Hoje, eu quero falar sobre uma banda de rock'n roll um tanto diferente de qualquer outra que existe ou provavelmente existirá. O post de hoje será sobre nossa amada BITOCA.
A história do KISS começa em Nova York, 1973, com Paul Stanley e Gene Simmons inicialmente imaginando uma banda de glam inspirada em nomes como The New York Dolls e Alice Cooper, como era moda na época. No entanto, eles rapidamente perceberam que aquilo simplesmente não estava funcionando para eles.
Foi então que eles se tocaram, foi então que caiu a ficha sobre o que Rock'n Roll realmente era. A ideia do Rock'n Roll, o que realmente atrai as pessoas é mais do que um cara em um palco tocando guitarra, é sobre mais do que isso. Uma estrela do Rock é para ser algo sobrehumano, uma figura maior que a vida. Uma estrela do Rock não é um cara, é uma ideia.
No mockumentary de Rob Reiner, This Is Spinal Tap (1984), o empresário da banda encapsula perfeitamente a fantasia do que é ser um rockstar:
"É uma linha tão tênue entre estúpido e inteligente... E o que fazemos é andar nessa linha todos os dias. Mas o importante é que, quando você é um astro do rock, você não toca apenas a música — você é a música. E os caras querem ser você, e as garotas querem estar com você."
A frase desse filme, alias, foi baseada em algo que o próprio Gene Simons disse: "Rock ’n’ roll is about sex and attitude. If you’re not getting laid, you’re not a rock star.". Por isso o KISS adotou essas personas maiores do que a vida baseada em heróis de quadrinhos:
The Starchild (Paul Stanley) – O vocalista romântico e extravagante.
The Demon (Gene Simmons) – O vilão cuspidor de fogo e sangue.
The Spaceman (Ace Frehley) – O mago da guitarra sobrenatural.
The Catman (Peter Criss) – O baterista selvagem e animalesco.
Não demorou muito e seus shows ao vivo se tornaram espetáculos — pirotecnia, sangue, guitarras fumegantes e botas de plataforma altas — mas... havia um problema aí: os show do KISS haviam se tornado realmente um EVENTO... porém um evento que falhava em reproduzir esse sucesso na venda de albuns.
Seus três primeiros discos (KISS, 1974; Hotter Than Hell, 1974; Dressed to Kill, 1975) não reproduziam nem de perto o sucesso e a energia dos seus shows, os críticos diziam que o KISS dependia muito do razzle dazzle do palco e que de música mesmo não tinha lá muita coisa. E realmente, as músicas gravadas em estúdios estereis não eram nem de perto a mesma coisa que as personas dos quatro-que-são-um evocavam.
Em 1975, o KISS estava prestes a ser larga por sua gravadora, a Casablanca Records já que ela própria estava perto da falência. Foi aí que uma ideia muito louca - e um tanto desesperada - ocorreu: ao invés de combater as críticas que o KISS era uma banda de shows e que não servia para vender discos... que tal tentar abraçar essa crítica?
UÉ, E O QUE TEM DE TÃO LOUCO NISSO? É UMA COISA BEM COMUM...
Sim, é. Hoje. Na época a maioria das bandas só lançava álbuns ao vivo DEPOIS de já serem estrelas (como "Live at Leeds" do The Who ou "Made in Japan" do Deep Purple). O entendimento da época era que discos ao vivo eram um item que só faria sucesso com os fãs já convertidos, que o ouvinte casual só se interessaria pelo show depois que fosse vendido pela versão de estúdio gravada em maior qualidade da música.
Mas o KISS era tão melhor no palco - e eles tinham tão pouco a perder, a gravadora ia falir mesmo - que eles arriscaram fazer o caminho oposto: eles usaram um álbum ao vivo para provar que eram estrelas. O resultado disso foi que Alive! (1975) foi um disco cru, alto e cheio de barulho da multidão, fazendo os ouvintes se sentirem como se estivessem na primeira fila. Os críticos torceram o nariz, música de albuns deveriam ser feitas para se aproveitar pela qualidade enquanto degustava um bom vinto Cantorné. O público amou essa vibe de "é como se eu estivesse lá", mesmo que a qualidade da gravação seja tecnicamente inferior a versão de estúdio.
O resultado foi que faixas como "Rock and Roll All Nite" que originalmente tinha sido um fracasso na versão de estúdio se tornaram um hino graças à sua versão ao vivo. O álbum foi a primeira platina da banda, salvando o KISS e a Casablanca Records.
Focando no que eles realmente eram bons em fazer, o KISS se tornou a maior banda de rock da América e seus albuns seguintes Destroyer (1976), Rock and Roll Over* (1976) e Love Gun (1977) se tornavam cada vez sucessos maiores, turnês esgotadas e o merchandising explodindo - já que as personas maquiadas do KISS eram altamente marketeaveis. Estou falando de bonecos de ação, quadrinhos e até um filme para TV ("Kiss Meets the Phantom of the Park", de 1978).
No final dos anos 70, a "KISS Army", como era conhecido o seu fandom, cresceu tanto que se tornou um culto de seguidores, rivalizando até mesmo com o fandom dos Beatles em seu auge.
Porém nada que é bom dura para sempre, e os anos 80 não foram nada gentis com a banda: dramas internos levaram a mudanças na formação, o abandono do uso de maquiagem, aquela coisa de querer ser reconhecidos como "músicos sérios" (e com vários albuns solo dos seus integrantes) fizeram com que na chegada dos anos 90 o KISS fosse basicamente irrelevante no cenário da música.
Isso até 1995, quando o KISS foi convidado para o MTV Unplugged. O que tem de tão especial nesse show é que ele voltou ao KISS raíz dos anos 70: a formação original com Paul Stanley, Gene Simmons, Ace Frehley e Peter Criss voltou para essa apresentação. A recepção foi tão positiva que eles consideraram ir um passo além e posterioramente voltaram a usar a maquiagem das suas personas pela primeira vez em mais de uma decada.
O publico amou loucamente, deixando bem claro que ainda havia lugar no coração dos fãs para aquela atitude cheia de energia dos anos 70. O que levou ao album Psycho Circus em 1998, o primeiro com a formação original da banda desde 1979.
Não apenas o album foi um grande sucesso, como deu embalou uma nova era de popularidade da banda para uma nova geração - por exemplo, em 1999 o KISS recebeu 500 mil dolares para tocar uma única música no WCW Monday Nitro, que se tornou o episódio de wrestling mais assistido de todos os tempos.
Mas dos produtos licenciados dessa renascença do KISS no final dos anos 90, talvez um dos que seja mais lembrados seja justamente a revista em quadrinhos Psycho Circus. Isso pq nessa época, Todd Mcfarlane e seu SPAWN eram a coisa mais quente dos quadrinhos. Na era de ouro dos anti-heróis amorais e fodões, a modesta Image Comics estava dando um calor danado para gigantes como a Marvel e a DC, que estavam mais perdidas que surdo em bingo... né Saga do Clone e THE DEATH AND RETURN OF SUPERMAN?
E Gene Simons, que tambem era o manager da banda, não apenas era um grande fã de quadrinhos (tanto que a ideia das personas da banda vieram dos quadrinhos, assim como várias capas dos seus albuns tem muito dessa estética também) como curtia em particular a estética suja e visceral de Mcfarlanne. Logo, ele procurou a Image Comics e assim nascia os quadrinhos do Circo Psicótico do KISS. Mas aí então você pode estar se perguntando... como caralhas eles fizeram uma história em quadrinhos do KISS? Eles são super-heróis ou algo assim?
Então... não. É algo bem, bem maior que isso! Se eu tivesse que comparar com alguma coisa, eu diria que o Circo Psicótico é meio que o Sandman da Image Comics. Isso pq aqui os membros do KISS - conhecidos como "Os Ancestrais" ou "Os Quatro que São Um" - são essas figuras maiores que a própria realidade, literalmente entidades que transcendem o tempo e o espaço, bem na pegada como os Perpétuos da história de Neil Gainman.
Isso quer dizer que eles não são os protagonistas da história per se, e sim que a treta é sempre sobre algum Zé Fudido que acaba esbarrando nessas figuras cósmicas através do circo itinerante. As vezes "Os Ancestrais" atendem desejos, as vezes exercem vingança, as vezes revelam verdades sobre a vida, o universo e tudo mais. Como eu disse, a comparação com Sandman é um bom referencial, já que o magrelão da DC raramente é o protagonista da história de facto e sim como ele é mais um conceito que interfere - para o melhor e para o pior - na vida de reles mortais.
Embora tenham alguns personagens recorrentes, essencialmente as 31 edições da revista funcionam como uma antologia, contos isolados de histórias não sobre "heróis vs. vilões", mas sobre desejo, vingança e revelação—típicos de mitologias modernas. O que, na estética suja e sombria da Image Comics, casou perfeitamente com esse conceito teatral do KISS que seus membros não são apenas "caras numa banda", eles são deuses do rock'n roll que transcendem a humanidade. Literalmente, no caso dos quadrinhos.
E agora que você entende isso, o que é o Psycho Circus de Mcfarlanne, cabe então uma última pergunta...
COMO DIABOS VOCÊ FAZ UM JOGO SOBRE ISSO, EXATAMENTE?
Então, essa é uma boa pergunta, de facto. E uma com uma resposta bastante interessante: nossa história aqui é que Os-Quatro-Que-São-Um travaram uma épica e colossal batalha contra o seu mais poderoso inimigo, o Rei dos Pesadelos. O tipo de batalha que rearranja galaxias e reescreve as leis da física, você sabe.
Ao fim dessa batalha, vendo que seria inevitavelmente destruído, o Rei dos Pesadelos puxa um último truque sujo: ele abre uma dimensão do vazio e arrasta os Ancestrais junto com ele, selando a todos os envolvidos para fora dessa realidade. O que seria o fim da história, não fosse o fato que o Rei dos Pesadelos deixa uma última semente de caos e corrupção na Terra - o tal "Nightmare Child" do título.
Para combater esse último resquício de ameaça que pode consumir o mundo, a Madame Raven do Circo Psicótico convoca quatro manés aleatórios de uma banda cover do KISS e os imbui de recuperar a essencia dos Ancestrais e servirem de avatar para o retorno dos mitológicos membros do KISS.
Em termos de gameplay, isso quer dizer que o jogo tem quatro capítulos e em cada um você joga com um dos membros dessa banda que deve recuperar os poderes dos Quatro - The Starchild, The Demon, The Spaceman e The Catman. O que abriria uma possibilidade muito interessante de gameplays diferenciados com cada um dos quatro avatares e essa é uma ideia... que o jogo definitivamente não usa.
Todos os quatro capítulos jogam exatamente a mesma jogabilidade, a única coisa que muda é o visual do ataque melee e uma única arma exclusiva para cada um dos avatares - mas você só pega ela do meio pro final do capítulo, então não espere muita coisa disso realmente.
Na verdade, se alguma coisa esse formato mais me incomodou do que qualquer outra coisa porque a cada capítulo você recomeça do zero e precisa ir recolhendo os artefatos do KISS para ir desbloqueando "habilidades" dos manés da banda cover. Que habilidades, você pergunta? Você sabe, coisas como PULAR ou TER UMA ARMA DE FOGO, ou poder aumentar seu life para até 200%.
Sim, em cada um dos quatro capítulos você recomeça sem isso e tem que ir se reKISSiando manualmente enquanto seu boneco não consegue passar de objetos do cenário com mais de 20cm de altura até pegar as botas de pulo KISS. Hã, taí uma frase que eu não achei que jamais diria na vida... Seja como for, imagine jogando Metroid, você passasse horas reunindo seu equipamento e então cada vez que mudasse de mapa perdesse tudo, só para ter que fazer tudo de novo. Parece terrível, não é? Bem, é.
Isso sendo dito, o resto do The Nightmare Child é bem típicos de seu FPS padrão com portas para serem destrancadas com chaves encontradas no cenário e corredores para explorar em busca de armas, munição e energia. Verdade que conforme o jogo avança, mais e mais estágios têm segmentos de plataforma que seriam difíceis de fazer em um jogo tradicional de terceira pessoa, imagine em um FPS nota 5.
A boa noticia é que a morte tem pouca penalidade, porque mesmo se você morrer, você simplesmente respawna em um checkpoint com toda a sua munição intacta e os inimigos que você mata ainda derrotados, então o máximo que você perde é tempo. Na verdade, como você não perde nada, as vezes é até melhor morrer pra ser teleportado pro checkpoint e ganhar tempo navegando pela fase - sem contar que não ter punição por você sacrificar toda sua energia para derrotar um inimigo (ou destruir um gerador de inimigos, normalmente) muda a dificuldade do jogo radicalmente para menos.
Então o jogo é perfeitamente jogável, mas não realmente muito mais que isso também. As armas são okay-ish, o level design é okay-ish, os gráficos são okay-ish... se alguma coisa que eu REALMENTE preciso reclamar no jogo é que para um jogo do KISS, o jogo surpreendentemente falta trilha sonora. Porra, é o fucking FPS do KISS, eu esperava no minimo uma trilha sonora para fazer DOOM passar vergonha.
Mas a trilha sonora beira o inexistente e quando tem, não apenas não são músicas licenciadas da banda como as que tem são bem generiquinhas. Isso e o reset do seu equipamento a cada capítulo são as piores coisas que podem ser ditas a respeito do jogo. Funciona, mas é meio até onde vai.
E é uma pena, porque se tem uma coisa que o KISS nunca foi, é genérico. A banda sempre foi sinônimo de exagero, de espetáculo, de teatralidade absurda. E no entanto, The Nightmare Child parece ter medo de se apoiar nisso, entregando uma experiência que, no máximo, pode ser descrita como morna. Se você tirasse a skin do KISS desse jogo, nada nele gritaria "KISS". Poderia ser qualquer outra banda... na verdade, sequer parece um jogo de qualquer banda, é qualquer outro jogo de tiro meia-boca do final dos anos 90.
A narrativa também não ajuda muito. A premissa de impedir o renascimento do tal Nightmare Child até poderia ser interessante se houvesse um mínimo de esforço em contar essa história de forma empolgante. Mas a trama se desenrola de maneira superficial, com diálogos e cutscenes que parecem mais um pretexto apressado para jogar o jogador em mais um corredor cheio de inimigos.
E falando neles, os inimigos são... bem, eles estão ali. Você enfrenta as mesmas aberrações genéricas fase após fase, com uma inteligência artificial que oscila entre o inofensivo e o irritante. Alguns deles têm designs até interessantes, mas quando você percebe que vai estar atirando neles com a mesma meia dúzia de armas sem graça pelo jogo inteiro, a empolgação rapidamente se esvai.
O pior de tudo é que dá pra ver que poderia ter sido diferente. Há lampejos de criatividade no design de alguns cenários, há momentos onde a ideia de um FPS temático do KISS quase faz sentido. Mas eles são enterrados sob uma camada espessa de mediocridade, de mecânicas repetitivas e de um ritmo que nunca realmente engata.
No fim das contas, The Nightmare Child não é um desastre absoluto, mas também não faz nada para se destacar. É um jogo que existe, que funciona, que pode até entreter alguém que estiver com uma saudade absurda de um FPS old-school e não se importar com seus problemas. Mas para um jogo baseado em uma das bandas mais extravagantes da história do rock, ser apenas "mediano" talvez seja o maior pecado que poderia ser cometido.
MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 145 (Novembro de 1999)