Se eu te pedir pra fechar os olhos agora e imaginar uma série de TV "ruído de fundo" dos anos 90... você não conseguiria, pq isso é um texto e como você estaria lendo isso de olhos fechados? Bem, tecnicidades a parte, imagine, se puder uma série dos anos 90 que fica rodando inofensivamente na TV enquanto você faz as suas coisas - lava a louça, limpa a cara ou tenta descobrir o que o cachorro está mastigando e corre atrás dele tentando tirar alguma coisa da boca dele antes que ele engula.
Essa serie não seria necessariamente ruim, só seria... inofensiva. Você sabe, gente bonita, piadocas inofensivas, "violencia" não muito mais profunda que um filme dos Trapalhões, umas locações bonitas também (alo Nova Zelandia, vocês acham que foi o Peter Jackson que inventou isso?)... uma série que não tenta nada artisticamente, mas está ali, sendo assistível, sendo agradavel aos olhos, e provavelmente bastante ciente que você não está prestando muita atenção nela.
Se você imaginou uma série assim nos anos 90, provavelmente você está pensando em Hercules: Legendary Journeys, que era o take "family friendly" safe do mais famoso herói da mitologia grega... embora não tão family friendly safe quanto DISNEY'S HERCULES mas divago. Meu ponto é Hercules sua série bacaninha e inofensiva.
Nessa série, mais especificamente no nono episódio da primeira temporada, nosso bom camarada e amigão de todos Hercs se depara com uma vilã maligna do mal que odeia o bem: uma princesa guerreira que tenta dar um desdobre para usar a força bruta do herói e seu não tão brilhante cerebro como ferramenta para dominar o mundo. Hercules frustra seus planos sem machucar ninguem, obviamente, o bem vence o mal e espanta o temporal.
Mas aí é que está a coisa, o público gostou tanto dessa vilã, sua atitude badass e meio que "eu vou fazer o que for necessário pra vencer, moralidade é pra comedores de quiche", que eventualmente ela voltou para mais alguns episódios. E mais eventualmente ainda (ou nem tão "eventualmente", já que foi no mesmo ano), decidiram que ela ganharia sua própria série. Assim nasciam as aventuras de Xena - A Princessa Guerreira, e é aqui que as coisas começam a ficar interessantes.
EU DUVIDO BASTANTE DISSO. UM SPIN-OFF DE UM SÉRIE QUE É A FOTOGRAFIA DO DICIONÁRIO PARA "INOFENSIVA" PARECE APENAS UM CAÇA-NÍQUEL BARATO E ESQUECÍVEL
Em 99,87% das vezes você estaria absolutamente certo, Jorge. Exceto que por algum motivo (provavelmente a influencia de um produtor não satisfeito em fazer as coisas no automático, como Sam Raimi - sim, aquele mesmo dos filmes do Miranha e de Evil Dead), o spin-off de Xena adota um tom... bem eu ia dizer diferente do original, mas Hercules não tem muito um, é meio que a sopa de hospital das séries de TV. Agora, Xena, bem, Xena tem sim um tom e não é exatamente o que você poderia esperar.
Vamos colocar assim: enquanto Hércules é uma jornada clássica de herói com um tom geralmente otimista e cômico, Xena é um mundo muito mais sombrio. Enquanto eventualmente Xena também enfrenta monstros mitológicos e deuses, a base do seu seriado é lidar com reis tiranos, bandidos, assassinos e traficantes de escravos - em especial, você ficaria surpreso no quão comum era mulheres serem sequestradas para serem vendidas como escravas e, embora a série não diga isso diretamente, fica muito implicito que não é para fazer tarefas domésticas que elas serão usadas. O mundo de Xena é uma terra sem lei onde as pessoas tem que pensar duas vezes antes de sair de casa, imagine o equivalente mitológico de Osasco.
Nesse mundo onde manda quem pode e obedece quem tem juízo, Xena é uma ex-senhora da guerra sanguinária buscando redenção por seu passado violento, enquanto ela viajava pelo mundo antigo ao lado de sua companheira Gabrielle. E a primeira coisa que chama atenção no seriado é o quanto ele é violento para uma série de TV da época: embora não tenha sangue ou gore, Xena atravessa a espada no peito de uma galera e quebra pescoços como se fosse a tataravó helenica do John Wick.
O que meio que funciona com a personagem proposta, sabe? Quer dizer, não vamos usar meias palavra aqui: Xena é uma Mary Sue. Ela sempre vence, ela sempre derrota todo mundo (com bem pouco esforço até), ela é sempre foda e invencível. Só que aí é que está a coisa: ela usualmente mata uma gente tão escrota, um povinho tão ruim que você não se incomoda que ela seja invencível. Pelo contrário, você torce para que alguém meta a mão na cara desses nepomucenos safados e quando eles começam a tirar a Xena pq "ela é só uma mulher" você fica "oh ho, você tá tão morto e nem sabe disso ainda, cara...". Funciona, é maneiro, e não é pouco.
Ajuda bastante que a composição da Lucy Lawless para a personagem seja bastante cool também. Quer dizer, ela sabe que provavelmente consegue matar todo mundo na cena umas duas vezes antes da pessoa perceber que já está morta, mas ainda sim ela tenta não faze-lo se for razoavelmente possível. Dada a opção ela prefere resolver a coisa argumentando, e o mais interessante é que como ela já foi um dos caras maus, ela tem uma visão mais cínica e pragmática do mundo.
Ela não é uma heroína ingenua e bem intencionada, ela é uma ex-vilã que sabe como os vilões pensam - e as vezes tem um pouco de dificuldade em deixar essa forma de pensar de lado, sendo esse o papel que sua inocente sidekick Gabrielle tem na série, de ser o contrapeso que a trás de volta para a luz e o time dos mocinhos.
Tem inclusive até um episódio que um dos vilões acaba atacando a Gabrielle ela se machuca, Xena não tem certeza nem se ela esta viva realmente. Então tudo que a Xena diz para ele, calmamente, é que ele teve o azar de ferir a única pessoa que o estava mantendo vivo. Cara, ainda bem que eu não sou você.
Falando em Gabrille, um ponto interessante é que mesmo décadas após seu final, Xena: Warrior Princess continua sendo um dos programas de TV de fantasia mais influentes já feitos. Seu legado é particularmente forte na comunidade LGBTQ+ devido ao subtexto (e dicas menos sutis posteriormente) de um relacionamento romântico entre Xena e Gabrielle. Nos anos 90, qualquer coisa que parecesse um romance entre duas mulheres precisava ser deixada no reino do 'será que são ou não são?' - isso quando chegava a tanto. Mas com o tempo, Xena começou a jogar mais pistas do que um episódio de Scooby-Doo, deixando cada vez mais claro que Gabrielle era mais do que apenas uma 'melhor amiga'
Hoje ter um romance gay entre as protagonistas não é exatamente novidade - é até esperado, de certa forma (opa, firme ae, seu Arcane). Porém não estamos falando de 2025, estamos falando de 1995 e não tinha nada nem remotamente parecido com uma representação queer na grande mídia em horário nobre. Com efeito, nesse mesmo horário no canal do lado FRIENDS estava fazendo piadinhas de "hmmm, ai que bichonaaa" como se isso fosse a coisa mais engraçada do mundo.
A série também abriu caminho para futuras heroínas de ação na televisão e no cinema. Antes da Xena, os programas de TV com uma protagonista feminina ou eram inofensivos como Mulher Bionica (1976) e Mulher Maravilha (1975) ou uma desculpa para mostrar pernocas das moçoilas como As Panteras (1976). Xena foi na outra mão da história, mostrando que uma série de ação podia ter uma protagonista feminina podia não ser uma série "apenas para mulheres" e ter bom resultados com isso - algo que já tinha se provado verdade no cinema com a Tenente Ripley em Alien e Sarah Connor em Terminator 2, porém até então não transportado para a televisão. Sem Xena, outros programas como Buffy the Vampire Slayer, Alias e até mesmo o filme da Mulher Maravilha de 2017 talvez não tido luz verde em primeiro lugar.
Veja, eu não estou dizendo que Xena: Warrior Princess era TV de alto conceito ou um estudo sobre a arte. Xena era, no fim do dia, televisão para entretenimento. Mas é BOA televisão de entretenimento, sabia quando misturar galhofadas, atuações canastronas, mas também ação, fantasia e desenvolvimento de personagens.
Foi um spin-off que encontrou seu próprio tom e acabou ultrapassando o original em muito—com Lucy Lawless apresentando uma performance icônica, Xena se tornou mais do que apenas uma personagem de TV — ela se tornou um símbolo de força, redenção e desafio contra as probabilidades. Pq sério, quem mais além do Sam Raimi esperaria algo de um spin-off de Hercules? Abençoado seja esse biruta.
E, motto que bene, é claro que se estamos aqui é porque essa série teve um jogo licenciado para PS1. Xena: Warrior Princess é um hack'n slash para Playstation e... huh... bem... eu vou ser sincero com você, eu estou com alguma dificuldade para descrever esse jogo como "um hack'n slash para PS1" pq essa expressão já meio que diz tudo que você precisa saber sobre ele.
Devido a minha alta integridade jornalistica, no entanto, é meu dever civico e moral tirar mais algumas palavras desse jogo... sejam elas quais forem... Tá, vamos ao que interessa. Xena: Warrior Princess para PlayStation é, em teoria, um hack 'n slash — o que significa que você corre por aí batendo em coisas com uma espada. Na prática, no entanto, é mais um "apertar botões e esperar que a câmera coopere" simulator - um genero infelizmente muito comum nessa época dos videogames.
O jogo começa promissor o suficiente: você controla Xena, e sim, ela faz aquele grito de guerra icônico que soa como uma chefe Apache que pisou em uma peça de Lego. Você tem sua espada, seus punhos e, claro, o Chakram — o frisbee de lâminas da morte iconico de Xena. Agora, em um mundo perfeito, lançar o Chakram seria incrível, cortar inimigos como um bumerangue grego da morte, como isso poderia não ser a coisa mais maneira ever? Bem, exceto que aqui o Chakram é mais um um ioiô com menos responsividade do que sua sanidade recomendaria.
O combate é funcional, eu admito. Você aperta botões, Xena faz ... coisas de espada... os inimigos ocasionalmente se lembram de revidar e tudo funciona em um nível básico. Repare que eu disse "funciona" e ainda sim com uma certa dose de boa vontade, satisfatório é um termo que não entra na conversa. Há uma certa floatiness nos ataques que me deu PTSD de jogos europeus dos anos 90, como se Xena estivesse realmente lutando debaixo d'água. Os inimigos mal reagem ao serem atingidos, e às vezes eles apenas ficam lá, contemplando o significado da vida enquanto você os golpeia repetidamente com uma espada.
Ok, eu não quero realmente ser o chatonildo da tecnicidade nos jogos, mas você ter um feedback - e um feedback SATISFATÓRIO - quando você bate em alguma coisa em um jogo que é apenas sobre BATER EM COISAS me parece importante. Mas eu não sei, posso estar enganado.
Mas vamos então falar sobre o verdadeiro vilão deste jogo: a câmera. Oh, doce e misericordioso Hades, a câmera. É como se os desenvolvedores a tivessem treinado na fina arte troiana da traição. Ela balança descontroladamente nos piores momentos possíveis, posiciona-se atrás de paredes apenas por diversão e, ocasionalmente, decide que sua melhor visão da ação é de dentro do crânio de Xena. É tão ruim que estou convencido de que foi secretamente programada por um dos antigos inimigos de Xena. Desde que o sacrificio de virgens deu uma diminuida, tenho sérias razões para acreditar que Ares está pagando as contas do martelinho de ouro das suas armaduras fazendo um bico em game design.
E falando em inimigos, a IA aqui opera em um princípio simples, mas elegante: exista, então morra. Alguns deles atacam você como lemingues com uma agenda apertada, enquanto outros ficam por perto esperando sua vez de serem esquartejados. Ocasionalmente, eles vão lutar, mas "lutar" é um termo generoso aqui. É mais como se eles se agitassem suas armas em sua direção geral e esperassem pelo melhor. Hã, não posso dizer que não vi algumas lutas que seriam descritas assim na série, pensando sobre isso...
Agora, se você está pensando "Ok, mas pelo menos o level design deve ser interessante, certo? Quero dizer, esta é a Grécia antiga!"... tenho algumas más notícias pra você. Xena no PS1 não é SPYRO 2: Ripto's Rage, diabos, não é sequer MEDIEVIL. Os cenários são basicamente vazios, marrons e pouco inspirados. Há uma tentativa de variedade — florestas, cavernas, algumas ruínas — mas todos eles meio que se fundem em um borrão de baixa resolução e neblina das limitações do PS1.
Dito isso, tenho que dar alguns kudos onde kudos são devidos: o jogo tenta. Há lutas contra chefes com mecanicas próprias. Há plataformas. Há até tentativa de quebra-cabeças, embora chamá-los de "quebra-cabeças" seja generoso — é principalmente "empurre esta coisa aqui" ou "aperte este interruptor porque... não é como se você tivesse algo melhor pra fazer, por que não?".
Mas então, é um hack'n slash da quinta geração e como eu disse, a imagem mental que te vem a mente é o que você vai ter. A menos que você tenha pensado em THE LEGEND OF ZELDA: Ocarina of Time. Você também não se ajuda, né? Pra que diabos você foi pensar em THE LEGEND OF ZELDA: Ocarina of Time?
Mas então, o jogo funciona, você arremessa o Chakram e a camera te odeia. Mas ei, pelo menos eles ainda tem o jogo da série do Hercules no PS1 pra tentar acertar... pelo amor de Hefestos que eles acertem nesse, pq se piorar disso daqui...