Durante os anos 90, a Disney tinha a prática de seguir um grande sucesso animado do cinema (e até dado ponto, todos eram) por filmes menores, com menos orçamento e praticamente zero ambição artistica. Esses filmes não eram pretenciosos grandes lançamentos no cinema, não, ao invés disso eram pequenos filmes lançados direto pra VHS (depois direto para DVD e hoje direto pra streaming) para as crianças assistirem milhões de vezes sem encher o saco dos pais.
Ou seja, todo mundo lembra, é claro, de DISNEY'S ALADDIN de 1992. Bem menos gente lembra, entretanto, de Aladdin: The Return of Jafar (1994) e Aladdin and the King of Thieves (1996).
Tá, mas pra que eu estou falando disso? Pq a mesma lógica se aplica a videogames - embora menos frequentemente, dado que em jogos é mais fácil a continuação superar o original devido ao salto na tecnologia, refinamento nas mecanicas e feedback do jogo original, mas aqui e ali acontece de grandes clássicos terem continuações "diretas para DVD" que são apenas uma nota de rodapé diante da sombra gigantesca lançada pelo jogo original.
O exemplo mais iconico para este caso é que eu não realmente preciso explicar a ninguém - tenha essa pessoa conhecimento sobre videogames ou não - o que realmente é STREET FIGHTER II: THE WORLD WARRIOR ou quem são seus personagens. Sua continuação direta, entretanto... bem, é necessário um pouco mais esforço para as pessoas lembrarem de STREET FIGHTER 3: The New Generation.
E assim como ALUNDRA 2: A New Legend Begins é a tão esperada sequencia de ALUNDRA que caiu na categoria "esse definitivamente é um dos jogos já feitos" e encerrou a franquia, a Vespera do Parasita 2 foi a sequencia do tão aclamado PARASITE EVE que não foi exatamente o que as pessoas esperavam e terminou qualquer esperança de vermos um Parasite Eve 3.
Então a pergunta que realmente cabe ser feita aqui é... isso é justo? Parasite Eve 2 realmente merece ser relegado a uma mera sequencia "direto pra DVD" de PARASITE EVE? É o que veremos a seguir.
PARASITE EVE de 1998 é um jogo... ousado, para dizer o minimo. Uma continuação do aclamado livro de terror japonês de mesmo nome, escrito por Hideaki Sena em 1995, o jogo da Squaresoft podia ser acusado de muitas coisas mas não que não tinha medo de ousar em explorar ideias perturbadoras enquanto abordava questões sobre "o quanto o corpo de uma pessoa realmente pertence a ela" e questionamentos sobre o destino da evolução biológica.
E por isso eu quero dizer ideas realmente perturbadoras, como a Eva Mitocondrial roubar um banco de esperma para se auto-fecundar e criar o ser mitocondrial definitivo - tudo isso regado a muito horror corporal que te faria dizer "oowww... mano..." mesmo com CGs de 1998. A Squaresoft definitivamente não desperdiçou a classificação M aqui e puxou o jogo em limites que mesmo hoje os jogos não ousam ir.
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FINAL FANTASY 8 já brincava com cenários renderizados se movendo com o personagem, mas POUTA QUE O PAREO, como ficou fluído e natural aqui |
Parasite Eve 2, por outro lado, começa chocando justamente por quão seguro ele joga. A história é mais convencional, focando em Aya Brea lutando contra monstros em uma cidade do deserto com uma vaga trama de conspiração no fundo (uma organização maligna do mal quer usar as criaturas mitocondriais, bem no estilo Umbrella-like). Não há equivalente à cena artisticametne dirigida do incendio na opera ou o tom de medo existencial do plano da Mitochondrial Eve.
Enquanto o mundo está novamente em perigo devido a uma nova ameaça mitocondrial (só em Parasite Even temos frases como essas), as apostas definitivamente parecem menores, e a narrativa carece do mesmo nível de criatividade e ambição. Não é só que Parasite Eve 2 seja menos ousado — é que ele nem tenta ser ousado. Ele se contenta em ser um jogo de survival horror competente, em vez de ser uma obra de arte ousada.
E não é apenas conceitualmente PE2 baixa a bola, visualmente tambem. Embora os gráficos de um ano depois sejam infinitamente melhores, PE2 tenta coisas bem menos ousadas com eles. O jogo original é repleto de cenas perturbadoras de horror corporal onde você luta contra um feto mutante enquanto ouve sua carne rasgando e seus ossos quebrando enquanto Parasite Eve 2, por outro lado, parece mais contido. Embora ainda haja alguns momentos incomodos — como as cabras com rostos humanos, tomanocu esses capiroto — o jogo não tem o mesmo nível de intensidade e ousadia.
Muito provavelmente essa mudança foi uma decisão da Square em uma o jogo mais acessível ou comercializável (já que nem todo mundo se sente confortavel com gore pesadão), e enquanto eu entendo essa decisão de um ponto de vista comercial, não posso deixar de sentir que isso o faz parecer menos único.
Outro golpe importante contra Parasite Eve 2 é a perda da trilha sonora composta pela genial Yoko Shimomura. Shimomura, uma das compositoras mais talentosas da história dos videogames, criou faixas assombrosas, atmosféricas e emocionalmente ressonantes, elevando a tensão e a narrativa do jogo. Em Parasite Eve 2, a trilha sonora foi composta por Naoshi Mizuta (que tambem veio da Capcom, sendo o cara que compos os temas do laboratório da Umbrella de RESIDENT EVIL 2), que enquanto é um compositor okay por seus próprios méritos... vamos combinar, ele não é a mente por trás da trilha sonora de STREET FIGHTER II: THE WORLD WARRIOR e SUPER MARIO RPG: Legend of the Seven Stars. Mizuta é okay, mas Shimomura é um gênio.
Então a música aqui é serviçavel, mas não tem a mesma beleza assombrosa ou profundidade temática. Para um jogo de terror, onde a atmosfera é tudo, este é um downgrade significativo. A ausência do toque de Shimomura é especialmente perceptível nos momentos mais calmos e atmosféricos, onde a trilha sonora do jogo original carregava o tom da coisa toda.
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Porra Square, vcs podiam ao menos fingir que não estão copiando as cenas de Resident Evil? |
Mas de tudo, tudo mesmo, talvez o aspecto mais decepcionante de Parasite Eve 2 seja como ele abandona a identidade única do original em favor de uma experiência de survival horror mais genérica. Isso pq o primeiro jogo foi uma mistura de jRPG de turnos com survival horror, criando um sistema de combate único. Parasite Eve 2, por outro lado, muda completamente sua mecanica para ser um um survival horror com os mesmos controles do RESIDENT EVIL de 1996 - um jogo de tiro puro, com direito a ter controles de tanque e tudo.
Essa mudança (junto com o horror corporal mais family friendly( faz com que o jogo pareça menos um verdadeiro sucessor de PARASITE EVE e mais um spin-off de RESIDENT EVIL. Veja, não é que Parasite Eve 2 seja um jogo ruim — mecanicamente ele é um survival horror competente, apenas não soa muito... especial.
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Alo, Junji Ito? Acho que tu esqueceu um dos teus aqui. Pena que os outros monstros do jogo não são tão perturbadores |
Os próprios elementos de RPG do jogo original — como subir de nível, melhorar armas e gerenciar recursos — subiram no telhado para tornar essa uma experiencia de tiro 100% tradicional. Vc ainda ganha experiencia pra evoluir magias, mas elas funcionam mais como um outro tipo de arma de fogo do que uma mecanica de jRPG realmente.
Agora, enquanto eu defendo que Parasite Eve 2 não é um jogo mecanicamente ruim por nenhuma medida, não posso dizer que realmente não me incomoda a decisão de usar controles de tanque — sim, aqueles controles desajeitados e ultrapassados já em 1999 onde pressionar "para cima" faz seu personagem se mover para frente em relação à sua posição atual, não à da câmera. Esta decisão é um enorme retrocesso que quase nenhum jogo mais usava nessa época, e mesmo o jogo anterior de um ano antes não fazia isso. A unica coisa que eu consigo pensar é que PE2 deliberadamente escolheu esse sistema ultrapassado apenas para ficar mais parecido com RESIDENT EVIL de 1996, não vejo outra explicação.
Outro aspecto onde fica bem clara essa direção de tentar ser mais RESIDENT EVIL e menos PARASITE EVE é no proprio level design: o jogo original tinha um mundo semiaberto onde você podia explorar a cidade de Nova York, visitar diferentes locais e descobrir segredos. Isso deu ao jogo uma sensação de escala e imersão "em uma cidade do mundo real" que era rara para a época (especialmente dadas as limitações do PS1). Parasite Eve 2, por outro lado, parece muito mais linear e confinado. O jogo se passa principalmente em uma cidade deserta genérica e uma instalação de pesquisa próxima, e os ambientes parecem menores e menos interessantes - e quem não soubesse melhor teria muito a sensação de estar vendo uma continuação de RESIDENT EVIL se passando em alguma cidadezinha de onde judas perdeu as botas.
UAU, ENTÃO VOCÊ REALMENTE ODIOU ESSE JOGO, HEIM?
Então, eu imagino que posso ter dado essa impressão nessa review, mas te juro que não é isso. Eu queria amar Parasite Eve 2. Realmente queria. O primeiro Parasite Eve é um dos jogos da quinta geração pelo qual eu tenho mais carinho, e quando chegou a vez de jogar sua sequencia com gráficos ainda melhores do que os vimos em FINAL FANTASY 8 com seus cenários pré-renderizados impressionantes e iluminação melancólica, eu estava pronto para outra experiência inesquecível.
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Os mapas, por exemplo, são bem gostosos de se navegar. Survival Horror top tier. |
Em vez disso, o que eu joguei foi algo que tem o nome de Parasite Eve mas não parece Parasite Eve — como uma sequência de alto orçamento direto para DVD que imita as premissas do original, mas perde algo fundamental na tradução. E, ainda sim, eu não odeio Parasite Eve 2. Ainda é um jogo de survival horror sólido e até mesmo bom (exponenciado por ser mais dificil e pegar mais pesado no gerenciamento de munição, algo que nunca é uma questão no primeiro jogo). Mas também é um jogo que me faz perguntar: por que este não clica como o primeiro? Por que eu realmente não conseguia deixar de sentir que algo estava faltando?
Não é apenas a falta de horror corporal, a ausência da trilha sonora de Yoko Shimomura ou a mudança para uma fórmula de survival horror mais genérica. É algo mais profundo — a falta de uma alma. O Parasite Eve original, atabalhoado que fosse as vezes, era um jogo que parecia ter algo a dizer. Era um jogo que não tinha medo de ser estranho, perturbador e instigante. Era um jogo que assumia riscos e ultrapassava limites. É um jogo tão cativante em sua unicidade que depois de jogar o jogo eu quis assistir o filme baseado no livro de Hideaki Sena (e que é a prequel do jogo).
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Esse boss (que parece saído de DOOM, mas okay) é um dos pré-requisitos pra atingir o final verdadeiro do jogo: vc tem que derrotar ele em menos de tres minutos ou senão O DOGUINHO LOW POLY MORRE. SEUS MANÍACOS! |
Parasite Eve 2, por outro lado, parece estar seguindo um checklist. É um jogo que está mais preocupado em se encaixar na lista de itens "coisas que RESIDENT EVIL fez" do que em contar uma história significativa ou criar uma experiência única. É um jogo que não tem a ambição e a criatividade que tornaram o original tão especial, embora não seja tão simples assim pra mim colocar o dedo e apontar onde fica a alma de um videogame.
A verdade é que enquanto escrevo isso, ainda estou tentando descobrir por que Parasite Eve 2 não funciona para mim. São os controles do tanque? A falta de horror corporal? A história genérica? A ausência da música de Yoko Shimomura? São todas essas coisas, mas também é algo mais intangível. É a sensação de que o jogo não tem uma visão clara ou uma identidade forte. É a sensação de que os desenvolvedores estavam mais preocupados em fazer uma sequência comercializável do que em se expressar como artistas.
Nem todos os videogames precisam ser arte - com efeito, bem poucos o são (da mesma forma que nem todos os livros, filmes ou desenhos são a expressão da natureza humana do seu autor, a grande maioria é apenas uma construção manual bem feita - se tanto) - mas não tem como não pensar nisso quando o PARASITE EVE original é um jogo feito por pessoas apaixonadas pela sua arte. Parasite Eve 2 é um jogo que parece ter sido feito por um comitê de executivos e não por artistas.
É um jogo tecnicamente competente, mas não tem o coração, a criatividade e a ambição que tornaram o original tão especial. É um jogo que parece uma sequência direto para DVD — um produto em vez de um projeto de paixão.
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É claro, é óbvio que a reta final do jogo é um laboratório com muito, muito backtracking? Tipo, eu não sei se eu consegui deixar claro o suficiente, mas a Square realmente queria muito, muito, tipo MUITO MESMO, que esse jogo fosse RESIDENT EVIL |
Mais uma vez, Parasite Eve 2 é um BOM survival horror, apenas um que calhou de cair sob a sombra de projeto de paixão gigantesco. Se você está procurando um jogo que capture a ousadia e a atmosfera do original, provavelmente ficará desapontado. Se você quer apenas atirar em cabras com rosto humano e amoebas com controles de 1996, a isso Parasite Eve 2 se presta e faz competentemente bem.
Nota: 6,5/10 (Competente, mas esquecível).
MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 148 (Fevereiro de 2000)
EDIÇÃO 150 (Abril de 2000)
MATÉRIA NA SUPER GAME POWER