Enquanto eu assistia Hercules da Disney para escrever o texto para esse jogo, uma sensação me acometeu. Tinha alguma coisa estranha nesse filme, alguma coisa não estava clicando, alguma coisa parecia ... errada.
Então eu fui pesquisar se mais alguem tinha essa sensação... e obviamente que foi uma perda de tempo, é um filme da Disney e 99,87% dos comentários serão tipo "lembro do cheiro de bolinho de baunilha que minha vó fazia enquanto eu assistia esse desenho" e nada de uma analise sobre o filme em si. Como esperado. Então serei eu o estranho?
SIM. CASO RESOLVIDO.
Hã, tá, vc não está errado, Jorge, mas... ainda sim, tem algo nesse filme que não parece "certo". E foi só quando eu fui atrás da história da produção dele é que as coisas começaram a se encaixar. Mas me permitam começar do começo...
Hades manja de como as coisas rolam |
Se desconsiderarmos "A Goofy Movie" - um erro que muita gente comete, dado que esse filme tem mais méritos do que se dão créditos a ele - os filmes de animação que se seguiram imediatamente a THE LION KING da Disney foram, por falta de palavra melhor, sérios. Ambiciosos. Ponderados. Autoconscientemente artísticos. Cheio de mensagens sérias sobre a cor do vento e ser diferente... mesmo que com questionaveis graus de sucesso, como eu falei a respeito em POCAHONTAS.
Se não foram exatamente os gigablaster sucessos de bilheteria que ALADDIN e THE LION KING foram, eles se saíram bem o suficiente para que a Disney planejasse três filmes mais ambiciosos ainda: um filme baseado na lendária guerreira chinesa Hua Mulan, uma obra tecnicamente inovadora baseada em Tarzan, e um segundo filme de Fantasia.
Você consegue ver uma progressão lógica e narrativa aqui certo? Certo. Só que, surgindo bem no meio de todo esse trabalho sério, ambicioso e lindamente animado, temos... Hércules.
Um filme cuja abordagem da mitologia grega pode ser, na melhor das hipóteses, chamada de “irreverente”, cuja maior ambição deve ter sido ganhar o prêmio “Maior número de piadas internas em um filme de animação da Disney”. Um filme que abandonou praticamente toda a animação ambiciosa e o trabalho técnico que os filmes anteriores tinham focado, o único filme do Renascimento da Disney que se pode dizer que retrocedeu em termos de desenvolvimento de animação.
Mas pq? Se os filmes da Disney estavam caminhando em uma direção, da onde surgiu essa coisa hiperativa que não parece ter um ponto que senão ser colorido e barulhento durante uma hora e meia?
Bem, possivelmente porque Hércules foi o primeiro - e até onde eu sei, único - filme de animação da Disney trazido à vida mais ou menos na base de... vamos dizer, coerção? Chantagem? Essa expressão faz sentido quando executivos de uma megacorporação como a Disney estão envolvidos? Talvez não. Em vez disso, vamos usar o termo um tanto menos preciso e chamar de "acordo". A Disney pode chamar de “preocupações financeiras”.
Essas, er, “preocupações financeiras” datam de meados da década de 1980, quando os então roteiristas/diretores Ron Clements e John Musker abordaram Jeffrey Katzenberg, o novo presidente da Walt Disney Pictures, com uma nova ideia para um filme: adaptar o famoso livro Ilha do Tesouro, só que no espaço!
Katzenberg, infelizmente, não era muito fã de piratas (maritimos ou espaciais) e sugeriu que os dois trabalhassem em THE LITTLE MERMAID. Quando o filme foi bem, Clements e Muskers lançaram sua ideia novamente. Katzenberg, ainda sem entusiasmo, disse que não e os colocou para trabalhar em ALADDIN. Quando o filme foi bem mais uma vez, Clements e Musker meteram o pé na porta e disseram para o presidente que ou ele fazia o filme de piratas espaciaiss que eles queriam, ou eles iam arrumar outro estúdio que fizesse.
Os anos não tornaram Katzenberg mais fã de piratas, muito menos de piratas espaciais. Mas ele não queria perder seus gansos dos ovos de ouro e finalmente concordou em um acordo: se Clements e Musker fizessem um filme seguro que fizesse um resultado junto ao publico - com ênfase em "filme seguro" e "com bom resultado junto ao publico" - com pelo menos uma música que pudesse ser transformada em um hit top 40 - Clements e Musker poderiam, possivelmente, quem sabe, finalmente ter seu filme de piratas.
Haviam, é claro, algumas condições: um, esse filme bobo e agradável para o público tinha que ganhar dinheiro, obviamente. E, acrescentou Katzenberg, como os parques Disney e as lojas Disney pelo mundo estavam se expandindo, ajudaria se Hercules também tivesse um aspecto sólido de merchandising.
Construir o filme em cima de produtos licenciados em vez de, digamos, contar uma história ou personagem, acabou gerando um produto final ... estranho. A coisa aqui é que os heróis gregos são retratados como atletas superestrelas do mundo moderno - onde Aquiles tem o mesmo tratamento de midia e merchandising dentro desse mundo que o Neymar tem no nosso.
Todo o filme é construído com a ideia de retratar o mundo moderno só que com a skin de Grécia antiga. Então Nova York, a grande maçã, virou Tebas, a grande azeitona because Grécia antiga. Ao invés de semaforos de transito, temos vasos gregos de transito controlando o trafego. Vc pegou a ideia.
A ideia não é ruim per se (eu sempre acho esse tipo de adaptação a lá Flintstones curiosa, pelo menos), mas sim que ela não realmente conversa com o tema do filme que é sobre "ser um herói de verdade", seja lá o que isso signifique.
Eu meio que entendi onde eles queriam chegar com isso, ir numa rota meio rockstar de "eu consegui o que eu achava que queria mas perdi minha essencia no caminho", mas honestamente tudo é feito tão na moda louca nesse filme que meio que nada importa realmente. Isso pq o filme tem uma hora e meia, e eu não estou exagerando quando digo que a introdução ocupa a primeira meia hora do filme. Então toda construção de mundo, batalha final, músicas e relacionamento romantico são espremidos em uma única hora e isso acaba saindo tão bem quanto soa.
E foi isso que me incomodou durante esse filme, o quanto ele é desconjuntado e como seus atos não conversam entre si. O primeiro e terceiro ato do filme são uma história sobre o Hercules ser o filho de Zeus, salvar o mundo e ser um herói, mas o segundo ato é um comercial de produtos/episódio dos Flintstones onde ao invés de usar tecnologias do mundo moderno na idade da pedra, são usadas na Grécia antiga.
Não que eu seja o maior expert de cinema ever, mas eu SERIAMENTE desconfio que fazer um segundo ato que parece ter vindo de outro filme apenas pra vender as coisas que vc tem que vender pode atrapalhar o fluxo do filme. Só acho.
Agora, nas raras críticas que se faz a esse filme (because nostalgia), usualmente se aponta como ele não é fiel a mitologia grega. O que é verdade, chamar ele de "remotamente baseado na história do Hercules" já é uma tremenda forçação de barra. Mas quer saber? Isso não é um problema realmente pra mim.
Pra começar que a mitologia grega é uma das coisas menos Disney material ever, sendo que a história particular do Hercules tem insanidade, assassinato de crianças, adultério, uma descida ao inferno e um interlúdio lateral bastante desagradável envolvendo alguns estábulos. Não, não é muito family friendly at all. Mas então, isso nunca impediu a Disney de adaptar qualquer outro material não ideal da Disney, (em especial vocês deveriam ver a versão original do Pinnochio e como termina a Pequena Sereia) e eu não acho que seja realmente um problema aqui.
Sim, verdade que o filme não usa basicamente nada do Hercules (nem mesmo o nome, já que Hercules é o nome romano e o original grego seria Heracles), e com efeito, tirando Zeus, Hades, os Titãs e alguns monstros em especifico, o filme não usa nada sequer da mitologia grega, mas não chega realmente a ser um problema.
O que nos leva a Meg.
Megara ocupa uma posição bastante inusitada no cânone Disney: ela é o primeiro interesse amoroso ordenado a seduzir outro personagem para fins nefastos. Bem, tá, ela certamente não é a primeira personagem que absolutamente, positivamente tem que seduzir outro personagem - ou sofrer as consequencias. A Fera permanecerá uma Fera se não bimbar a Bela, por exemplo - e seus (provavelmente) servos inocentes serão forçados a passar o resto de suas vidas, ou talvez a eternidade, como móveis. Ela é não nem mesmo a primeiro a fazê-lo sob as ordens do vilão - Ariel em A Pequena Sereia estava, afinal, mais ou menos seguindo as instruções da Ursula.
Mas Meg é o primeiro interesse amoroso da Disney que está seduzindo o protagonista com a intenção expressa de causar-lhe danos potenciais. Ela também é o primeiro interesse amoroso da Disney que está trabalhando para o vilão - conscientemente. E - ao contrário de todos os outros protagonistas ou interesses amorosos da Disney até agora - Meg já se apaixonou antes. Não acabou bem. Isso a deixou cínica, até amarga.
Isso faz dela a melhor personagem do filme, e uma das melhores da Disney na real. Ela tem uma vibe bastante Nico Robin de ficar na dela enquanto as crianças cheias de açucar correm pra cima e pra baixo na tela.
E se ela é usada principalmente como um plot device, seu coração de ouro levemente partido junto com um toque de sarcasmo, a torna um pouco mais do que isso - assim como sua decisão, no final do filme, de sorrir e apenas ir embora para longe do homem que ela ama - o homem que acabou de mergulhar literalmente no inferno para salvá-la. Ela lhe deseja sorte, mas nunca pede para ele ficar com ela, ou mesmo parece pensar que ela tem sequer o direito de pedir isso - o que, considerando o que Hércules acabou de fazer por ela, diz muito sobre sua auto-estima. O que, novamente, a torna uma personagem bastante interessante.
Eu realmente gostaria de ve-la em um filme melhor.
Mas Hércules não é o tipo de filme que quer explorar personagens como essa, no fim do dia. É um filme leve, colorido, tem algumas relações parentais bastante questionáveis, muitas das piadas já estão começando a ficar um pouco datadas, o protagonista é um dos mais bleh da Disney, e eu ainda não entendi como os planos do Hades fazem o menor sentido (tipo, okay, supondo que ele vencesse... e aí oque, os Titãs iam deixar ele governar o mundo de boa? Ele ia se livrar dos Titãs sozinho?).
Por outro lado, tanto James Woods na versão original quanto Marcio Simões na versão dublada parecem estar se divertindo muito. Com efeito, James Woods gostou tanto do papel que insistiu em dublar o personagem mesmo nas continuações para DVD e na série de TV, para desespero dos animadores que tinham dificuldade em animar seus padrões de fala rápida. Claro, como todo o resto, Hades tem pouco ou nada em comum com o deus retratado na maioria dos mitos gregos, mas seu desespero com a incompetencia dos seus subordinados é maravilhoso e é muito divertido de assistir.
É, definitivamente Meg e Hades mereciam um filme melhor. Mas bem, no fim do dia tudo deu certo para todos os envolvidos: Hércules foi bem nas bilheterias e gerou uma prequel direta para o vídeo e uma série animada que, apesar de não fazer tanto sentido com como as coisas são contadas no filme foi bem o suficiente para durar duas temporadas, com James Woods reprisando seu papel como Hades por puro amor ao papel. E, mais importante que isso, foi bem-sucedido o suficiente para finalmente - finalmente depois de MAIS DE UMA DECADA - deixar John Musker e Ron Clements finalmente fazerem o seu filme espacial de piratas.
Outra coisa que esse filme teve sucesso foi em ter um videogame licenciado - o que vc pode tomar como óbvio, mas não estava tão simples assim pra Disney já que nunca houve um jogo do Corcunda de Notre Dame (felizmente, talvez?) e POCAHONTAS teve que fazer umas gambiarras para conseguir emplacar um jogo sem violencia. Aqui não, nosso bom e velho Heraclão da Massa teve seu jogo licenciado apropriado e... bem, vamos a isso então.
Por volta de 1995, entretanto, tudo mudou. Onde todo filme da Disney geralmente era acompanhado por uma variedade de mercadorias, incluindo jogos, estes praticamente desapareceram com o advento dos jogos 3D. Considerando os filmes lançados naquele período, não culpo os desenvolvedores de jogos por dizerem não. O mundo certamente não estava esperando ansiosamente pelo Corcunda de Notre Dame fazer sua estreia nos videogames.
Jogos 3D eram mais caros e trabalhosos de fazer, de modo que era dificil serem lançados junto com o filme como produtos licenciados e a partir daí a Disney precisou diminuir a qualidade dos jogos para ser um tie-in rentável. E é justamente por isso que esse jogo aqui é diferente, ele foi o último jogo de plataforma 2D feito com o "padrão Disney de qualidade" antes de uma era de cash-ins toscos em 3D assumirem de vez.
O jogo Hercules Action da Disney remete, em muitos aspectos, aos títulos antigos de plataforma como DISNEY'S ALADDIN e THE LION KING, só que sem a dificuldade desesperadora desse último. O que eu quero dizer com isso é que é um jogo onde as fases seguem o enredo do filme, a jogabilidade é redondinha (tá, a detecção de colisão é meio tosca as vezes, mas o combate não é tão frequente então dá pra seguir a vida) e os gráficos fazem o melhor que podem para reproduzir o que vimos no cinema.
Hercules Action Game da Disney (que é um título que obviamente nenhum dos envolvidos tentou dizer em voz alta antes de escolher) é jogo parte plataforma 2D, parte endless runner 3D, parte lutas contra chefes e tem até uma fase de shmup... ou seja, não dá pra acusar o jogo de não ter variedade aqui. Claro, esse é um jogo bem curto (aproximadamente uma hora de conteúdo), então não espere muita profundidade em nada especialmente tendo quatro estilos de jogo em apenas uma hora.
Por outro lado, ao contrário do que a Disney estava fazendo até então, na maior parte Hercules é um jogo bastante fácil em geral. As bebidas que restauram a vida são frequentes e, com um mínimo de exploração, você acumulará vidas extras. É mais do que provável que a abundância dos itens compense os frequentes golpes baratos dos inimigos, como não ter knockback ou momentos de invencibilidade após o hit (o que quer dizer que alguns inimigos podem realmente encostar em vc e drenar toda sua vida, como os corvos frequentemente fazem).
Por outro laod, os chefes têm padrões fáceis de intuir e também dropam itens de cura durante a luta (algo incomum), então a dificuldade se balanceia mais para o lado fácil do que não. Minha única reclamação é o método de obtenção de passwords, ter que encontrar todos os vasos em cada nível é um pouco chato, mas isso é uma reclamação menor.
Em essencia, é o tipico jogo de plataforma decente (embora não tão especial) que você veria nos consoles de 16 bits, só que com amostras de voz dos dubladores dos filmes e mais quadros de animação na movimentação dos personagens pq o PS1 aguentava o tranco. E mais variedade de gameplay, ainda que apesar do jogo ser curto.
Ou seja, um produto tie-in bonitinho, porém inofensivo que não vai deixar muita impressão em ninguém e nascido apenas para o proposito de ocupar um lugar nas prateleiras. O que, para esse propósito, é uma adaptação perfeita da essencia do filme, isso tem que ser dito!
MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
Edição 119 (Setembro de 1997)
Edição 043 (Outubro de 1997)