você nota é que… não tem muito o que notar. É um jRPG bem padrão. Baseado em turnos, escolha seus comandos, lance feitiços, siga com sua vida. E a menos que você tenha jogado o Persona original, você não tem ideia de cmo isso é uma bênção.

Porque deixa eu te contar uma coisa: a equipe de design da Atlus era… especial. E por isso eu quero dizer especiais no sentido de "caíram de cabeça do berço. Várias vezes". Mas aqui está o ponto—eles podiam não ter muita noção  as vezes, mas se tinha uma coisa que eles NÃO eram, era desenvolvedores ruins. Eles são brilhantes, só que o tipo de brilhante onde você às vezes tem vontade de sacudir o cara pelos ombros e gritar: "MANO, O QUE TEM DE ERRADO COM VOCÊ!?"
Digo isso com amor.

O Persona original não era só narrativamente ambicioso—era mecanicamente ambicioso também. Infelizmente. Ele introduziu ideias "inovadoras" no combate de JRPG… e quase nenhuma delas funcionou. O combate baseado em grid era horrível. Os três tipos de ataque físico/mágico/arma separados de arrancar cabelos e por aí vai. Mas o importante é: a Atlus olhou para aquele desastre e disse: "Tá, isso ficou uma merda. Não vamos fazer isso de novo". 

E isso, meus queridos, é a marca de um bom desenvolvedor. Claro, um ótimo desenvolvedor teria evitado os erros em primeiro lugar, mas se eles fossem tão perfeitos seriam o Shigeru Miyamoto e não meros mortais como o resto de nós. Então Persona 2 dá um passo atrás e simplifica: esse jogo se chama Persona. Portanto, você usa Personas. Não é exatamente física quantica isso.

O loop central do combate é bem simples: lance magias através da sua Persona equipada. Você pode usar ataques corpo a corpo? Olha, poder pode, mas eu não recomendaria. Corpo a corpo causa bem pouco dano enquanto magias são fortes, versáteis e abundantes—e o jogo te dá uma mecânica de regeneração de mana restaurando MP a cada passo que você dá. O design praticamente te pega pela gola e grita: "USA MAGIA, SUA ANTA!"

Recrutar Personas também é muito mais suave. Muitos dos meus rantes sobre o sistema de negociação de REVELATIONS SERIES: Persona não se aplicam mais. Isso quer dizer que eu gosto da mecanica de negociação? Absolutamente não. Eu nunca vou gostar de tentar ler os humores de demônios como um Tinder do tinhoso. Mas pelo menos agora é funcional. Não é mais uma punição que erode a paciência e desperdiça tempo. E se você quiser seguir um guia para adquirir as Personas mais quebradas do jogo, você pode, mas simplesmente seguindo o que o jogo te ensina você tem as ferramentas mais que suficientes para terminar a história sem estresse. E, novamente, se isso não soa como a segunda vinda de Cristo para você, eu vou assumir que você nunca jogou o jogo original—porque comparado com aquele, o combate de Innocent Sin parece um spa de luxo cinco estrelas com lanches grátis.


Mas se o sistema de combate deu um passo atrás para se tornar funcional—abençoadamente, misericordiosamente—o design de masmorras absolutamente não deu. E deixe-me spoilear a franquia inteira para você: e nem vai melhorar por um longo tempo.

Persona 4 é um dos meus jogos favoritos da vida. Eu amo esse jogo com cada fibra do meu ser. Serei um cadáver gelado e rígido no dia em que Never More tocar e meu olho não enche d'água (aquela música final é mais forte que a maioria dos eventos que eu já tive na vida). Mas mesmo eu, alto sacerdote da Igreja de Inaba, serei o primeiro a te dizer: o design de masmorras de Persona 4 é chato pra caceta.

Por quê? Porque a Atlus nunca foi boa em design de masmorras. Nunca. Eles não acertaram em Persona 1, não acertaram em Innocent Sin, não acertaram sequer em Persona 4, sendo que só Persona 5 finalmente quebrou a maldição nos dando masmorras realmente divertidas. Porque se o "aluno modelo dos jRPGs" Persona 4 tem um level design sem graça, você pode imaginar como Innocent Sin se sai. Spoiler novamente: nada bem. As masmorras de Persona 2 são chatas. Não só "chatas de jRPG genérico". Quero dizer, chatas a um nível "que que eu to fazendo com a minha vida".

Não tem puzzle, uma taxa de encontros tão alta que provavelmente viola leis trabalhistas dos monstros, layouts de andares que vão desde "siga a linha reta, campeão" até "desça dois andares, encontre uma escada para cima, desça de novo, suba, esquerda, suba, sacrifique uma cabra, gire em círculo, desça, desça, suba"—alguns desses designs me deram flashbacks do Vietnã de PHANTASY STAR 2, um jogo que ensinou uma geração inteira de crianças que raciocínio espacial é sofrimento.


E isso seria apenas irritante, mas passável... não fosse o fato que o jogo inteiro é estruturado como um dungeon crawler. Você não passeia realmente por cidades ou explora ambientes. Você visita salas isoladas e instalações espalhadas pelo mapa da cidade, mas não há experiência de "andar por uma cidade de verdade". É tudo masmorra, o tempo todo. Então, se a exploração de masmorras não é divertida—e acredite em mim, não é—em um jogo de exploração de masmorras... isso meio que é um problema, sabe?

Mas como em Persona 1 (e tudo antes de Persona 5), você aguenta a exploração tediosa porque tem uma cenoura balançando na sua frente: a Atlus sendo esquisita. Esse é o loop de jogabilidade real aqui. Você tolera os andares para alcançar a próxima parte da narrativa bizarra. Eu preferiria que a Atlus fosse tanto esquisita quanto divertida? Claro, quem não? Existe uma razão para Persona 5 explodir do jeito que explodiu—ele finalmente uniu a loucura característica da série com um design de masmorra genuinamente divertido.

Mas até esse dia... nós marchamos. Nós aguentamos. Nós sofremos por causa da história. Porque sim… É hora. É hora do Führer, fuck yeah! …okay, isso meio errado dizer em voz alta. Mas sabe de uma coisa? A Atlus fez essa cama. Nós só estamos deitando nela—desconfortavelmente, confusos, e nos perguntando quem diabos autorizou colocar Hitler num jRPG.

Porque agora que nós nos arrastamos no caco de vidro através do combate e design de masmorras, vamos voltar ao que realmente importa em Persona 2: QUE CARALHAS ESTÁ ACONTECENDO AQUI? Por que os rumores estão se tornando reais? Quem—ou o que—diabos é o Coringa? E por que Hitler está num jRPG? Tá. Certo. Hora da história. Com spoilers, claro, pq eu paguei o pedágio em lágrimas e tédio; eu mereço pelo menos a chance de explicar a parte boa.


A obsessão temática principal de Persona, como já explicado, o subconsciente—não só o privado com todas suas más decisões e traumas de infância, mas o inconsciente coletivo. Esse foi um conceito que Carl Jung propôs como o porão psíquico compartilhado da humanidade. Claro, a ideia de Jung não era que somos todos Pokémon telepáticos trocando traumas via wifi, mas que cultura, religião, mitologia, a forma com que seus pais te criam e séculos de contação de histórias moldam nossas mentes de formas tão profundas que nem achamos ser possível pensar de outro jeito. 

No universo Persona, esse inconsciente coletivo não é só uma metáfora. É um espaço metafísico literal—o que os fãs de Persona 5 conhecem como Mementos. Mas isso não era novo, o primeiro Persona já havia introduzido a ideia. E aquele jogo também levanta o ponto de que o inconsciente coletivo tem algo como um guardião, um avatar da psique da humanidade que não pode interferir diretamente, mas pode empurrar as pessoas na direção certa, no estilo figura mentora. Essa entidade é Philemon, usualmente estilizada na série como uma borboleta azul ou dourada.

Embora sempre apareça nos jogos na forma de borboleta, Philemon não é a figura mais participativa de Persona 3 em diante

O nome "Philemon" vem do livro "Memórias, Sonhos, Reflexões" de Jung, onde ele descreve um sonho com um velho homem com asas de martim-pescador e chifres de touro voando por um céu cheio de torrões de terra quebrando, carregando chaves. Jung pintou a imagem depois porque nem ele mesmo entendeu essa descrição, e mais tarde encontrou um martim-pescador morto—um pássaro super-raro para Zurique—deitado em seu jardim. Philemon se tornou uma espécie de guru interior para Jung, um símbolo de insight e compreensão superior.


Em Persona 1, Philemon desempenha exatamente esse papel: um mentor que desperta as Personas dos heróis e os aponta na direção do problema a ser resolvido. Ele não pode lutar diretamente, mas nos empurrar na direção certa.

O que leva a pergunta inevitável: se Philemon é a face positiva e guia da psique coletiva da humanidade… há um lado sombrio também? Porque nada na natureza existe sozinho. Toda partícula tem uma antipartícula. Se há uma Persona do potencial e clareza da humanidade… deve haver um avatar de sua sombra. Uma figura nascida de tudo que reprimimos, tudo que escondemos, tudo que preferimos não admitir sobre nós mesmos. O guardião da nossa escuridão.

E sim, essa figura também existe.
Esse é Nyarlathotep.

Agora, eu sei o que você está pensando: "Taquopareo heim, a Atlus está realmente atirando tudo na parede para ver o que cola". Porque, sério—como fomos da psicologia de Carl Jung para o horror cósmico lovecraftiano? Que que isso tem haver além da crença nerd universal de que "Lovecraft = legal", onde está a conexão?

Bem… acredite ou não, não é nem um pouco aleatório.

O mitos de Lovecraft geralmente são sobre seres aterrorizantes e incompreensíveis, tão colossais e alienígenas que a mera tentativa de entendê-los causa danos irreparaveis ao seu cérebro. Essas coisas estão tão além da compreensão humana que nos pedir para entender sequer o que eles são é como pedir para uma bactéria entender o sistema financeiro internacional. Não só difícil—é biologicamente impossível.

Com uma exceção.


Em sua primeira aparição, no poema em prosa "Nyarlathotep" (1920), ele não é uma montanha se contorcendo de tentáculos. Ele não é uma abominação que desafia a geometria. Ele é descrito como um cara alto e de pele escura lembrando um faraó egípcio. Claro, sabendo da… visão de mundo pessoal de Lovecraft, "homem de pele escura" e "abominação inumana" eram meio que a mesma coisa para ele, mas né...

O que importa para nossa discussão é o seguinte: por que a Atlus escolheu Nyarlathotep, especificamente? Por que não Cthulhu, Azathoth, ou algum outro mascote extraterrestre? Porque—assim como Philemon—Nyarlathotep se origina de um sonho.

Numa carta de 1921 para Reinhardt Kleiner, Lovecraft contou um pesadelo que descreveu como "o mais realista e horrível [pesadelo] que experimentei desde os dez anos de idade." Naquele sonho, um homem alto, silencioso, de pele escura o observava—uma figura que se tornou a base para "Nyarlathotep".

Então, em vez de ser uma mistura aleatória de Jung e Lovecraft, Philemon e Nyarlathotep formam uma dicotomia perfeita: Philemon emerge de um sonho junguiano—símbolo de orientação, iluminação, transcendência, o melhor que a mente humana pode aspirar. Nyarlathotep vem do pesadelo de Lovecraft—uma personificação do medo, racismo interno dele e os piores lugares onde a mente humana pode afundar. Um é a mente alcançando para cima, o outro é a mente apodrecendo para dentro.


A Atlus não jogou ideias na parede, eles encontraram dois arquétipos nascidos de sonhos—um de aspiração, um de corrupção—e os tornaram os dois polos da metafísica de Persona. Então agora temos nosso tabuleiro de xadrez cósmico montado: Philemon e Nyarlathotep, dois avatares nascidos de extremos opostos da psique da humanidade, encarando um ao outro como se estivessem prestes a brigar pelo último assento no metrô.

Naturalmente, como em todo mito, lenda, anime e metade dos enredos de histórias sobre deuses, Nyarlathotep propõe uma aposta. Porque claro que ele propõe—nada diz "entidade cósmica antiga" como apostar com a realidade porque não tinha um Nintendo Switch pra jogar.

A lógica do Nyarly é simples e depressivamente característica: se a realidade começar a se curvar em torno dos cantos mais sombrios da mente humana—nossas ansiedades, ódios, lixo reprimido—então a humanidade se destruirá mais rápido que salada de maionese deixada no sol. E ele pensaria isso. Ele é literalmente uma criatura nascida da lama absoluta do pensamento humano.

Philemon, sendo o espírito orientador otimista que é, acredita no oposto. Ele acha que mesmo nas piores condições, podemos escolher empatia, crescimento e altruísmo. Que os humanos não estão condenados a apodrecer no momento em que alguém lhes dá algum tipo de controle sobre suas vidas.

Então a aposta é feita. 

E é daí que vem toda a mecânica de "rumores se tornam realidade". Não é nada aleatório—é o conjunto de regras da aposta cósmica deles. Um cabo-de-guerra metafísico usando o inconsciente coletivo como playground. Legal, né?

Isso responde bem um mistério… mas ainda nos resta a pergunta ardente: Quem—ou o que—diabos é o Coringa? E isso, minha querida audiência inexistente, é onde Persona para de ser puramente metafísico e começa a ser… personal. É, é, eu sei. Eu sou o gênio da comédia.

Então, nossa história começa numa tarde de verão otherwise comum em 1992. "Como você sabe o ano exato?" você pergunta. Simples: estamos num daqueles festivais de verão japoneses clássicos—daqueles com lanternas, gelo raspado, yukatas e, claro, máscaras. Máscaras de Kitsune, máscaras de Hannya… e, porque isso é 1992, o item mais quente da temporada: máscaras de Chōjin Sentai Jetman.

Jetman é um super sentai pelo qual eu tenho muito carinho, e um dia eu vou escrever um ensaio inteiro sobre o tremendo impacto cultural de Jetman na cultura pop japonesa, mas por enquanto tudo que você precisa saber é: as crianças adoravam. E essas crianças, nossas crianças, estão correndo por aí fazendo a chamada de Sentai usual:

"Eu sou o Red Falcon!"
"Você é o Yellow Owl!"
"Você é o Black Condor!"

—comportamento infantil perfeitamente normal pré-smartphones. Caralho, me senti com 200 anos agora reclamando dos jovens... mas adiante. Então um adulto chega, trazendo sua filha para se juntar à diversão: uma garotinha loira e tímida chamada Lisa Silverman.

Lisa é... complicada. Ela nasceu no Japão, mas foi criada por um pai americano que é… digamos, entusiasticamente investido na cultura japonesa. A internet tem uma palavra muito específica para esse tipo de homem: weeaboo. O Sr. Silverman ama o Japão tão intensamente que tenta criar Lisa como uma "dama japonesa própria", mas a sociedade japonesa não exatamente retribui o favor. Na escola, ela sobre bullying direto por seus cabelos loiros e nome ocidental—um problema muito real, aliás. Muitas crianças biraciais no Japão literalmente tingem seus cabelos de preto no ensino fundamental só para evitar chamarem atenção e sofrer bullying.


Então Lisa cresce isolada, machucada, convencida de que não pertence a lugar nenhum. Mas hoje é diferente. Seu pai gentilmente a empurra para o esquadrão Jetman, e Lisa timidamente pergunta se ela tem permissão para brincar com eles—mesmo ela sendo… diferente. O garoto Red Falcon olha para ela como se ela tivesse acabado de perguntar se a água tem permissão para ser molhada e diz: "Claro! Nós somos heróis da justiça. Heróis da justiça nunca fazem isso!"

E assim, Lisa se junta a eles. E pela primeira vez na vida, ela consegue ser uma criança entre outras crianças—rindo, fingindo, brincando sem medo. Naquele exato momento, se você ouvir com atenção, pode praticamente ouvir Philemon cutucando Nyarlathotep com um sorriso presunçoso: "Viu? Eles podem ser bons."
E Nyarly, o eterno eu-sombra, simplesmente resmunga de volta: "...Veremos a respeito disso."

E por um tempo, foi bom.
Tarde após tarde, as crianças se encontravam no quintal do templo para brincar de Jetman, vagar pela floresta, perseguir insetos, ou simplesmente existir juntas da forma que só crianças conseguem—sem agenda, sem vergonha, sem a consciência esmagadora de que a vida adulta um dia transformaria tudo isso em combustível de nostalgia.

Lisa, pela primeira vez na vida, tinha amigos. Amigos de verdade. O tipo que lhe dava a confiança para enfrentar valentões do pátio da escola, o tipo que a fazia acreditar que ela não era uma anomalia na máquina social japonesa perfeita. Por um momento—apenas um verão perfeito e frágil—tudo estava bem.

Mas se tudo ficasse bem pra sempre, não teríamos uma história, teríamos?

Naquele verão, uma garota um pouco mais velha se juntou à sua pequena comunidade: Maya Amano. Ela estava apenas alguns anos à frente deles, mas na lógica infantil essa diferença de idade a tornava praticamente uma sábia numa montanha. Os mais novos a adoravam. Ela se tornou a irmã mais velha calorosa e encorajadora do grupo, e Maya se deliciava em ser alguém especial em vez de apenas a filha de um repórter arrastada de missão em missão.

Mas a coisa sobre missões é: elas terminam. E antes que se passasse muito tempo, o pai de Maya teve que se mudar de novo—e levá-la com ele. É aqui que o Pecado Inocente do título entra em cena.


Em seu desespero infantil, as crianças criam um plano brilhante—um plano brilhante de criança, que é obviamente terrível: se eles impedirem Maya de sair no dia marcado, ela não teria que se mudar. Sem partida, sem tchau. Simples! Então, em sua tarde final, eles decidem trancá-la dentro do templo até de manhã. "Só o tempo suficiente para ela perder o trem", eles dizem a si mesmos. "Só o tempo suficiente para manter nossa irmã mais velha."

E em algum lugar no fundo cósmico, Nyarlathotep se inclina para Philemon com um sorriso lento e predatório: "Eu vou te mostrar do que eles são realmente feitos". Porque na mesma noite, outra história está se desenrolando—uma muito mais sombria: a Queda de Tatsuya Sudou

Tatsuya Sudou era um veterano da Seven Sisters High School durante os anos em que Akinari Kashihara era professora. Guarde esse nome, ele vai ser importante mais pra frente. Mas Sudou era um garoto tímido e ansioso, ele vivia com medo constante de seu pai abusivo, Tatsuzou Sudou. Kashihara—gentil, perspicaz e tudo o que o pai de Sudou não era—se tornou a coisa mais próxima que ele teve de calor paternal verdadeiro. 

Então vieram as vozes. Sudou acreditava que esses sussurros vinham de alienígenas Maian—mensagens de além das estrelas. A verdade era muito mais simples e infinitamente mais aterrorizante: Nyarlathotep havia encontrado uma mente impressionável para brincar.

"I am Thou,
Thou art I"

Mas Kashihara e ele próprio acabaram seduzidos por essa ideia de uma teia de ideias ocultas e desesperados por um significado para suas vidas, juntos, eles documentaram as "mensagens" em um livro intitulado In Lak'ech—uma obra que se tornaria uma espécie de veneno psíquico para a Cidade de Sumaru. Enquanto isso, rumores circulavam sobre Sudou na escola: que ele era esquisito, instável, perigoso. A fofoca só piorava sua paranoia, acelerando seu colapso em delírio total.

E por tudo isso, Nyarlathotep continuou sussurrando. Continuou cutucando. Continuou moldando. Ele convenceu Sudou que seu sofrimento tinha uma fonte: uma bruxa dentro do Santuário Alaya. Se ele a destruísse, ele finalmente estaria livre. Então Sudou, trêmulo e meio louco, rastejou até o santuário naquela noite para "purificá-lo" com fogo. E dentro, trancada por crianças inocentes com corações bem-intencionados, estava Maya Amano.

As chamas devoraram a madeira velha. A fumaça encheu o espaço fechado. Maya, aterrorizada e sufocando, só sobreviveu porque Philemon—porque já que Nyarlathotep ia interferir com os humanos nesse jogo, ela então faria o mesmo—despertou sua Persona. Ela irrompeu do santuário em chamas numa explosão de força psíquica, marcando o rosto de Sudou e salvando sua própria vida.

E aquele momento—o pecado inocente de uma criança colidindo com a mente corrompida de outra—tornou-se a jogada de abertura. O primeiro verdadeiro choque entre Philemon e Nyarlathotep. O começo de tudo que mais tarde engoliria a Cidade de Sumaru inteira.


Porque o rumor se espalhou rápido—rápido demais—de que uma garota havia morrido no incêndio do santuário. E mesmo que Maya tivesse sobrevivido, isso não importava mais. As regras do jogo cósmico tinham sido definidas: se um boato se espalha, ele se torna verdade. Então, de repente, o mundo tinha uma contradição nele: Maya estava viva… e Maya também estava morta. Parabéns, agora temos Maya Schrödinger, tanto queimada até a morte quanto frequentando a escola na manhã seguinte.

E é assim que você escreve crianças lembrando erroneamente de seu passado. Tá anotando como se faz, disgrama de FINAL FANTASY 8

Enfim, as memórias das crianças bugaram. Em sua lembrança, Maya morre no incêndio, o trauma é esmagador, e seu pequeno círculo mascarado—outrora a amizade mais pura que tinham—se estilhaça. Eles se afastam. Eles crescem. Eles enterram tudo sob anos de silêncio, porque fingir que nada aconteceu é o mecanismo de enfrentamento mais fácil que as crianças têm. Mas Nyarlathotep não havia terminado. Ah, não. O ponto inteiro dessa aposta cósmica é empurrar as mentes humanas até que elas quebrem. Por que parar agora?


Então Nyarlathotep escolhe o mais ferido deles: Jun Kurosu. O pai de Jun era um alcoólatra que o culpava pela morte de sua mãe no parto—um homem que via seu filho não como uma criança, mas como culpado de tudo que perdeu. Para Jun, Maya havia sido a primeira verdadeira fonte de calor, a primeira pessoa que o fez sentir-se visto. Perdê-la—ou achar que a perdeu—deixou uma ferida aberta na qual Nyarlathotep poderia deslizar como uma sombra. E os sussurros começaram.

"Não é trágico, Jun?
Você perdeu a única pessoa que se importava.
Eu posso te ajudar a se vingar.
Eu posso te dar poder.
Só me ajude com esse negócio de rumor…
Se você realmente a amava o suficiente pra isso, é claro.
"

Isso foi tudo que precisou. Jun assume o manto de Coringa, reconstrói o Círculo Mascarado do zero e oferece às pessoas "desejos concedidos"—um rumor que naturalmente se torna real—e mergulha a Cidade de Sumaru no caos. Tudo enquanto os velhos amigos, agora adolescentes com traumas meio enterrados e memórias meio apagadas, o perseguem dolorosamente devagar através dos escombros de seu passado.

E quando eles finalmente encurralam o Coringa—quando eles finalmente olham para o rosto de seu velho amigo—é quando a verdade começa a vir à tona.

[BEM, ISSO É TUDO BOM E TRÁGICO E COMOVENTE, MAS… VOCÊ NÃO ESTÁ ESQUECENDO ALGUMA COISA?]

Esquecendo? Eu me lembraria se estivesse esquecendo algo—
…não, espera, não é assim que esquecer funciona.
Tá, você me pegou, Jorge. O que é dessa vez?

[ONDE DIABOS O HITLER ENTRA NESSA HISTÓRIA?!?]

Ah. Certo.

É, eu esqueci completamente que ainda tínhamos um Hitler ali no canto. Acontece com os melhores. Quem entre nós já não esqueceu um ditador raivoso atrás dos almofadões do sofá? 

Então, sim: quando a turma finalmente se reúne, se reconcilia com Maya, recupera suas memórias estilhaçadas e localiza Jun/Coringa, a Cidade de Sumaru já é uma zona de desastre. Mesmo se você conseguir fazer o Coringa voltar a si, superar uma década de trauma e basicamente ganhar as Olimpíadas Emocionais, o plano de Nyarlathotep está quilômetros à sua frente. O sistema de rumores está completamente fora de controle a essa altura, e uma vez que os rumores começam a crescer como uma bola de neve nesta cidade, é mais fáciltentar colocar pasta de dente de volta no tubo.


E você sabe qual rumor se recusa a morrer—aquele que de alguma forma sobreviveu através de décadas de documentários, programas de conspiração e o seu ocasional tio bebado no grupo de Whatsapp da família?

Aquele que diz que o alto comando nazista — sim, incluindo o homem de bigode — não morreu realmente no bunker, mas escapou, viveu confortavelmente em algum lugar e talvez até tenha aberto um bar na praia na Argentina. É um dos pedaços de pseudo-história mais persistentes que todos nós já vimos referenciados em algum momento. Até Os Simpsons tem uma piada sobre isso.


Mas lembre-se: na Cidade de Sumaru, rumores não são só perigosos — são bombas de realidade literais. E antes que alguém possa dizer "Mein Gott", BUM: o Último Batalhão — os lendários sobreviventes de elite nazistas — começam a desfilar pelos céus e pelas ruas como se estivessem liderando o pior desfile de Ação de Graças de todos os tempos.

Senhoras e senhores, a realidade oficialmente deixou o prédio. 

De repente você está lutando contra mechas nazistas pisoteando uma cidade japonesa, com o próprio Führer segurando nada menos que a Lança do Destino como se tivesse acabado de comprá-la na Ali Express. A essa altura, o jogo não só saiu dos trilhos — ele inventou novos trilhos, os colocou em chamas e se lançou para a estratosfera enquanto dava o dedo do meio para o senso comum. E é exatamente nesse momento que Nyarlathotep se vira para Philemon com o equivalente cósmico de um encolher de ombros presunçoso e diz: "Eu te disse."

Philemon, abençoado seja seu otimismo, ainda acredita que as coisas só terminam quando elas terminam… mesmo que o final envolva nazistas paranormais cavalgando mechas em uma dimensão construída sobre trauma coletivo. Mas o que o Último Batalhão realmente quer, afinal? E a resposta éi: Nazistas tentando invocar o verdadeiro DEUS EX-MÁCHINA de reset mundial, alimentado por OVNIs e apoiado por abominações lovecraftianas.


Porque, claro, o Último Batalhão não quer só dominação, não — isso seria normal. Em vez disso, eles querem usar a Lança do Destino (você sabe, a arma DLC favorita de Hitler) para despertar uma superarma cósmica do tamanho de uma cidade do inconsciente coletivo e basicamente reformatar a Terra.

E isso nem é a coisa mais esquisita do jogo.
Isso é tipo a terceira mais esquisita.

Veja, quando a realidade já está dando mortais para trás — crianças com memórias fraturadas pelo trauma, uma Maya de Schrödinger que está tanto morta quanto viva, um culto mascarado funcionando com instabilidade emocional pura, e Nyarlathotep chutando a sociedade para o caos niilista — bem, a única escalada lógica é: naves de batalha nazistas voadoras nos céus do Japão enquanto uma entidade cósmica trickster torce como se fosse WrestleMania.

E tudo isso está acontecendo enquanto o elenco tenta não entrar em colapso em desespero existencial porque acabou de descobrir que sua infância foi basicamente escrita por alguém que embaralha cartas de tarô por diversão e acha que consequências são opcionais.


Mas a verdadeira peça de resistência — o momento em que esse delírio cruza da absurdidade para a arte — é que a Atlus leva isso completamente a sério.

Sem piscadelas.
Sem ironia.
Sem quebra de quarta parede "haha, isso não é bobo?".
Apenas: "Sim, Hitler está aqui.
Ele tem uma lança divina.
Rumores são reais.
O mundo está acabando.
Por favor, aproveite a masmorra.
"

Porque, por que não, né? Porque a essa altura, rumores e realidade estão desmoronando um sobre o outro como se alguém tivesse batido THE X-FILESDEUS EX e METAL GEAR SOLID 2: Sons of Liberty num liquidificador e declarado: "Ok. Tudo isso é cânone agora."

Porque enquanto zepelins nazistas desfilam pelo céu, você também tem que caçar as Caveiras de Cristal — sim, AQUELAS Caveiras de Cristal, as de "sobreviver-a-uma-explosão-nuclear-numa-geladeira" — para impedir Hitler de ativar Xibalba. Que, a propósito, é o submundo maia, exceto que aqui também é uma nave estelar alienígena que distorce a realidade, porque os maias construíram pirâmides e pirâmides são obviamente tecnologia alienígena, e as caveiras também são alienígenas, e Hitler quer usar a Lança do Destino — a literal Lança de Longinus banhada no sangue de Cristo — para controlar Xibalba e reescrever a realidade para que ele possa ser real, porque até ele sabe que é só um boato vestindo um pacote de DLC de pele humana.

E… puta que pariu, a Atlus absolutamente perdeu o controle de seu roteiro a essa altura. Eles nem estão mais fingindo. A essa altura você se sente como se estivesse lendo a transcrição de um vídeo do YouTube de teoria da conspiração tocando que o algoritimo achou após ficar rodando sozinho às 3 da manhã.

E…
e…
e…
e isso significa que Nyarlathotep estava certo.

Nós somos uma bagunça.
Nós precisamos de controle.
Nós não podemos ser confiados com poder.
Nós somos mesquinhos.
Nós somos corruptíveis.
Nós somos covardes, gananciosos, vingativos, macaquinhos cruéis vestidos em jeans e rancor. Tire as máscaras, as pretensões, a sociedade educada, e o que resta é um coquetel de medo, ego e despeito balançando dentro de um crânio que ainda se borra de medo achando que o vento nos arbustos são tigres.

Isso é real.
Isso é verdade.
Esses somos nós.

Mas.

Philemon também estava certa.
Porque isso não é tudo o que somos.

Nyarlathotep jogou tudo que ele tinha nessas crianças. E eu quero dizer tudo: trauma, perda, abandono, amnésia, monstros, culpa — e até o Adolf FILHADAPUTA Hitler — e ainda assim… eles não quebraram. Eles não desmoronaram. Eles não deixaram o universo os descartar como apenas mais uma piada niilista. Eles ficaram de pé. Porque é isso que nós fazemos.

É isso que nós humanos fazemos no nosso absoluto melhor: nós ficamos de pé. Nós aguentamos. Nós rastejamos para fora da cratera, sangrando e cansados e furiosos, e ainda escolhemos continuar.  Enquanto tivermos uns aos outros — enquanto houver amor, amizade, memória, até a mais tênue conexão — nós podemos resistir ao ódio fervendo em nossos cérebros de macaco.

Nós podemos ser melhores que esses macacos rosnantes que a evolução nos fez ser.
Nós podemos escolher generosidade num mundo que recompensa crueldade.
Nós podemos ser altruístas mesmo quando o medo nos diz para correr.
Nós podemos perdoar.
Nós podemos seguir em frente.

E o mais importante, n absolutamente, desafiadoramente, triunfantemente, podemos ser mais espertos que até mesmo um deus psicológico que pensou que a humanidade era só uma grande piada cósmica. Porque às vezes a piada revida. Porque quando Nyarlathotep propôs sua grande regra cósmica — "todo boato se torna real" — havia uma pequena e deliciosa brecha que ele não considerou.

O que acontece se ele se tornar um boato?

Se as pessoas começarem a sussurrar sobre o grande deus-sombra malvado por tempo suficiente, então ele também é arrastado para a forma física. Chega de metáfora. Chega de marionetista cósmico intocável. Apenas mais uma coisa tornada real pela crença.

E como um grande filósofo dos nossos tempos disse certa vez:


Esse é o momento em que a personificação psicológica da sombra coletiva da humanidade para, encara diretamente a câmera e internamente sussurra: "...oh. Merda.". Porque depois que você espanca o Führer de volta à inexistência usando nada além da força crua de sua personalidade (uma frase que nunca pensei que escreveria), sua briga final não é com algum chefe de rumor de bigode — é com o próprio deus lovecraftiano.

E a forma final de Nyarlathotep é genuinamente brilhante, genuinamente perturbadora: uma abominação se contorcendo composta dos corpos dos pais do grupo. Enquanto você luta, cada membro grita os traumas que moldaram os personagens:

  • O pai da Lisa latindo: "Você será uma mulher japonesa de verdade!"
  • O pai do Jun rosnando: "Você deveria ter morrido no nascimento!"
  • O pai da Maya zombando: "Venha para o papai", zombando da ausência que definiu sua infância.

Vamos pausar aqui, porque preciso apontar uma coisa. Este chefe final profundamente simbólico e emocionalmente esmagador existe na mesma mídia onde um macaco soca um crocodilo senciente para reclamar um tesouro de bananas gigantes. Eu apenas achei que esse contraste precisava ficar registrado.


Mas uma vez que você derrota o kaiju freudiano literal feito das daddy issues de todo mundo — depois que você destrói os membros que personificam suas feridas psicológicas — algo muito interessante acontece: o que resta de Nyarlathotep não é tão monstruoso. E eu amo esse simbolismo, porque sem se alimentar de nossa dor, nossa culpa, nosso trauma geracional, os piores impulsos da humanidade perdem seus dentes. Nosso "Eu Sombra" é aterrorizante apenas quando nutrido.

Então os heróis derrotam Nyarlathotep.
O dia está salvo.
O bem triunfa sobre o mal e espanta o temporal.
Rolam os créditos, certo?

É. Não. Ainda não. Porque quando o time retorna ao reino de Philemon depois de derrotar Nyarlathotep, não há nenhuma fanfarra triunfante esperando por eles.
Nenhum aplauso.
Nenhum alívio divino.
Philemon não está sorrindo — ela está de luto.

Quando eles perguntam por que ela parece estar comparecendo ao próprio funeral, ela simplesmente lamenta: "...se apenas mais pessoas fossem como vocês". E é aí que cai a ficha: veja, a aposta entre Philemon e Nyarlathotep nunca foi sobre esse grupo de crianças. Não era sobre se o grupo poderia sobreviver ao julgamento — eles sobreviveram, e saíram forjados no fogo, mais fortes do que nunca. A aposta era sobre a humanidade como um todo.

A humanidade.
Todos nós.
Nossa alma coletiva.

E antes que o elenco tenha tempo de processar o soco cósmico no estômago de "bom trabalho, mas ainda perdemos", Kashihara — sim, aquela Kashihara que eu pedi pra você lembrar e você já esqueceu— agarra a Lança do Destino largada por ali da luta com Hitler e apunhala Maya, gritando: "MORRA, BRUXA!"

Lembra dela?
Provavelmente não.
A essa altura, até o grupo mal se lembra dela.

Mas ela também era parte do plano de Nyarlathotep. Lá atrás, quando Sudou ouviu suas "vozes alienígenas" e planejou queimar o santuário, Kashihara era aquela que validou sua loucura, rabiscando mensagens e conspirações no livro "In Lak'ech". Uma pequena semente de rumor plantada anos atrás — e aqui está ela agora, uma árvore que cresceu podre e sem controle.

Porque esse é o ponto: até a menor, mais estúpida crença humana pode crescer até destruir tudo. E assim Maya, aquela que salvou a humanidade, aquela que enfrentou o Último Batalhão e um deus aberrante Lovecraftiano, aquela que simbolizava esperança e conexão e a força para aguentar… morre. Abatida por uma pessoa completamente aleatória que apenas acreditou na história errada.

É estúpido, é sem sentido, é imensamente cruel... mas não menos verdade por causa disso. E assim, Maya jaz ali empalada pela Lança do Destino, exatamente no centro da Grande Cruz (um evento astrológico real que aconteceu em agosto de 1999, em que as constelações de Touro, Leão, Escorpião e Aquário se alinham em uma cruz, sendo que o zodíaco é um tema recorrente do jogo), cercada pelos quatro apóstolos que a veneravam.

Então, é— o simbolismo é bem claro. A Atlus não chegou a ponto de dar a ela uma cruz de madeira, mas eles não foram exatamente sutis aqui.

Em sua angústia, as crianças se voltam para Philemon.
Deve haver alguma coisa.
Qualquer coisa.
Algum botão de desfazer cósmico.
Eles venceram. Eles aguentaram cada prova lançada a eles — perda, culpa, demônios, Hitler, trauma, destino — e eles ainda ficaram de pé. Não pode terminar assim. Não é justo.

E Philemon hesita. Então lhes dá a única resposta que pode: Ela... pode esquecer. E se  o inconsciente coletivo não se lembra, então nunca aconteceu. O mundo será refeito, resetado — mas a um custo terrível. Eles perderão seus laços. Suas memórias. Sua história compartilhada. Tudo que os tornava eles. E mais do que isso, se eles se encontrassem de novo, a mesma tragédia eventualmente se repetiria. Esse é o preço.

E assim, relutantemente, dolorosamente, em lágrimas, um por um, eles aceitam.

Um por um, eles voltam a um mundo sem o outro — um mundo remodelado por seu próprio esquecimento. Mas antes da última partida, antes do último adeus, o protagonista pergunta a pergunta que todo jogador tem nos lábios: "Por quê? Por que qualquer coisa disso teve que acontecer?"

E Philemon explica a aposta.
O julgamento.
O jogo cósmico que colocou tudo em movimento.

E então você tem a opção de agradecer Philemon ou, em um dos momentos mais satisfatórios da história dos videogames, Tatsuya Suou — exausto, de luto, furioso — dar um murro em Philemon bem no meio da cara. Bem na cara-de-deus. O soco mais catártico desde que Luffy esmagou a fuça daquele Dragão Celestial. Porque puta que pariu Philemon, cê foi cuzona pra caralho mina, porra né? Vai apostar a mãe pra ver se quica! 

Mas enfim, nosso herói dá uma porrada na cara da entidade com tanta raiva e frustração que racha a máscara de Philemon — literalmente. E por baixo dela, Tatsuya vê seu próprio rosto.

Porque Philemon não é um deus.
Não é um alienígena.
Não é alguma força divina externa.
Philemon é a humanidade — nossa esperança, nosso potencial, a parte de nós que se esforça para se elevar acima da escuridão. Nyarlathotep é nossa sombra — o medo, a crueldade e a podridão que carregamos dentro. "Tu és eu, e eu sois tu". O mantra de toda a série Persona tornado literal.


E com essa revelação, Tatsuya retorna ao novo mundo — um mundo sem seus amigos, sem Maya, sem a vida pela qual ele lutou. Mas moldado por sua escolha. Por seu sacrifício. Pela esperança de que a humanidade, algum dia, possa provar que Philemon estava certo.

E então, há o epílogo desta tragédia. Nossos heróis andam pelas ruas de Sumaru em um dia como qualquer outro. Nada estranho, nada cósmico, nada apocalíptico — apenas a vida seguindo em frente silenciosamente. E naquele rio de pessoas, eles se cruzam. Maya esbarra em Tatsuya… e eles não se conhecem. Eles não reagem. Eles nem sequer sentem aquele puxão fantasmagórico de reconhecimento que você espera de almas tocadas pelo destino. Porque nesta realidade, eles nunca se conheceram.

Todo o seu crescimento, suas piadas, suas discussões, seus laços, cada cicatriz e cada passo que deram juntos — sumiram. Apagados. Toda a sua jornada compartilhada, toda a alegria, a dor, o amor, o medo… reduzidos a nada.
Esse é o preço a ser pago pelo seu pecado inocente.

E então a cortina cai sobre a primeira parte.


É aqui que a história nos deixa: uma rua silenciosa, dois estranhos e o peso de um mundo reconstruído sobre o sacrifício. Depois deste ponto, só há um destino pela frente… a segunda parte da história, Persona 2: Punição Eterna. Mas essa, meus queridos, é uma história para outro dia.

E este foi Persona 2: Innocent Sin. Tenha em mente: esta é apenas a versão resumida da história. A coisa completa está encharcada de camadas sobre camadas de simbolismo psicológico e religioso, callbacks, prenúncios, arcos de personagens espelhados e densidade temática suficiente para fazer um professor junguiano começar a suar. Mas ainda assim — você entendeu a ideia geral da coisa.

Então… com tudo isso, eu acho que P2:IS é um grande jogo?


Bem… permita-me colocar assim: esta é absolutamente uma das narrativas mais ousadas e ambiciosas que eu já vi — o que, considerando a frequência com que eu tenho dito isso recentemente nesse blog, me faz muito feliz com os jogos do início dos anos 2000, realmente enche meu coração de jogador murcho de alegria. Mas... um grande jogo?

…Não. Não, não é.

O combate não é tão frustrante quanto o primeiro, claro, mas ainda estamos até o joelho em masmorras de filler. O ritmo é inchado. O design de masmorras é tão monótono que até Nyarlathotep provavelmente olharia para ele e diria: "Tá, peguei pesado com eles" Honestamente, uma das razões pelas quais eu decidi resumir a história toda é porque nunca mais na vida eu pretendo jogar essa coisa de novo.

Se essa história tivesse um mangá, anime, ou mesmo uma adaptação meia-boca de light novel eu trocava sem piscar. A história é fantástica, mas a jogabilidade me entediou até as lágrimas. Estou feliz por tê-lo experimentado. Estou feliz por conhecê-lo. Mas estou ainda mais feliz que este obstáculo (jogar o jogo) tenha ficado pra trás.

E pelo amor das habilidades de hackear da Futaba-chan, eu rezo para que a segunda parte não seja tão extenuante. …O que é algo que eu vou descobrir agora, na verdade!

PERSONA 2: Eternal Punishment (Jun/2000)


Lançado um ano depois de Innocent Sin, Eternal Punishment é continuação da história do jogo anterior... o que imediatamente levanta uma questão: por que esse não é o Persona 3, então? Tipo, se você vai ter dois jogos chamados Persona 2, a primeira ideia  que te vem a mente é eles são situação estilo Pokémon Red e Blue — o mesmo jogo, versões diferentes. Mas não. Não é uma edição alternativa, é uma continuação normal.

E embora a Atlus nunca tenha explicado oficialmente por que não deu um número novo, eu diria que existem dois motivos. O primeiro, e mais óbvio é que eles usam os mesmos assets nos dois jogos. O que quer dizer os mesmos cenários, mesmo sistema de combate, enfim o mesmo jogo só programado de duas maneiras diferentes. Não na história ou nos temas, mas com certeza nos recursos de produção. O segundo motivo, e esse é um pouco mais complicado, é que ambos jogos são dois pontos de vista diferentes mas que se complementam e fariam bem menos sentido, ou pelo menos teriam menos força enquanto produto de arte, se analisados isoladamente. A experiencia completa de Innocent Sin precisa de Eternal Punishment, e vice-versa. Eu vou tentar explicar o que eu quero dizer com isso ao longo dessa review.

Mas o que eu posso afirmar com absoluta certeza é o seguinte: antes de mergulhar na análise, tem um comentário importante do produtor Kouji Okada que joga luz sobre o que essa sequência representa. Eis o que ele disse em uma entrevista:

"Acredito que a chave para expressar opiniões e mentalidade adultas, em oposição às dos jovens, não estava só em criar atmosfera no jogo, mas em incorporar esses aspectos na jogabilidade em si."

Guarde essas palavras, elas vão ser importantes para entender o meu ponto sobre Eternal Punishment. O jogo quer que a mecânica, o loop de gameplay reflita a transição do caos emocional adolescente (a essência de Innocent Sin) para a perspectiva cansada, carregada e muitas vezes incômoda dos adultos lidando com consequências. Tematicamente, essa sequência não é mais sobre desejos que dão errado, projeções idealizadas ou traumas de adolescente virando demônios. É sobre responsabilidade e a percepção desconfortável de que ser adulto não vem com finais felizes — só com novas camadas de punição, eternas ou não.


Bom, se você leu minha review de Innocent Sin, já sabe que o jogo anterior terminou com o mundo sendo reiniciado só para desfazer a morte da Maya — e também para apagar aquele pequeno detalhe de que o Hitler rasgou a realidade enquanto caçava as Caveiras de Cristal dentro de uma nave maia chamada Xibalba, controlando a coisa toda com a Lança do Destino. Taí uma frase que não se diz todo dia.

Enfim.

Eternal Punishment começa nesse mundo reformatado, e aqui a Maya Amano está viva, saudável e agora é nossa protagonista de verdade. Sendo jornalista, ela é escalada para cobrir uma onda estranha de assassinatos ligados ao tal "caso do assassino serial Joker". Segundo uma lenda urbana que tá bombando na cidade, se você discar seu próprio número de telefone à meia-noite, uma figura misteriosa chamada Joker aparece e mata quem você mandar. Basicamente um Death Note, mas com mais burocracia e uma continha da Claro para pagar.

Maya, sendo uma adulta responsável com credencial de imprensa, resolve investigar a verdade por trás dessa tal maldição. Bem, a chefe dela decide por ela, ela queria mesmo era cobrir outra coisa... mas, emprego, né? O que, pra quem jogou Innocent Sin, soa bastante familiar. Lendas urbanas virando realidade? Uma figura misteriosa chamada Joker? Boatos moldando a realidade? Foi exatamente assim que o jogo anterior virou de "adolescentes brincando com lendas urbanas" para "o mundo acaba porque o Hitler baixou um magia proibida". Então... a história vai se repetir? O mundo vai descer pelo mesmo ralo?

Bom, não. Não exatamente.


Algumas coisas estão diferentes nesse novo mundo. Primeiro: o Tatsuya Suou, ao contrário do resto do grupo antigo, de alguma forma manteve as memórias da timeline original. Ele lembra de tudo — o desastre cósmico, o reset, a treta emocional, Hitler somehow returned — tudo. E como ele sabe muito bem o quanto as coisas podem desandar se o tal fenômeno "boatos viram realidade" fugir do controle de novo, ele decide agir por conta própria.

A noticia boa é que como ele já jogou esse jogo antes, dessa vez ele sabe as regras dele: se os rumores moldam o mundo, é só espalhar os rumores certos na hora certa pra tudo ficar sob controle. Sem crise de fim do mundo, sem colapso dimensional, sem ditador lovecraftiano. E... ele meio que consegue. Quase. O suficiente pra evitar outro apocalipse — mas não pra impedir que qualquer problema aconteça, até pq senão não teria jogo. O que leva a resultado diferente, e é onde o tom de Eternal Punishment se afasta completamente da loucura acelerada de Innocent Sin.

Relembrando, a ideia de Innocent Sin era ser uma gangue Scooby-Doo adolescente enfrentando um caos metafísico. Um bando de estudantes do ensino médio matando aula pra salvar o mundo — igual todo anime ensina que isso é uma terça-feira normal. A história apostou tudo na energia selvagem da juventude: decisões impulsivas, emocionais à flor da pele e uma sensação de aventura que só aumentava as apostas a cada esquina.


Mas Eternal Punishment faz uma virada deliberada. Dessa vez, o foco não está nos adolescentes com energia emocional infinita e uma plot armor grossa o bastante pra sobreviver à mitologia. Aqui o foco é o mundo adulto. Não, não ESSE tipo de adulto, seu pervertido doente, me refiro a adulto de verdade!

A nossa protagonista Maya Amano não é uma estudante que as maiores preocupações da vida são atividades daqueles clubes de anime e um crush — ela é uma adulta com emprego, prazos, aluguel e aquele desespero existencial que vem quando você entende como seu tempo é limitado. Seu grupo é formado por outros adultos, cada um carregando sua própria bagagem emocional, responsabilidades e traumas acumulados. Se Innocent Sin pergunta "E se seus desejos de adolescente se realizassem?", Eternal Punishment responde com "E se suas responsabilidades de adulto esmagassem você antes mesmo dos demônios aparecerem?".

Porque se a vida ensina alguma coisa — e ninguém te avisa disso — é que o drama do ensino médio, por pior que parecesse na época, não é nada perto do furacão da vida adulta. Aos 15 anos, o mundo acabava se seu crush te ignorava. Aos 28, o mundo acaba porque seu chefe quer aquele relatório em duas horas, as contas desse mês não vão fechar, sua ansiedade tá a mil e a bateria do celular acaba na pior hora. 

E o jogo reflete essa mudança tonal muito bem. Adolescentes vivem num mundo onde paixões e dramas pessoais moldam a realidade. Adultos vivem num mundo onde corporações, conglomerados de mídia e instituições eticamente questionaveis moldam a realidade. A molecada espalha rumores que sem querer invocam deuses e demonios,  adultos usam os mesmos rumores pra lucrar e controlar.

O cast da New World Order não é exatamente o mais chamativo do mundo dos games...

Então, quando o fenômeno do rumor ocorre nessa nova timeline, não vira uma vingança pessoal ou um plano de revenge trágico. Em vez disso, é logo cooptado pela máquina do poder. A Nova Ordem Mundial — uma organização sombria com tentáculos no governo, mídia e polícia — entra em cena e usa o rumor do Joker pra sua própria agenda. Eles não querem closure emocional; querem influência, medo e manipulação em massa.

De repente, nossos heróis não tão lidando com "um vilão e seus quatro generais de anime" igual ao seu típico jRPG de sábado de manhã. Eles tão enfrentando a manipulação da percepção pública, distorções da mídia e um sistema que usa polícia, propaganda e burocracia como ferramentas. É um conflito onde você não pode resolver só dando um soco no chefe pra consertar o mundo. Você tá lutando contra algo muito mais abstrato e muito mais familiar na vida real: um sistema que vive de controlar a narrativa. Ou seja: as apostas não diminuíram — só ficaram brutalmente adultas.

[TÁ, EU ENTENDI O TEMA, MAS... NÃO É UM DOWNGRADE? QUER DIZER, NUM MOMENTO VOCÊ TÁ NUMA AVENTURA ÉPICA SOCANDO NAZISTAS, CAÇANDO ARTEFATOS CÓSMICOS E ENFRENTANDO CONSPIRAÇÕES... E NO OUTRO TÁ LUTANDO CONTRA CARAS DE MEIA-IDADE DE TERNO ARMADOS COM PLANILHAS?]

Sabe de uma coisa, Jorge? É. Você tem razão.  Em questão de espetáculo puro, Eternal Punishment dá um passo pra trás na loucura adrenalínica de Innocent Sin. Em vez de vilões icônicos de anime com passado trágico, personalidade extravagante e bagagem emocional pra encher um livro de terapia, seus antagonistas aqui são... adultos. Tipos corporativos de meia-idade, arrogantes talvez, desagradáveis certamente, mas cujo maior traço de personalidade é achar que margem de lucro justifica tudo. Eles não são apaixonados. Não são trágicos. Nem são interessantes. 


E esse é exatamente o ponto. Porque essa é a realidade adulta, a destruição do mundo muitas vezes vem não de um maluco rindo malignamente, mas de um executivo entediado fazendo contas numa sala de reunião.

  • E isso conecta perfeitamente com aquela fala do produtor Kouji Okada que eu citei. Eternal Punishment não é só uma história sobre ser adulto — é um jogo feito com a precisão e prioridades adultas. Ele troca paixão juvenil por estrutura; energia selvagem por competência; caos por clareza. O que EP perde em bombástico adolescente, compensa com um design de jogo visivelmente melhor.
  • O pacing dungeon/downtime é muito mais fluído.
  • A dificuldade foi balanceada para ficar interessante, Innocent Sin é bem entediante o quanto vc consegue seguir em frente só macetando o botão;
  • O fluxo de combate é mais rápido e suave (e oxalá ao Mementos pela Atlus por finalmente baixar a taxa de encontro).
  • O design das dungeons também melhorou bastante, equilibrando puzzles simples com layouts inteligentes que recompensam exploração sem ser um porre.

Olha, eu ainda não amo o design de dungeon da Atlus — e definitivamente não estamos falando de uma genialidade nível THE LEGEND OF ZELDA: Ocarina of Time. Mas comparado com Innocent Sin é um puta upgrade e eu defintivamente não me senti entediado. Majoritariamente.

E o jogo tem bem mais conteúdo ainda:

  • Dungeons secretas
  • Personas secretas
  • Sidequests
  • Suporte de verdade ao New Game+

— tudo que faltou no primeiro jogo. Então a sensação que eu tenho é essa: o primeiro jogo era movido pelo calor da juventude — ansioso demais, apaixonado demais, cheio de ambição, mas sem polimento. É bagunçado do jeito que adolescente é bagunçado: emocionalmente intenso, criativo pra caramba, mas estruturalmente caótico.

O segundo jogo é uma história sobre adultos resolvendo um problema, e parece que foi feito por adultos também. A narrativa é mais fria, cínica, menos viajada; mas o design é mais apertado, controlado, eficiente. Profissional. É polido do jeito que só experiência e contenção conseguem.


E talvez eu esteja lendo demais onde não tem nada — mas honestamente, analisar simbolismo é todo o ponto da série Persona — cada jogo parece mecanicamente construído pra refletir seus temas. Um é a juventude caótica vazando pelos poros; o outro é a vida adulta deliberada, cuidadosa e metódica. Sonho versus projeto. Paixão versus precisão. Duas metades de um mesmo todo.

Então, Eternal Punishment não joga um ditador da vida real em você como a personificação dos piores impulsos humanos. Não te dá crianças cujas escolhas impulsivas deram inicio ao apocalipse. Em vez disso, opta por algo mais quieto, pé no chão, enraizado no horror mundano da vida adulta. Seu tom é mais maduro, sua narrativa mais contida. Personagens como Baofu e Ulala não escondem partes de si por trauma ou confusão — escondem porque é isso que adultos fazem. Eles curam a própria identidade. Eles compartmentalizam. Só mostram o que é seguro. E personagens como Katsuya evoluem de forma sutil, não com revelações dramáticas, mas com pequenos passos — o tipo de crescimento que só faz sentido quando você já tem uma certa experiencia de vida.

Ainda assim, algo parece clicar esquisito. Você vê ecos do mundo de Innocent Sin: desastres parecidos acontecem, momentos familiares se repetem, os cenários mudaram mas não mudaram. Mesmo com combate melhorado, dungeons mais gostosas e a negociação com demônios simplificada (glória a quem percebeu que não era divertido precisar de um diploma de psicologia pra conversar com uma pixie), na maior parte do tempo parece... menos empolgante. Mais quieto. Quase como se o jogo estivesse pedindo pra você sentir a falta de algo que você teve.

E de certa forma, me senti igual o Tatsuya jogando isso. Tatsuya tenta evitar o desastre com as únicas ferramentas que um adolescente tem: um senso de justiça ardente, ideais heroicos e a crença de que se lutar com força suficiente, pode consertar o mundo. Mas a Maya e os outros adultos chamam a atenção dele sobre isso. Eles veem a determinação dele não como heroísmo, mas como imaturidade. Porque o mundo não funciona assim. Não é assim que adulto resolve os problemas. O mundo adulto roda na base do compromisso, da decepção, de sobreviver em vez de vencer. Eu entendo o Tatsuya. Entendo mesmo. A abordagem dele é mais legal, mais cinematográfica, mais divertida. Mas ser adulto não é legal ou divertido, na real. E o jogo parece saber disso muito bem.

Prel explicando PE2:EP em uma casca de nóz

Essa é nossa verdadeira "punição eterna": quando a gente perde a inocência da juventude — quando a gente entende o mundo como ele é — não tem volta. E sim, comparado com o auge operístico de Innocent Sin, a experiência é um downgrade. 

Então, sim, Persona 2: Eternal Punishment parece o eco mais fraco e sem graça de Innocent Sin. E isso não é um defeito — é toda a tese temática da duologia. A vida adulta, de muitas formas, é a sombra da adolescência: mais quieta, mais reflexiva, mais voltada pro exterior e geralmente mais solitária. Em Innocent Sin, um grupo de adolescentes luta pelo direito de definir a própria vida, enfrentando expectativas e autoridade dos pais. Quero dizer, literalmente o chefe final é um Megazord com os pais dos personagens do grupo e os traumas que isso trás. Em Eternal Punishment, seguimos adultos sem mentores, sem direção, sem rede de segurança, sem ninguém contra quem se rebelar. São pássaros livres, mas solitários.

Só que, pra mim, essa sutileza teve um preço. Gostei da maturidade, dos temas, do cuidado — mas não me conectei emocionalmente. O elenco ainda é excelente, mas não cliquei com eles como cliquei com a turma de Innocent Sin. Entendi por que revisitava as mesmas dungeons, e sim, foram mais fáceis da segunda vez. Mas também pareceram menos criativas, menos surpreendentes, menos sonhadoras. É igual na vida: quando você cresce e já sabe como as coisas funcionam, tudo fica mais fácil — mas também mais sem graça, mais rotineiro, mais comum.


E mesmo assim, o que a Atlus fez aqui é incrível. Eles contaram uma história não só com diálogo e cutscene, mas com a própria estrutura do jogo. No pacing, nas mecânicas, no design de dungeon, na curva de dificuldade — cada escolha técnica reforça os temas narrativos. Se isso não é arte na forma mais pura, não sei o que é.

A duologia Persona 2 pode não ser perfeita como videogame, e honestamente nem são tão bons como RPG individualmente. Mas a experiência do todo — e é por isso que faz sentido sim esse pacote ser uma duologia e não Persona 2/3, já que um depende do outro como contrapeso para elevar o seu próprio valor — é uma declaração artística que nenhum RPG da época tentou. Até onde eu saiba não existe nada igual na história dos videogames, e a essa altura, eu duvido muito que existirá.

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