quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

[#791][SNES] WONDER PROJECT J: The Machine-Boy Pino [Setembro de 1994]


Okay, esse daqui é um realmente estranho: Wonder Project J é um jogo nunca lançado fora do Japão que é indissociavelmente dependente de texto. Não é algo que você pode "dar um jeito" sem ler, então realmente cabe perguntar pq caralhas a Super Game Power fez uma matéria sobre esse jogo japonês. Não um preview, isso entenderia, mas uma matéria de duas páginas com notas e mostrando todos os capítulos. Pra que esse trabalho todo por um jogo que absolutamente ninguém no Brasil que não lesse kanji fluentemente (ou seja, uma parcela realmente pequena da população) é algo que só podemos nos perguntar o que diabos deu na cabeça do Chefe.

Mas quer saber? Eu realmente fico feliz que eles o tenham feito - então eis aqui minha pequena demonstração VINTE E SEIS ANOS DEPOIS de que nada nunca é realmente em vão. Exceto talvez a Formula de Bhaskara, ensinar isso não tem utilidade nenhuma.

Eu tenho que avisar a vocês, eu não tenho maturidade para lidar com poder nomear o seu personagem em jogos

Dito isso vamos começar do começo: Wonder Project J é um Raising Sim, e eu não esperava encontrar isso por aqui. Quer dizer, eu entendo que esse genero é relativamente popular no Japão (e por "relativamente popular" eu quero dizer que pelo menos tem um nicho - o que é mais do que dá pra dizer desse lado do planeta) e não é fora de proposito encontrar um no Super Famicom. Agora ver isso em uma revista brasileira é algo realmente inesperado.

COM LICENÇA... MAS ESSE JOGO É UM O QUE?

Ah sim, Jorge, verdade. No caso de hoje precisamos começar um pouco mais do começo que o habitual: a origem dos "Simuladores de Criação" é difícil de determinar, mas provavelmente é rastreável até Little Computer People de 1985. "Raising Sim" é um termo bastante nebuloso como genero porque engloba vários estilos de gameplays. Usualmente um Raising Sim é também uma visual novel, um jRPG ou um point'n click (como nesse caso), e frequentemente é uma salada de todas essas coisas juntas.

Embora indiscutivelmente originário do Ocidente, assim como o RPG os japoneses pegaram a ideia e a redefiniram em algo próprio. O Japão produz dezenas de administrar uma vida virtual, a maioria dos quais nunca foram localizados.

Uma das mais famosas séries de Raising Sim é a Princess Maker, que mistura a logística de criar uma filha com gerenciamento de estatísticas complexo e combate/exploração de um jRPG. Outros exemplos famosos desse genero - e amplamente mais conhecidos no ocidente - são os brinquedos Tamagotchi, ou os jogos de Nintendogs da Nintendo. 

Não é dificil entender pq os Raising Sims se tornaram tão populares no Japão, a vida para um homem ou mulher de negócios japonês básico normalmente significa morar em um apartamento minusculo no centro da cidade, onde o espaço é limitado. Eles trabalham de 12 a 14 horas por dia, o que torna difícil cuidar de um animal de estimação ou mesmo ter relacionamentos significativos. Isso explica por que coisas como Mooji My Tamagotchi ou Digimon tiveram que existir: elas são uma maneira conveniente de ter algo com o que se relacionar, amar e cuidar que se encaixa em um estilo de vida bastante apertado de um japonês (tanto metaforica quanto literalmente). 

É também a razão pela qual os dating sims foram e continuam a ser populares no Japão, mas essa é uma outra discussão. E enquanto Tamagotchi teve um boom de popularidade no ocidente em meados dos anos 90, o "Raising Sim" não encontrou um público até que Will Wright incorporou muitos dos traços do gênero em "The Sims".


No Ocidente, as pessoas que jogaram 'The Sims' em 2000 ficaram empolgadas porque achavam que o gênero "simulador de vida” era original. Mas na Ásia, as pessoas faziam exatamente isso há pelo menos quinze anos.

Como eu disse, Raising Sim não é muito a respeito da mecanica que pode ser de um bilhão de formas diferentes, e no papel qualquer descrição parece ser bem tosca. No cerne, os jogos de 'Raising Sim' desafiam o jogador a criar uma agenda para um NPC seguir, ocupando o tempo dele com diversas pequenas tarefas. Seguindo essas atividades, o NPC se desenvolve "por conta própria", sem a interferência constante do jogador. Como um bebê recém-nascido, inicialmente o NPC exige muitas instruções e ensinar as coisas uma a uma mas, à medida que o jogo avança, eles se tornam muito mais autônomos, capazes de cuidar de si mesmos. 


Mas sim que a ideia central do jogo é cuidar de algo, desenvolver seus atributos, seu comportamento e seus sentimentos.

ENTÃO SERIA UM TIPO DE "THE SIMS" FOCADO EM UM ÚNICO NPC?

Maaaaais ou menos isso, Jorge. Mais ou menos isso. E Wonder Project J, embora mecanicamente seja um point'n click, é um dos melhores exemplos de Raising Sim. Aqui nós temos o robozinho Pino, e embora você não o controle diretamente tem que cria-lo para que ele desenvolva seus atributos, tenha um bom comportamento, ajude as pessoas e seja um "menino de verdade".

PINO. MENINO DE VERDADE. SÉRIO QUE ELES METERAM UMA VERSÃO ANIME DA HISTÓRIA DO PINOQUIO COM ROBOS? ELES METERAM ESSA MESMO?

Oh, temo que sim, Jorge. Eles meteram essa sim, RAIO JAPONIZADOR. Com efeito eles foram full Japão aqui porque a estética é claramente inspirada no Studio Ghibli e não tem como ser muito mais japonês que isso. Com efeito, esse jogo não apenas tem uma arte muito bonita como é um dos jogos mais bem animados da história do Super Nintendo e não ironicamente as vezes parecia que eu estava jogando um jogo de PS1.

Sério, esse jogo não tem apenas animações que rolam com uma fluídez como eu nunca vi no SNES, como tem um número impressionante de vozes digitalizadas (mais do que muitos jogos de Sega CD, eu te garanto), como pra vc ter uma ideia o final desse jogo é uma cutscene de mais de MEIA HORA. Sério, HOJE é dificil um jogo que rode esse tempo todo... tá, não um jogo japones... mas é completamente algo que implode qualquer limite que imaginavamos que o SNES tinha.

Eu não me aguento

Claro que pode ser argumentado que o jogo se permite ser bonito assim, tanto em som quanto em animações, porque meio que não tem muito um gameplay para dividir a tarefa. Hã, isso é parcialmente verdade. Enquanto é verdade que esse definitivamente não é um jogo de ação, a quantidade de informação que o jogo tem que gerenciar e os dados que ele processa são algo sem similar no Super Nintendo. Eu vou explicar melhor daqui a pouco, mas saiba que a quantidade de coisas que esse jogo precisa considerar ao mesmo tempo (e faz isso bastante bem) é assombrosa.

Então realmente não é exagero dizer que esse é o jogo tecnicamente mais impressionante do SNES até então. Mas todas as quizumbas tecnicas não valem uma pataca furada se o jogo em si não for bom, então... e aí, é bom?


A primeira coisa a se saber sobre esse jogo é que ele foi feito pela Almanic, a mesma empresa responsável por um dos jogos mais ambiciosos do SNES: EVO: SEARCH FOR THE EDEN. Sim, o jogo de plataforma que emula apenas TODA HISTÓRIA DA EVOLUÇÃO desde os primeiros protozoários até o ser humano. Em um jogo de plataforma para SNES, essa é a Almanic.

Então eis como as coisas funcionam: com o cursor você pode dizer para que lado o menino-robo caminha, e com que itens ele interage. Quando ele interage com alguma coisa, ele tem um de vários comportamento possíveis de acordo com os atributos dele. Se ele agir de uma forma positiva, você pode apertar X para reforçar essa atitude, ou pode apertar Y para dizer para ele não fazer mais isso. Depois de repetir algumas vezes esse reforço positivo ou negativo, ele "aprende" esse comportamento.

That's what she said!

Parece complicado descrevendo, mas na pratica é bem simples: se o Pino estiver com o atributo de agressividade alto e kindness baixo, ao interagir com um cachorro ele vai meter um bicudo no doguinho. Vc então tem que repreender ele pra ele "aprender" a não fazer mais isso.

Ou então você quer que ele aprenda a fazer lockpicking numa porta porque a quest exige isso, ao abrir uma porta ele vai interagir com ela de várias maneiras possíveis. O que você tem que fazer é repreender ele quando ele abrir a porta da maneira errada (chutando ela, gritando com ela, se ajoelhando e rezando pra ela - sério, a quantidade de ações possíveis é muito grande para um jogo de SNES) e elogiar ele quando ele fazer do jeito que vc quer (fazendo lockpicking, no caso). Repita isso algumas vezes e ele "aprende" o comportamento desejado.


A quantidade de comportamento possíveis para a quantidade de objetos interagiveis é uma das coisas que eu disse que o jogo considera o tempo todo e que por isso a programação dele não foi essa barbardinha no parque... até porque tem uma pegadinha aqui: as ações possíveis para cada objeto dependem dos atributos do personagem. Então não importa quantas vezes você interaja com a bola de borracha, ele não vai arremessar ela se não tiver um arm power bom. Ou se você interagir com uma porta sem inteligencia alta, ele não vai tentar lockpickear ela como eu disse antes. Agora multiplique a quantidade de objetos interagiveis pelas ações possíveis levando em consideração os atributos do personagem... isso parece algo fácil de e programar?

E sabe quantos atributos existem nesse jogo? DEZESSEIS. Não, eu não to zoando com vc, DEZESSEI S atributos e jogar eles pra lá e pra cá durante a partida é que o jogo em si. Por exemplo, tem um momento que Pino entra em um torneio de luta, então vc precisa de agressividade para lutar. Só que a agressividade não pode ser alta demais senão ele insulta a mulher da inscrição no torneio e não participa. O que você precisa é que a agressividade seja alta, mas a inteligencia seja maior ainda e a agressividade sobe quando vc aumenta o ataque e a defesa - o que quer dizer que se eles estiverem no máximo vc precisa baixar seu ataque ou sua defesa. Mas isso não é tudo, vc ainda precisa também de confiança alta para ele não sair correndo no meio da luta mais dificil E de kindness baixa porque senão ele fica com pena dos adversários. Ufa, isso é bastante coisa, não?


Felizmente, e é isso que faz esse jogo realmente funcionar, WPJ é um dos jogos mais intuitivos que eu já vi na minha vida e treinar o Pino sempre faz sentido de alguma forma. Por exemplo, malhar com o peso aumenta seu arm power mas baixa seu reasoning. Tocar trompete baixa seu ataque, mas aumenta seu feeling, charisma e expression. Andar na corda bamba aumenta seu equilibrio. Então não é nada de outro mundo você descobrir com o que interagir com o pino pra chegar onde vc quer.

E, quase tão importante quanto isso, como eu disse o jogo fica jogando com o que ele exige de você então não é uma questão de maximizar um atributo e esquecer pra sempre, vc tem que ficar jogando com os atributos do Pino pra lá e pra cá dependendo do que cada quest pede e as vezes ela pede coisas antagonicas na mesma fase como na fase que primeiro vc tem que aprender a fazer lockpicking mas depois pede que você baixe seus stats mentais para ele resolver tudo no berro com as portas. Sim, faz sentido de alguma forma na hora, acredite, e de qualquer forma sempre tem um cenário do mapa que tem um NPC que te dá dicas do que fazer se vc não tiver ideia.


Então, como você pode ver, existe muito "jogo" por detrás de Raising Sim no sentido que você sempre vai estar ocupado tentando descobrir o que fazer com o menino-robo Pino, seja executando o cuidadoso gerenciamento dos atributos. Isso por si só faria de Wonder Project J um bom jogo, o que somado a cada gota de capacidade do SNES que ele expreme o faria por si só uma recomendação sólida.

Só que aí, eles vão além.


Porque apesar da sua estética leve de anime da Ghibli, WPJ na verdade não apenas tem um tema sobre o qual ele quer falar como toca em alguns tons muito sombrios. A história do jogo é que após a grande guerra 50 anos atrás, o reino foi reconstruído por androides de trabalho braçal chamados Gijin que hoje vivem entre os humanos como cidadões da segunda classe.

Com efeito, o preconceito e a discriminação contra os Gijin é bem aberta em cenas que você não esperaria ver de um jogo de SNES: além de demonstrações pesadas de racismo, humanos simpáticos a Gijin são presos, vários de ambos os lados são assassinados e o rei até ordena que nosso menino seja condenado à morte por causa de sua origem. Então no meio dessa situação pesadaça, um cientista chamado Dr. Gepetto (pois é) decide criar um Gijin que pareceria com um menino de verdade e assim mostrar aos humanos que eles não são tão diferentes assim - esse é o nosso menino-robo Pino.

Só que o Rei descobre isso e fica full pistola com Gepetto por querer conscientizar as pessoas sobre os Gijin, de modo que ele é preso antes que Pino seja ativado. Sozinha, a androide assistente dele Tinker termina de ativar o Pino e agora você e ela (sim, você espectador é adereçado diretamente na história) terão que ensinar Pino a ser um "menino de verdade".

A coisa, entretanto, é que o jogo não segura nenhum soco com essa coisa do preconceito e em vários momentos o jogo parece uma versão 16bits de Detroid: Become Human. Eu não to exagerando, a coisa pega mesmo. Tem uma quest, por exemplo, que é um campeonato de habilidades fisicas e você tem que competir em corrida, arremesso e precisão. Só que o pega é que o organizador do torneio está todo desapontado porque todo ano apenas gijins ganham e ele queria que um humano de verdade colocasse esses androides "no lugar deles". Quando você, que parece um menino humano, vence as provas ele fica exultante por finalmente um humano ter vencido essa "raça inferior"... apenas para ele ficar desabaladamente puto da cara quando você revela que é um gijin também.

O que, caso você nao tenha pego a referencia, é baseado em algo que aconteceu no mundo real:

"Que merda que esse preto ganhou dos meus arianos, agora meu parça Bolsonaro vai me zoar pra sempre quando a gente se encontrar no inferno por causa disso" - Adolf Hitler, Olimpiadas de Munique de 1936

Mas por outro lado, se WPJ mostra o pior do ser humano quando se trata de racismo e discriminação (novamente, em um jogo de SNES, algo sem precedentes), também é capaz de mostrar o melhor e como as pessoas não nascem essencialmente ruins. Além das pessoas que dão a cara a tapa pela causa dos gijins e dos que aprendem que os gijins são seres vivos com sentimentos iguais aos deles quando os conhecem, Wonder Project J tem aquela que na minha opinião é a cena mais bonita de toda história do Super Nintendo - mais até do que quando a Ceres tenta se suicidar em FINAL FANTASY 6.

O que acontece aqui é que em uma das quests você se apresenta em um circo - mesmo o dono sabendo que o rei vai fechar o circo por empregar gijins - e sua última tarefa é uma sessão de canto. Se os seus atributos de Expression e Feeling forem altos o suficiente, algo mágico acontece.

Primeiro, o jogo esmerilha com o que possível fazer com o chip de som do Super Nintendo, fazendo Pino fazer uma apresentação divina. Tão divina, de fato, que toda a plateia do circo emocionada começa a cantar junto e o efeito é uma das coisas mais bonitas que já saiu de um Super Nintendo.


A música se chama "To My Dear Gijin Friends", a proposito.

Porém quando a música termina e Pino é ovacionado, ele se sente mal por estar enganado as pessoas e revela que ele é um gijin. Silêncio absoluto e sepulcral no circo inteiro. Por vários momentos nem um único som, choque absoluto em todos os presentes por terem se emocionado e cantado junto com um gijin. Momentos de tensão.

E então, solitariamente, um singelo "clap, clap, clap". E então outro, e mais outro, e mais outro e mais outro e mais outro. Pino é aplaudido efusivamente, o circo explode em aplausos. As pessoas, por um momento que seja, deixaram de lado toda programação de raiva e intolerancia que foram ensinadas a reproduzir e apenas se permitiram ser seres humanos no seu estado mais puro, apenas apreciando a arte não importando o tom de pele do seu interprete (ou nesse caso, literalmente do que é feita a pele). 



Como aconteceu antes com Chuck Berry quando ele barbarizou o mundo tendo apenas inventado o Rock'n Roll, ou Charlie Parker quando ele elevou o jazz a níveis sobrehumanos. Por alguns minutos, alguns preciosos minutos, arte é apenas arte. Depois que termina as pessoas voltam a ser as coisas abjetas e preconceituosas que elas foram treinadas para ser, mas por um breve momento a arte permite que as pessoas sejam apenas pessoas em seu estado mais puro.

Porque é isso que a arte faz. E esse jogo é uma fodenda obra de arte.
Wonder Project J, senhoras e senhores.

MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
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