Lembra a parte que eu disse que Carmack era um genio viciado em trabalho? Então... a engine de Quake 2 não era apenas um patch de update da primeira, era uma linguagem de programação inteiramente nova. Era milhões de vezes mais elaborada que a primeira, praticamente uma obra de arte da nerdice em si mesma.
Claro, não era nada alienígina que alguns nerds tecnicos não podiam sentar e aprender... só que meio que a Ion Storm não tinha caras como esses? Isso pq Romero era um artista que via videogames como um canvas para ele pintar com base na inspiração... e como chefe, foi exatamente esse perfil de caras que ele contratou: artistas como ele. A empresa tinha muitas divas, e poucos nerdões como o Carmack que sentavam e faziam o trabalho sem graça.
Com efeito, Romero como chefe contratava como uma diva inspirada - o que quer dizer que vários dos programadores da Ion Storm não era profissionais de verdade e sim nerdolas aleatórios que ele "sentiu uma energia boa" jogando contra eles em partidas online de Quake, ou que fizeram mods para Doom e Quake que ele gostou muito. Não era uma galerinha REALMENTE profissional, sabe?
Isso quer dizer que o processo de aprender a engine e migrar os assets, que devia ter terminado em janeiro ainda, levou todo o ano de 1998. No natal de 1998 o jogo já estava um ano atrasado e o desenvolvimento estava apenas começando. Vamos dizer que a Eidos ficou menos do que contente com isso... só que piora.
Como eu disse, Romero era um artista... e ser o chefe de uma empresa envolve varias outras funções além do que sentar e criar. Ele tinha que gerenciar prazos, determinar prioridades organizacionais, gerenciar pessoas, lidar trabalhar com orçamento, burocracia, logistica de manter um escritório... Romero queria só sentar e criar, não aprovar licitações para o fornecedor de bebedouros! Enfim, ele odiava fazer a parte burocrática e técnica de ser chefe... e o estúdio meio que precisava disso.
O resultado foi um desenvolvimento bem a bangu, onde as pessoas não tinham uma direção muito clara do que tinham que fazer e nem uma cadeia organizacional para quem perguntar quando tinham dúvidas, era muito na base do cada um por si e Arceus por todos.
E se as coisas já estavam ruins... pioraram na metade de 1999 (lembrando que o jogo era pra ter saído em dezembro de 1997) quando na E3 daquele ano, Romero encontra seus velhos colegas da Id Software novamente e o que eles estavam anunciando?
Quake 3. Romero, novamente, ficou com o queixo caído e...
ELE NÃO REALMENTE PENSOU EM PARAR TODO O DESENVOLVIMENTO E MIGRAR DE ENGINE DE NOVO DE UM JOGO QUE JÁ TAVA UM ANO E MEIO ATRASADO, NÉ?
Não, claro que ele não pensou isso.
UFA...
Ele não pensou, ele efetivamente foi lá e propôs isso a Eidos. Atrasar o desenvolvimento em mais um ano para... antes que ele sequer terminasse a frase, a reação da Eidos foi bastante compreensível:
Não posso dizer que os culpo. Seja como for, aquilo foi a gota d'agua. O que era pra ser um jogo de 10 milhões de dolares em um ano já tinha virado 30 em três anos sem lançar nada. Acabou a palhaçada. Ele podia ser John Romero, ele podia ser Mahatma Ghandi, ele podia ser Jesus Fucking Cristo de Oliveira. Acabou. A. Palha. Assada. A única forma que a Eidos colocaria mais um único centavo naquele jogo era se mudanças grandes acontecessem. Tipo, realmente grandes.
Em primeiro lugar, eles comprariam a Ion Storm e eles iam colocar um produtor - um adulto responsável - para gerenciar aquela bagunça. Em segundo lugar, o jogo lançaria no final de 1999. Sem "mas", sem "ideias", sem nada. Ponto final. Terceiro lugar, tava na hora de gerenciar esse acampamento de férias como uma empresa de verdade, o que quer dizer que mudanças enormes no fluxo de trabalho e várias demissões rolaram soltas.
TÁ, PARECE DURO, MAS... PELO MENOS AS COISAS ENTRARAM NA LINHA... EU ESPERO?
Então... majoritariamente sim, e de fato o jogo acabou sendo lançado em maio de 2000. Não era o lançamento de natal de 1999 que a Eidos queria, mas pelo menos o jogo saiu.
UFA...
O que não quer dizer que as coisas não pioraram muito mais ainda. Isso pq Mike Wilson era o encarregado pelo marketing do jogo e...
ESPERA, O MESMO MIKE WILSON QUE HOJE É O PRESIDENTE DA DEVOLVER DIGITAL? ELES SÃO A PUBLISHER MAIS DESCOLADA DO MERCADO, ELES TEM UM BOM SENSO DE DE OURO PARA DESCOBRIR INDIES E TRAZER ELES PARA A SUPERFICIE SEM COMPROMETER O QUE OS FEZ ÚNICOS EM PRIMEIRO LUGAR!
É. Isso hoje. Pq em 1999, Wilson tinha... vamos dizer assim... um pouco menos de bom senso? A campanha de marketing que ele imaginou seria... vamos dizer... polemica... mas Romero achou que aquilo seria uma boa ideia para chamar atenção para o jogo. Eu não posso dizer que... polemica... não seja um bom adjetivo, mas... não é só esse que cabe ser usado
AH, NÃO TEM COMO O MARKETING SER TÃO RUIM ASSIM, VAI...
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Não posso dizer que realmente ajudou muito a imagem do jogo que a demo de Daikatana na E3 estivesse rodando a DOZE quadros por segundo. Não é hiperbole, eram fodendos 12 FPS mesmo! |
O jogo tem trinta e cinco - sim, 35 - armas diferentes, sendo que a imensa maioria dela são criativas e bastante satisfatórias de usar. Sabe, em um jogo de TIRO, o ato de ATIRAR em coisas ser satisfatório algo que costuma ser importante e em ESPADÃO a parte do tiro é bastante satisfatória.
O level design é outra masterclass do que Romero fazia de melhor e os combates são frenéticos, trazendo uma boa variedade ao jogo. Então no que compete a ser um FPS tradicional, ESPADÃO não é um jogo ruim. Diabos, eu diria até que ele está acima do bom!
O problema é que... bem, ESPADÃO não para no que Romero era bom em fazer e é aí que o trem descarrilha. E esse trem estava carregando ogivas nucleares. Porque toda vez que Daikatana tenta inovar... ele falha. Miseravelmente.
O jogo deveria ter uma história épica que se passa em quatro períodos de tempo diferentes, mas quando tenta contar uma história o jogo varia do absolutamente constrangedor ao apenas entediante. Sendo que é entediante na maior parte do tempo, e bota tempo nisso pq esse jogo tem mais cutscenes que um jogo do fucking Kojima - só que elas não são escritas pelo mestre do trash divertido, são escritas a nível fanfic aborrescente edgy que se acha super cool. E sinceramente, eu não boto minha mão no fogo que nem o próprio Romero entende totalmente a história aqui...
O sistema de armas corpo a corpo - que faz sentido em um jogo chamado ESPADÃO - é classificado como crime contra a humanidade segundo a conveção de Genebra de tão ruim e tosco. Um desastre.
E então temos a coisa pela qual ESPADÃO é mais lembrada e a pedra que arrasta o jogo para o fundo do lago: seus companheiros. A ideia de Romero era ter esses NPCs acompanhando o jogador e agindo como um multiplayer: eles jogariam pelas mesmas regras do jogador, usariam munição, subiriam escadas, precisariam se curar... era como jogar com um amigo, só que esse amigo no sofá, só que sem dividir a tela e esse amigo é um NPC chamado Superfly Johnson - o que é o melhor nome da história dos videogames. Ou de qualquer história de tudo.
Só que... bem, a IA de NPCs em cenários complexos é um problema até hoje, mesmo em jogos AAA super polidos. Em The Last of Us, que é o padrão ouro do blockbuster moderno, a Ellie teleporta (fora da camera) pra não ficar presa no cenário e é imortal - os inimigos também tem rotinas diferentes para reagir a ela.
Tudo isso pra que ela não atrapalhe o jogador e você não odeie sua sidekick. Só que se precisa de todos esses truques pq a IA de um NPC ainda não foi resolvido 100% do tempo HOJE... imagine que Daikatana tentou fazer isso lá em 1997. Sinceramente, é admirável. Tipo, sério mesmo, eu pilho muito nesa ideia de criar personagens que se movessem pelas mesmas regras do jogador, andando, pulando e escalando sem recorrer a truques de teleporte.
Só que de boas intenções...
O que temos aqui são coleguinhas virtuais que insistem em ficar presos no cenário, morrem por qualquer coisa e, pior, se um deles morre, você toma game over. Se eles não estiverem ao seu lado, você não pode avançar para a próxima área. É um pesadelo tático pq sério, John Romero... o que eu te fiz pra vc fazer isso comigo?
Mano, Romero, meu trutão... alguma vez tu já jogou videogame na vida? Pq não, sério, eu realmente duvido que alguém que já jogou videogame antes fosse achar que tornar o jogo inteiro uma GRANDE MISSÃO DE ESCOLTA seria uma coisa divertida! Porra, cara! A pior e mais enfadonha coisa que existe em um jogo, ter que manter um NPC burro que nem uma porta vivo senão a missão falha, e tu faz o jogo inteiro disso? Joga 15 minutos, não, 5 minutos de EEK THE CAT do Super Nintendo e olha a merda que tu tá fazendo com o jogo, irmão!
Aff, é foda, viu... bem, a boa noticia é que isso é resolvível. A comunidade de fãs criou um patch não oficial que corrige muitos bugs, melhora o comportamento dos aliados e até adiciona a opção de jogar sem eles ou torná-los imortais. Sim, o jogo tem fãs o suficiente pra alguem se prestar a fazer mods disso, eu estou tão surpreso quanto vocês.
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Versão para o N64 |
Mas honestamente, a melhor forma de jogar ESPADÃO é o port de Nintendo 64. Não, sério, o port (que foi lançado antes que o jogo original, pq o desenvolvimento estava zoado desse jeito) é melhor que o jogo original pq enquanto a versão de N64 tem menos armas, menos fases, menos inimigos, menos iluminação, menos gráficos e menos TUDO... ao menos ele não tem esse sistema patético de babysitting NPC e apenas isso faz esse jogo imensamente melhor de ser jogado. Se Daikatana tivesse chegado assim desde o início, talvez sua reputação fosse um pouco menos trágica.
O que então me remete ao começo do texto: Daikatana é ruim. Tipo, bem ruim. Tipo "jogo de escoltar dois NPCs que tem dificuldade em subir uma escada por 15 horas" ruim. Maaaaaaaaaaas... não é TÃO ruim quanto a lenda urbana a respeito dele conta. Eu, honestamente, esperava bem pior e esses dias mesmo eu sofri muito mais jogando ARMORINES: Project SWARM do que esse negócio aí. Tipo bem mais.
Tirando essa coisa dos NPCs que é tenebrosa, horripilante e eu temo que Romero teve um AVC enquanto achava que isso é uma boa ideia... o resto do jogo é um FPS bastante mediano e em algumas partes até mesmo bem acima do "apenas okay".
Entretanto, o peso de ESPADÃO conta aqui mais que o jogo. A esposa de Romero, Brenda Romero, é professora universitária e em dada ocasião ela fez uma pesquisa com os seus alunos: de cem alunos, absolutamente todos tinham uma opinião negativa sobre Daikatana. Só que aqui é que está a coisa interessante: de todos cem que tinham uma opinião negativa, apenas três tinham realmente jogado o jogo.
O resultado dessa tragédia toda é que ESPADÃO é um dos maiores fracassos da história dos videogames. Pelos custos de produção, o jogo precisaria vender 2 milhões de unidades para se pagar. Não chegou nem a 40 mil. O fracasso foi tão grande, tão retumbante que Romero meio que largou essa coisa de videogames - ele ainda faz uns joguinhos para celular para pagar as contas, mas seus dias de rockstar dos ames acabaram hoje ele vive uma vida pacífica com sua família no interior da Irlanda.
Volta e meia ele participa de algumas palestras e seminários, especialmente voltados para jovens desenvolvedores, contando o que ele aprendeu nesses anos todos e as lições que você só pode aprender apanhando da vida - e, como eu contei aqui, dificilmente algum jogo jamais apanhou tanto da vida quanto Daikatana apanhou. Eu diria que hoje Romero vive uma vida bucólica e feliz, cercado de pessoas que o amam e ensinando a próxima geração a não cometer os mesmos erros que ele cometeu. Todas as coisas consideradas, eu diria que é um good ending.
E sinceramente, o negócio não foi tão ruim assim nem para a própria Eidos que perdeu uma POUTA DE UMA GRANA nessa brincadeira... mas no fim do dia eles adquiriram a Ion Storm e disso saiu um dos mais renomados, aclamados e influentes RPGs de ação de todos os tempos: Deus EX. Então meio que foi um final feliz para eles também.
Então essa é a história que eu queria contar sobre ESPADÃO. Um dos maiores fracassos - senão o maior - da história dos videogames, uma história que começa em um dos jogos mais influentes de todos os tempos, Doom, e e termina como um alerta eterno sobre os perigos da ambição desmedida, da gestão caótica e do peso esmagador das expectativas. 25 anos depois, a lição de Daikatana ainda é valiosissima: nenhum orçamento bilionário substitui humildade, gestão competente e - principalmente - o bom senso de não prometer mundos e fundos antes de sequer ter um esboço do jogo em mãos. John Romero pode dormir em paz: seu legado não é Daikatana, mas sim o aviso eterno que ele nos deixou.
... e que continuamos ignorando.