sexta-feira, 14 de março de 2025

[#1420][Dez/98] THOUSAND ARMS

 


Então cá estava eu, todo garboso e pimponeta, folheando a Gamers de Outubro/99 vendo qual vai ser meu próximo joguinho... quando algo aconteceu. Naquela página, eu vi a luz. Não uma luz qualquer, saiba você, mas uma epifania gamer estampada em papel couché. Meus olhos se arregalaram, minha respiração falhou por um instante, e senti um arrepio percorrer minha espinha. Ali, entre prévias e análises, estava ele: um jogo que parecia ter sido feito sob medida para meus instintos mais primitivos de jogador.

Um jRPG com elementos de Dating Sim, uma forte estética de anime e publicado pela Atlus, você consegue imaginar uma coisa dessas?

SIM, CHAMA-SE "PERSONA"

Hm, tá, minha culpa por colocar a barra muito baixa. Eu quis dizer o OUTRO jRPG com elementos de Dating Sim, uma forte estética de anime e publicado pela Atlus!

ESPERA, QUE OUTRO?

Viu como era interessante? Então, apesar do seu nome terrivelmente mundano e sem charme, Milhares de Braços, de facto é um jRPG sobre misturar exploração de masmorras, combate por turnos e construção de relacionamentos - o que, novamente, se tornou uma assinatura da série Persona - porém alguns anos antes desta faze-la, já que o primeiro REVELATIONS SERIES: Persona... não é bem sobre isso, como eu discuti naquele texto.


Seja como for, o que importa é que eu estava pronto para mergulhar em uma joia peculiar e charmosa do PS1. E bem, peculiar não deixa de ser uma forma de descrever esse jogo no final das contas...

Então você coloca o jogo e é saudado por uma fofocrocante abertura em anime, mostrando que o dia hoje vai ser dos bão:


Só nessa intro, além da linda música de Ayumi Hamasaki (quem tem várias composições famosas na carreira, como Dearest de Inuyasha), aprendemos varias coisas interessantes sobre esse jogo. Como que, por exemplo, o cenário do jogo foi escrito por Junji Takegami, um monstro sagrado da cultura pop japonesa sendo roteirista de dezenas de coisas, de tokusatus como Cybercops até animes como Pokémon e Yu-Gi-Oh.

Não apenas isso, mas o diretor das cutscenes em anime do jogo é Hiroshi Kojina, que é o diretor de nada menos que Hunter x Hunter, além de key animador em Vampire Hunter D, o filme de Hokuto no Ken e alguns episódios de Cowboy Bebop.


Japão, calma...


Ou seja, desnecessário dizer o que o otaku em mim... o que é uma grande parte de mim, na verdade... estava gritando nesse momento. Holy shit, a esse ponto eu não via como possivelmente esse jogo poderia me perder!

... exceto que começando o jogo, levou aproximadamente três minutos para isso acontecer.



Então... como eu posso colocar... Meis Triumph, o nosso protagonista, é o gado definitivo. Em questão de iniciais do jogo minutos, ele já está babando em cima de todas as garotas que encontra, fazendo comentários constrangedores e usando o "poder do amor" para fazer sua espada crescer—literalmente. Sim, você leu certo.

Nesse mundo, ferreiros espirituais como Meis fazem suas armas ficarem maiores e mais fortes através do poder do flerte, e quanto mais cocotinhas estiverem na sua, mais poderoso sua ferraria espiritual será.



Eu vou dizer que não tinha exatamente certeza do que esperava de um jogo em que o dating sim seria parte da mecanica do RPG, mas então, eu posso afirmar que definitivamente eu esperava um pouco mais de classe com as mulheres do que... bem, isso?


Uau, Atlus, classy... really classy. No início, achei que era tão absurdo que poderia ser engraçado, como uma paródia dos tropos de jRPG e anime. O humor do jogo é inegavelmente autoconsciente, no melhor estilo das adaptações da Working Designs, e os clichês exagerados de harém poderiam até funcionar dentro dessa proposta.

Mas, conforme as horas passavam eu fui percebendo que o real problema desse jogo não é como ele usa os tropos de anime ou sua mecanica única de tirar poder do harém - porque é claro que sim, da onde mais alguém tiraria, né. Não, o problema não é muito como ele usa isso e sim mais especificamente como ele NÃO usa isso.

Essa é... uma forma de descrever suas NPC, definitivamente...

Mas para entender onde eu quero chegar, suponho que primeiro eu precise explicar como a coisa funciona mecanicamente para que todos estejamos na mesma página, sim? Aqui está como funciona:

Quando Meis e os membros do grupo sobem de nível, as armas (e por conseguinte seu poder de ataque) não automaticamente sobem de nível junto. Para atualizar suas espadas para o nível atual, você precisa ir até uma ferraria em uma cidade (ou as vezes tem no meio da dungeon) e atualizar elas. Todos comigo até aqui? Bom.


Na hora que você atualiza a arma, ela aprende também um elemento, magias e até ataques especiais do personagem dependendo de qual menina do harém você escolheu pra te acompanhar nisso e qual o nível de afeição com ela. Por exemplo, ao forjar uma arma com Sodina ela adiciona o elemento luz a espada ela está equipada. No nível de intimidade 1, Sodina também ensina "Heal", enquanto no nível 2 de intimidade ela ensina as magias "Wind" e "Barrier"

Já Wyna adiciona o elemento fogo a espada, no nível de intimidade 2 ela adiciona as magias "Cure" e "Might Guts", no nível de intimidade 3 se você usar ela para forjar a espada do Muza então ela ganha o ataque especial "Storm Binder". Deu pra entender a lógica da coisa?


Então, para aumentar o nível de afeição com as personagens femininas e desbloquear novas habilidades ao forjar armas, você pode sair em "encontros" com elas. Também é possível aumentar a afeição através de itens específicos e alguns eventos ao longo do jogo, mas essas oportunidades são bem raras. Daí vem a famosa mecânica de Dating Sim pela qual esse jogo é conhecido.

Os encontros funcionam como mini-eventos nos quais você escolhe opções de diálogo para impressionar a garota. Quanto melhores suas escolhas, mais pontos de afeição você ganha e, se no final do date ela te tascar um beijo, pronto, seu nível de afeição subiu. Parece ótimo, não? Melhor ainda porque esses encontros são apresentados no estilo visual novel, com retratos estáticos das personagens e caixas de texto.


O problema é que, enquanto o conceito soa promissor, a execução é... bem sem graça. As opções de diálogo se resumem a responder perguntas aleatórias, sem nenhum desenvolvimento real. Não há uma historinha, interações envolventes ou qualquer construção de relação entre os personagens. Basicamente, você responde um quiz e pronto, date concluído. Não há diálogos reais, apenas um minigame repetitivo e monótono que você precisa repetir com toda e cada garota.

E esse é o aspecto mais absolutamente desapontante de Thousand Arms: apesar de sua premissa diferentona, o que realmente te marca nesse jogo é o quanto ele não te marca em absolutamente nada, sendo um dos jRPGs mais dolorosamente medianos que eu já joguei na vida - apenas tem um minigame onde você vê fotinhos de waifus. E era isso.

Quando eu digo que os "dates" são apenas perguntas aleatórias, cês não tão entendendo do quão aleatório eu estou falando!

Após o par de horas iniciais, a história se acomoda no enredo mais genérico possível de um jRPG: um imperador maligno do mal que odeia o bem quer se tornar um deus maligno, e você precisa coletar cinco McGuffins para detê-lo. Obviamente que você falha e ele se torna um deus maligno, no qual você termina o jogo enfrentando. Eu não poderia pensar em uma premissa mais genérica de jRPG nem que estivesse sendo pago em cybermaidscatlolis.

Não há subversão de tropos, camadas narrativas mais profundas ou sequer algo realmente divertido para fazer aqui. A história segue o piloto automático de como escrever um jRPG, sem inspiração ou surpresas.

A esse ponto eu já estava esperando o vilão começar o musical de TOM & JERRY: THE MOVIE

Os elementos de Dating Sim, que deveriam ser o grande diferencial do jogo, são severamente subutilizados. Em vez de serem uma parte essencial da experiência, eles funcionam apenas como um minigame — e um bem chatinho. Aumentar o nível de afeição com as meninas não tem impacto na história nem altera os diálogos, e as recompensas por maximizar os vínculos (como melhorias de armas) parecem mais uma obrigação mecânica do que um sistema de progressão significativo.

Também não ajuda que o combate seja funcional, mas completamente esquecível. As mecânicas de turno são genéricas até para os padrões da época: ataque, magia, item... same old, same old. O único aspecto diferentão é que apenas um personagem da party pode atacar por vez, enquanto os outros dois ficam no fundo, limitados a usar magias e itens. Na prática, isso torna os combates muito mais demorados do que precisavam ser, já que você frequentemente encontra grupos de três ou quatro inimigos e precisa derrotá-los um por um, ataque por ataque.


Isso significa que um simples inimigo aleatório de dungeon — que costuma aparecer em grupos de três — pode levar de SEIS A NOVE TURNOS para ser eliminado. Sim, NOVE TURNOS para despachar um spawn aleatório. Cê tá entendendo o nível de tédio que isso gera?

Honestamente, eu só não posso dizer que esse é um péssimo jRPG porque ao menos o que eles não colocaram esforço em narrativa e mecanicas, o jogo compensa ao estar repleto de cenas lindamente animadas - ao ponto que ocupa dois discos mesmo sendo um jRPG relativamente curto para o gênero, com cerca de 15 horas de duração.



As cenas de anime são um deleite, com animação fluida e um estilo de arte vibrante que ainda se sustenta bem hoje. Embora o jogo em si careça de profundidade, é difícil não apreciar o esforço colocado em sua apresentação. No mínimo, Thousand Arms é um excelente exemplo de como uma direção de arte forte pode carregar um jogo que, de outra forma, seria absolutamente medíocre.

E não é apenas um jogo bonito de se ver—surpreendentemente, é muito bom de se ouvir também. Foi um dos primeiros jRPGs a apresentar dublagem extensiva na maioria das cenas (quase dois anos antes de TALES OF ETERNIA fazer algo parecido), e, para a época, a qualidade da dublagem era decente—certamente melhor do que a média das dublagens americanas de anime no início dos anos 2000, que muitas vezes variavam de estranhas a constrangedoras. 

Não apenas as dublagem é bastante okay para a época, como esse é o único caso que eu consigo lembrar de ter palavrão no PS1


As performances são funcionais, com alguns personagens se destacando mais que outros, mas adicionam uma camada de personalidade ao jogo que era rara na época.


A localização, no entanto, é um legado da escola Working Designs. Para quem não esta familiarizo com a Working Designs, essa foi uma publisher que trazia RPGs para o ocidente e tratava de dar a sua... "cor" ao jogo, injetando da cabeça dela no roteiro uma tonelada de piadocas de quebra a quarta parede, referências à cultura pop do nosso mundo atual (mesmo que não faça sentido no cenário do jogo) e diálogos exagerados.

Eu vou te dizer que já fui mais fã do tipo de palhaçada que eles colocam pra "apimentar" o jogo, mais sim do que não acabam sendo mais cringe do que engraçados e as suas traduções passam uma vibe muito forte de tiozão do "how do you do, fellow kids". Eu suponho que tentar colocar algum tempero em um jogo que não tem ABSOLUTAMENTE nenhum não chega a ser um crime, mas ainda sim o que a Atlus fez aqui é completamente o hit-or-miss da finada WD.

Dito isso, algumas piadas no estilão Working Designs realmente funcionam.

E, verdade seja dita, não é como se o jogo não precisasse de ALGUM tempero, pq o elenco de apoio de Thousand Arms é uma compilação de clichês típicos de anime - ainda que funcionais o suficiente para carregar a história. Temos a tsundere, a garota tímida, a amazona bruta e assim por diante—nada revolucionário, e dá pra dizer que atingem o chechlist minimo para um otaku de 1998... apenas não espera nada acima do estritamente básico.

Thousand Arms é um jogo que tinha todos os ingredientes para ser algo especial. Seu conceito—um jRPG com elementos de dating sim—estava à frente de seu tempo, e seu humor peculiar e estética anime entrega o prometido. Mas, no fim do dia, ele não faz muita coisa realmente com essa promessa. As mecânicas de dating sim são apenas um minigame desinteressante, a história é tão genérica quanto genérica pode ser, e a jogabilidade é apenas mediana. Embora não seja um jogo ruim, é decepcionante, especialmente para jogadores como eu que esperavam uma experiência mais profunda e envolvente.


Thousand Arms vale para satisfazer o lado otaku do jogador, mas o lado RPGista pero no mucho. Se você está esperando um jogo que realmente misture elementos de RPG e dating sim de forma significativa... então realmente é melhor continuar esperando a série Persona. Thousand Arms é uma prova de que um grande conceito sozinho não é suficiente—é a execução que importa.

MATÉRIA NA GAMERS
EDIÇÃO 045 (Outubro de 1999)