Vou te dizer que quando eu vi que estava perto de jogar Suikoden 2, eu não fiquei particularmente efusiástico com a ideia. Não pq eu já tinha jogado esse jogo antes, mas sim pq eu sabia que estruturalmente ele parecia incorporar dois dos elementos que eu menos gosto em RPGs: um elenco gigantesco de personagens coletáveis e o formato de narrativa "vila da semana".
Meu ceticismo se tornou ainda mais grave pq recentemente tive minha experiência com CHRONO CROSS, um jogo que tentou uma abordagem semelhante, mas ao qual eu tenho muitas, muitas ressalvas a respeito. Eu literalmente já escrevi uma review inteira sobre isso, mas o ponto relevante aqui é que o elenco inchado de CHRONO CROSS, com 45 personagens jogáveis, era subdesenvolvido e irrelevante, deixando um gosto amargo por jogos que priorizam quantidade em vez de qualidade.
No jogo de hoje: uma Karen selvagem ataca
O outro preconceito que eu tinha com esse jogo era a trope da "vila da semana"—onde os jogadores resolvem problemas isolados em pequenas cidades antes de seguir em frente, raramente revisitando ou conectando essas histórias ao enredo principal— uma marca registrada de jRPGs antigos como Dragon Quest (embora Dragon Quest ainda faça isso até este ponto da história, recentemente passei trocentas horas disso em DRAGON QUEST 7: Fragments of the Forgotten Past) e outros jRPGs antigos como LUFIA 2: Rise of the Sinistrals
Então, como vocês podem ver, quando eu descobri que Suikoden II combinava esses dois elementos, é justificado que eu não estivesse exatamente exultante. Mas então, como diz o ditado, da onde menos se espera... daí mesmo que não sai nada - a menos quando sai, veja só você!
O que eu posso adiantar desde já que é que, para minha grande surpresa, Suikoden II não apenas desafiou minhas expectativas—ele redefiniu completamente como eu vejo esses tropos.
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Um dos personagens que você recruta habilita um banho termal no seu castelo, por motivos de BECAUSE JAPAN |
A franquia Suikoden (cujo primeiro jogo de 1996 não foi coberto pelas revistas brasileiras e portanto fora d escopo desse blog) é construída em torno do conceito das "108 Estrelas do Destino", um tema enraizado no budismo, a religião mais popular do Japão. Na tradição budista, o número 108 tem um significado espiritual profundo, representando os 108 desejos ou impurezas terrenas que uma pessoa deve superar para alcançar a iluminação. Esse conceito permeou a cultura japonesa, aparecendo em obras como "Saint Seiya" (com seus 108 Espectros de Hades) ou "Super Pig", onde a personagem principal deve coletar 108 pérolas para se tornar uma heroína.
UAU, LEVOU MAIS DE 1400 REVIEWS, MAS FINALMENTE UMA MENÇÃO A SUPER PIG NESSE BLOG!
O que eu posso dizer? Quem espera sempre cansa. Mas seja como for, em Suikoden II, as 108 Estrelas do Destino são representadas por 108 personagens recrutáveis, cada um contribuindo de alguma forma para a sua rebelião. À primeira vista, isso parecia uma receita para o desastre—como um jogo com tantos personagens poderia dar a cada um um desenvolvimento ou relevância significativa? Só que eis o pulo do gato aqui: Suikoden II consegue equilibrar seu enorme elenco de uma forma que CHRONO CROSS falhou miseravelmente em fazer.
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Neste jogo você tem um castelo e pode nomea-lo. Originalmente o nome é "Castelo Suikoden", mas vamos combinar que "Castelo da Mãe Joana" é um nome muito mais inspirado |
A principal diferença entre Suikoden 2 e CHRONO CROSS está em como eles lidam com seus elencos gigantescos. Embora ambos os jogos apresentem uma infinidade de personagens recrutáveis, Suikoden 2 os integra à narrativa e à jogabilidade de maneiras que parecem ter um proposito e recompensas por faze-lo.
Pra começar, em Suikoden 2, até mesmo personagens menores costumam ter personalidades distintas, papéis em eventos importantes da história e aparições recorrentes. Por exemplo, personagens como Flik, Viktor e Nanami são centrais para o enredo, mas até mesmo recrutas opcionais, como o ferreiro ou o chef, têm propósitos claros e contribuem para o quartel-general. Em contraste, os 45 personagens de Chrono Cross não apenas parecem intercambiáveis, com a imensa maioria jamais tem outra fala ou ação no jogo após suas cenas de recrutamento.
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Haverá um dia que eu terei maturidade para nomear os personagens, mas esse dia não será hoje |
Pra começar, Suikoden 2 roda muito mais o elenco: em diversas partes do jogo, pelo menos duas e as vezes tres lugares do seu time de 6 personagens (um numero de spots generoso, mas que funciona bem com um cast desse tamanho) são obrigatórios a certos participantes, impedindo que você feche um time e ignore o resto.
A outra coisa que forma isso é o sistema de distancia: cada personagem tem uma de tres categorias de distancia (short, medio e longe), e apenas três vagas em cada posição - o que quer dizer que você não pode ter 4 personagens short ou 4 personagens longe. Como o jogo balança esse número te obrigado a levar alguns bonecos em dadas missões, isso frequentemente te obriga a ter que rebalancear o time, fazendo com que o elenco rode bem mais na sua mão e você usa mais personagens.
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Agora eu PRECISO saber |
Outra coisa que faz o elenco parecer mais único são Unite Attacks - ataques especiais que são desbloqueados apenas quando combinações especificas de personagens estão na party, normalmente personagens relacionados pela história. Adicionalmente, as magias e habilidades passivas dos personagens são definidos pelas runas que eles carregam - e alguns personagens tem runas únicas, o que somado aos atributos diferentes e quantidade diferentes de slots de runas tornam os personagens mais únicos.
Shiro, o lobo branco, por exemplo, é um dos personagens com maior atributo físico do jogo e teoricamente seria um dos mais fortes... só que ele não tem slot de runas, então nada de magias ou habilidades passivas como contraataques ou ataques duplos. A vida é feita de escolhas, hã?
Mas não é apenas mecanicamente no combate que o elenco é bem utilizado, no world building também já que a maioria dos recrutas tem um papel no seu QG, seja administrando uma loja, fornecendo serviços ou habilitando minigames - o que faz com até mesmo os não combatentes parecerem valiosos. Recrutar Viki, por exemplo, é fundamental para o jogo não porque ela é lá muito forte no combate, mas pq ela habilita teletransportar do seu QG para cidades já visitadas - o que te poupa algumas boas horas de jogo caminhando no fim do dia.
Então esse jogo definitivamente não é como CHRONO CROSS que os personagens recrutados são apenas um nome no menu, eles literalmente ficam hangeando na sua base - seja habilitando coisas uteis, seja apenas de bobeira pra você ver que eles estão por ali.
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Espera, Pilika, eu não gosto de para onde esse dialogo está indo... |
A outra coisa que CHRONO CROSS erra e que Suikoden acerta é que enquanto no primeiro nenhum personagem é importante para a história (teoricamente só Kid e Serge tem alguma relevancia para o grande esquema das coisas, mas a primeira some durante 3/4 do jogo e o segundo passa 2/3 em uma sidequest para recuperar o seu corpo), aqui esse erro não é cometido.
Existem os personagens recrutaveis obrigatórios e os opcionais. Os obrigatórios são relevantes para a história, tem cutscenes e desenvolvimento de personagem, enquanto os secundários podem ou não ter cenas extras, mas ao não tentar contar uma história com 108 bonecos ao menos o jogo não se perde na caminhada, conseguindo manter foco o suficiente.
Bem, agora que eu já expliquei como o jogo resolve o problema de ter 108 personagens recrutáveis sem isso virar uma quizumba do caramba, vamos ao segundo tópico aqui: resolver a trope da "vila da semana".
À primeira vista, Suikoden 2 parece seguir esse formato, com o protagonista viajando para várias cidades e regiões, cada uma enfrentando desafios únicos. Até aí nada de novo no front, você vai até um lugar, resolve a treta, vida que segue e nunca mais se fala nisso, certo?
Então... só que não.
Digo isso pq o jogo reimagina magistralmente essa trope ao incorporar ela a sua temática central de rebelião e construção de um exército. Em vez de apresentar histórias autoconclusivas, Suikoden 2 garante que cada vila, personagem e missão secundária contribua para a luta maior contra o maligno Reino de Highland. Por exemplo, libertar uma cidade de bandidos pode garantir uma rota comercial crucial para suprimentos, enquanto recrutar um estrategista habilidoso pode mudar o rumo da guerra. Essa mecânica de recrutamento conecta cada local e seus problemas diretamente ao seu objetivo principal, fazendo até mesmo as histórias menores parecerem significativas e interconectadas.
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O.O'' |
A outra razão pelo qual esse sistema de "vilazinha da semana" funciona tão bem é a representação realista da guerra (dentro das possibilidades para um jRPG, obviamente) em Suikoden 2 - sendo essa uma de suas características mais marcantes e que totalmente o diferencia dos demais jRPGS que usualmente tem conflitos mais fantasiosos e baseados em um grupo de heróis salvando o mundo.
Aqui, em vez de um pequeno grupo de heróis lutando contra um mal ancestral ou buscando mcguffins para impedir a ressureição de um deus maligno do mal que odeia o bem, o jogo apresenta uma guerra bem mais relacionavel: a guerra entre as nações das Cidades-Estado de Jowston e o imperialista Reino de Highland.
A esmagadora superioridade numérica do exército de Highland—com mais de 50.000 soldados—cria um senso palpável de desespero e escala. Esta não é uma guerra que pode ser vencida por um punhado de indivíduos poderosos; ela exige uma rebelião completa, com planejamento cuidadoso, gerenciamento de recursos e alianças estratégicas.
Cada vila que você visita e cada personagem que você recruta contribui para esse objetivo maior, seja adicionando combatentes habilidosos às suas fileiras, garantindo mais soldados em numeros brutos para o seu exército ou conquistando territórios estratégicos. O jogo enfatiza constantemente as realidades logísticas da guerra, como a necessidade de comida, armas e numero de soldados, fazendo com que as apostas pareçam imediatas e tangíveis. Esse foco no realismo garante que até mesmo as histórias episódicas menores pareçam significativas, já que impactam diretamente sua capacidade de desafiar as forças de Highland.
A coisa da "vilazinha da semana" não é o único clichê de RPG que Suikoden 2 subverte, entretanto. Um dos aspectos mais brilhantes de Suikoden II é sua representação do antagonista principal, Luca Blight. À primeira vista, Luca se encaixa no molde do clássico "overlord do mal"—um tirano sádico e sedento por poder que se deleita com a crueldade apenas porque ele é ruim.
Suas ações são inegavelmente caricatas em sua malignidade, estou falando de coisa nível Dio Brando de podre de maldade, coisas como queimar vilarejos até massacrar inocentes enquanto dá risadas malignas sem remorso. Você sabe como vilões funcionam.
Suas ações são inegavelmente caricatas em sua malignidade, estou falando de coisa nível Dio Brando de podre de maldade, coisas como queimar vilarejos até massacrar inocentes enquanto dá risadas malignas sem remorso. Você sabe como vilões funcionam.
A coisa interessante, no entanto, é que Suikoden 2 não permite que esse tropo exista no vácuo. Em vez disso, ele explora as repercussões de tal comportamento, tanto no mundo exterior quanto dentro das próprias fileiras de Luca.
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O jogo tem sua boa sorte de cenas bonitas e intimista, mantendo o foco da narrativa humano e pessoal na guerra - o que exponencia o seu custo |
Cidades e vilarejos, aterrorizados por sua brutalidade, se submetem ao domínio de Highland por puro instinto de sobrevivência, mas esse medo também gera ressentimento e resistência - não faz sentido acreditar nas promessas do Império quando você sabe que o líder é um biruta que vai quebrar a palavra dele pra matar todo mundo do mesmo jeito. Mais importante ainda, a loucura descontrolada de Luca cria fissuras dentro do próprio exército de Highland.
Seus generais, particularmente figuras como Culgan e Seed, não são apenas capangas acefalos, mas soldados disciplinados que veem as ações de Luca como uma desgraça para a honra de sua nação. Esse conflito interno culmina em uma tentativa de golpe, mostrando como até os tiranos mais poderosos podem ser derrubados por seus próprios excessos.
Essa representação nuanceada de como as ações de Luca Blight impeactam até mesmo o exército de Highland eleva Suikoden II além da típica narrativa de "bem vs. mal", o padrão básico dos jRPGs. Embora Luca seja inegavelmente um vilão mau como um pica-pau, o jogo não o trata como uma força isolada do mal; em vez disso, ele examina como suas ações desestabilizam tanto o mundo quanto sua própria facção. Isso cria um conflito mais rico e crível, onde as linhas entre certo e errado são borradas pelo medo, lealdade e sobrevivência.
E se como Luca impacta o mundo é um dos aspectos mais diferentes do jogo, o verdadeiro coração de Suikoden II está a relação entre Jowy Atreides e Riou, uma narrativa que lembra muitos paralelos com a dinâmica entre Delita e Ramza em FINAL FANTASY TACTICS.
Eu digo isso pq ambas as histórias exploram o tema de dois amigos que compartilham um objetivo comum—paz e um mundo melhor—mas são separados por seus métodos e filosofias radicalmente diferentes. Jowy, como Delita, acredita que os fins justificam os meios, disposto a tomar decisões moralmente questionáveis, como se aliar a Highland ou manipular outros, para alcançar sua visão de paz. Riou, por outro lado, espelha o idealismo de Ramza, lutando para proteger os outros e manter seus princípios, mesmo que isso signifique seguir um caminho mais difícil e incerto.
Essa divergência cria um antagonismo profundamente pessoal e trágico, já que os dois personagens não são inimigos por natureza, mas são forçados ao conflito por suas circunstâncias e escolhas. O peso emocional de seu relacionamento é amplificado por sua história compartilhada, fazendo com que seus confrontos inevitáveis pareçam igualmente devastadores.
O que torna a história de Jowy e Riou tão cativante é como ela reflete os temas mais amplos de Suikoden 2, particularmente o custo da guerra e a complexidade da liderança. O caminho de Jowy é um reflexo das duras realidades da guerra—ele acredita que sacrifícios devem ser feitos pelo bem maior, mesmo que isso signifique comprometer sua própria moralidade.
As ações de Jowy o pintam como um traidor e um manipulador, mas sua verdadeira motivação é evitar uma guerra sem fim. Ele escolhe um caminho de autodestruição, sacrificando suas amizades, ideais e até mesmo sua saúde (devido aos efeitos da Runa da Espada Negra) em busca do que ele vê como a única maneira de trazer paz.
Sua falha trágica é que ele subestima sua própria capacidade de governar sem concessões — ele acaba se tornando parte do próprio sistema que ele buscava mudar. A história de Jowy é uma das maiores tragédias em Suikoden II, apresentando um personagem que queria desesperadamente fazer a coisa certa, mas escolheu um caminho que o forçou a sacrificar tudo o que amava.
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Você também pode nomear o seu exército, o que eu também fiz com maturidade - como de costume |
Riou, entretanto, representa a esperança de que é possível alcançar a paz sem se perder no processo. Seu conflito força os jogadores a refletir sobre questões difíceis: o pragmatismo de Jowy é justificado, ou é uma ladeira escorregadia para se tornar aquilo que ele busca destruir? O idealismo de Riou pode realmente levar a uma mudança duradoura, ou é ingênuo diante de probabilidades tão esmagadoras?
Enquanto não há respostas claras para isso, o que HÁ uma reposta clara é que Suikoden 2 é um jogo que desafia expectativas, pegando dois tropos que eu normalmente não gosto—enormes elencos de personagens e o formato "vila da semana"—e os transformando em uma narrativa coesa e emocionalmente ressonante. Ao fundamentar sua história nas realidades da guerra e nas complexidades do comportamento humano, o jogo se eleva além do padrão dos jRPGs, oferecendo uma exploração profunda de liderança, moralidade e o custo do conflito. Sua representação nuançada das consequências das ações de Luca Blight e o conflito profundamente pessoal entre Jowy e Riou o tornam uma obra-prima atemporal que continua a ressoar mesmo décadas após seu lançamento.
E esse sucesso narrativo e emocional é exponenciado pq a trilha sonora de Suikoden 2 é um dos aspectos que reforça sua identidade única, com composições que evocam um tom melancólico e ao mesmo tempo épico, ressoando com a tragédia da guerra e as lutas políticas do jogo.
Para tornar o jogo ainda MAIS diferente - não que precise a esse ponto - grande parte das escolhas estéticas e musicais remetem à cultura chinesa, o que não é coincidência, já que a franquia Suikoden é inspirada no clássico da literatura chinesa À Margem da Água (que eu já falei a respeito na review de SUIKO ENBU: Outlaws of Lost Dynasty), uma história sobre 108 rebeldes que se unem contra um governo corrupto. Na verdade, o nome do jogo (Genso Suikoden) literalmente significa "À Margem da Água de Fantasia". Essa influência transparece não apenas na estrutura narrativa, mas também nos temas musicais que misturam melodias tradicionais com arranjos orquestrais emocionantes, reforçando a grandiosidade e a atmosfera histórica do jogo.
Enfim, é o que eu sempre digo: não existe formato ou genero de jogo ruim, todo jogo pode ser um bom jogo se usar bem os aspectos positivos e as forças das escolhas que faz. E Suikoden 2 é uma baita aula de como transformar as suas escolhas na sua maior força.
MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
EDIÇÃO 066 (Setembro de 1999)
EDIÇÃO 066 (Setembro de 1999)
EDIÇÃO 045 (Outubro de 1999)