O jogo de hoje, saiba vocês, é um jogo muito importante. Com efeito, eu diria que após SUPER MARIO BROS. é o jogo mais influente da história dos videogames. E eu estou falando muito sério: chutando por alto, eu diria que o jogo que eu mais menciono nesse blog é DOOM, pq a esse ponto eu não realmente preciso explicar o quão influente e importante DOOM é para toda indústria ocidental de jogos.
Pois muito que bem, saiba você que em toda sua influência, DOOM não é nada e eu digo NADA perto do quão influente é esse jogo de hoje, isso é o quão influente Unreal é.
TEM CERTEZA, CARA? EU DUVIDO QUE ESSE JOGO SEJA TÃO BOM ASSIM!
Eu disse que ele é influente e importante, não que ele é bom. Quer dizer, enquanto Unreal não serve pra ruim, não é sua qualidade em si que importa no fim do e sim o que ele representou e ainda representa para os videogames. Mas para entender isso, suponho que é preciso primeiro explicar como videogames são feitos de modo que vamos começar do começo!
Vamos lá: uma coisa muito própria dos videogames é que diferente de qualquer outro tipo de midia, videojogos não raramente são melhores nas suas continuações do que em sua versão original. Enquanto é raro encontrar um filme cuja continuação supere o filme original, para videogames isso é relativamente comum. Que o digam jogos como STREET FIGHTER II: THE WORLD WARRIOR, ARC THE LAD 2 ou WARCRAFT 2: THE DARK SAGA, entre vários, vários outros.
E a razão disso acontecer é bastante simples: fazer um jogo é dificil. Sim, eu sei, eu sou um Xerox Rolmes, mas o que eu quero dizer é que videogames são compostos por várias camadas e vc tem que acertar em todas elas. Jogabilidade, gráficos, som, narrativa (quando tem), interface do usuário, dificuldade, duração... erre em apenas uma e seu jogo afunda como um tijolo de seis furos.
Isso tudo, entretanto, é apenas secundário ao fato que antes de tudo o jogo tem que... bem, funcionar. Eu quero dizer, literalmente fazer ele funcionar: rodar bem (preferencialmente a 60 quadros por segundo), tirar bugs, não crashar, e todas essas coisas que vc espera que não aconteça quando liga o jogo. Quando você abre um livro, vc não precisa se preocupar se ele vai irromper em chamas ou desmanchar na sua mão (não um livro novo, pelo menos). Quando vc começa um filme, vc não precisa se preocupar se ele vai rodar no seu aparelho de DVD ou se a sala de cinema vai exibi-lo corretamente.
Já nos videogames, um tempo enorme do desenvolvimento do jogo é gasto apenas fazendo a coisa toda funcionar. Tempo que é limitado no desenvolvimento de um jogo, pq tempo é literalmente dinheiro (já que enquanto o jogo não sai, a desenvolvedora está pagando salários sem receber um centavo de vendar). E cada um desses limitados segundos que é gasto fazendo o jogo sequer funcionar, é um segundo que não é gasto fazendo suas mecanicas serem divertidas, a jogabilidade ser fluída, os gráficos serem mais polidos... vc pegou a ideia da coisa.
Assim, acho que vc conseguiu entender pq não é raro continuações tendem a serem melhores em videojogos: o tempo gasto fazendo a engine do jogo funcionar ficou no primeiro jogo, agora a equipe não precisa mais se preocupar com isso e (depois de corrigir uma coisinha que outra) podem inteiramente dedicar seu tempo a parte criativa. Novos golpes, novas mecanicas, mais opções de classe, mais desenvolvimento da história, all the good stuff. Uma vez que vc já carregou o piano nas costas no jogo anterior e a coisa está pronta, agora é hora de pegar leve e ser criativo.
TÁ, ENTENDI, MAS O QUE O JOGO DE HOJE QUE SEQUER É UMA CONTINUAÇÃO TEM HAVER COM ISSO?
Então agora que vc entendeu como jogos são feitos e pq continuações são muito mais tranquilas de fazer, eu quero que vc considere o seguinte cenário: E SE, veja bem, E SE ao invés de vc quebrar a cabeça e passar seis meses, um ano, mais até apenas tentando fazer o seu jogo funcionar para só depois disso poder gastar recursos criativos nele... e se vc apenas já comprasse uma engine pronta e funcional?
Especialmente para um jogo 3D, que uma vez que a engine está pronta e tudo funcionando é bem mais tranquilo fazer as coisas pq os bonecos e assets já "existem" em um mundinho virtual, não seria a melhor coisa ever vc poder apenas pular a parte bruta de criar o jogo do zero e já pegar uma engine prontinha e estalando de crocante para em cima dela vc customiza-la e fazer o jogo que quer realmente fazer? Claro que seria.
Mas a coisa é... onde vc compraria algo assim? Não é como se alguém tivesse se dado ao trabalho de criar uma engine fácil de programar para ser um esqueleto pronto do qual vc poderia apenas customizar o seu jogo em cima e vender tudo isso redondinho... ou não era, até 1998.
Isso pq Tim Sweeney havia fundado a Epic Games em 1991, e desde então ele vinha lidando com esse problema diariamente: fazer jogos do zero era um saco, seria muito bom se alguém apenas vendesse uma engine pronta. Como não havia tal coisa no mercado, estalou uma estrelinha na cabeça dele: espera, pq ELE não fazia isso?
E foi exatamente o que ele fez: depois de fazer uns jogos meio whatever que nunca deram em muita coisa, tipo uns EXTREME PINBALL da vida, a Epic Games se focou em mais do que um jogo, fazer um engine que estivesse prontinha para quem quisesse pagar para pular a parte chata e desinteressante de fazer videogames.
Nasceu assim a Unreal Engine, um motor gráfico que era justamente isso: um esqueleto pronto que já tinha resolvido os problemas de fisica, jogabilidade, iluminação, texturas, movimentação... ou seja, tá tudo pronto, é só vc pegar e customizar do seu jeito, colocar os seus bonecos, fazer o seu level design, adicionar alguma mecanica extra se vc quiser (mas aí a programação é por sua conta e risco), tudo pronto, tudo na mão.
E agora que vc tem esse produto pronto em mãos para atender uma necessidade não suprida do mercado, qual é a melhor forma de vc anunciar isso para o mundo e ainda faturar um cascalho em troca afinal, na época, a Epic Games ainda não era multibilionária e precisava embolsar de alguma forma a grana que gastou nesses anos desenvolvendo a Unreal Engine?
Exactamundo: vc demonstra todo o poder da sua engine através de um jogo, e é aqui que chegamos ao jogo de hoje. Dessa forma, Unreal não é muito um jogo per se e é muito mais uma demo tecnica de tudo que a Unreal Engine podia fazer.
Por isso não espere desse jogo narrativa, level design, inimigos criativos ou armas mirabolantes, e ao jogar ele sem entender o contexto da sua criação vc pode achar que ele é apenas uma versão desinspirada de QUAKE 2... e é. Pq não é esse o ponto aqui, Tim e sua Epic Games não queria vencer a Id Software e seu QUAKE 2, eles queriam era mostrar ao mundo tudo que sua Unreal Engine podia fazer.
E de fato ela podia fazer muitas coisas: os efeitos de iluminação, a quantidade de partes moveis no cenário, os efeitos de água (que é o elemento mais dificil de reproduzir em videogames e ainda hoje é um parto para os jogos reproduzirem de forma satisfatória a fisica única da água), os NPCs com rotinas de comportamento únicas, tudo isso e muito mais coisas estão lá.
o layout da primeira Unreal Engine |
Essa é a coisa então de Unreal: mais do que um jogo, ele é uma demo técnica de todas as coisas que a Unreal Engine podia fazer e no final dos créditos só faltou uma propaganda que ela podia ser adquirida por U$19,99 nas melhores lojas do ramo!
O que é algo que esse jogo faz muito bem, saiba você: todas as coisas que ele faz, os efeitos de iluminação dinamica, os níveis com multiplas camadas de altura, os efeitos de sombra, até mesmo um ray-tracing falso, tudo isso é absolutamente impressionante para a época e não devia nada ao jogo que era o top de linha dos gráficos 3D de computador até então, QUAKE 2.
TÁ, TUDO ISSO É MUITO INTERESSANTE, MAS TEM UM PROBLEMA NESSE MODELO DE NEGÓCIOS QUE A EPIC GAMES PENSOU
E que problema seria esse, Jorge?
ORA, UM ESTÚDIO GRANDE COMO A KONAMI, A SQUARESOFT OU A CAPCOM, POR EXEMPLO, TEM BOLSOS GRANDES O SUFICIENTE PARA BANCAR FAZER A SUA PRÓPRIA ENGINE PARA SUAS PRÓPRIAS NECESSIDDES, ELAS NÃO PRECISAM COMPRAR UMA GENÉRICA PRONTA. E OS ESTÚDIOS PEQUENOS SEM DINHEIRO... SÃO PEQUENOS E SEM DINHEIRO.
Verdade, esse é um problema bem grave e a razão pela qual ninguém havia ficado rico ainda fazendo uma engine comercial. Quem podia pagar milhões não precisava dos serviços da Unreal Engine, e quem precisava não podia pagar. Um belo problema, não?
E nosso menino Tim maravilha estava totalmente ciente disso, o que nos leva ao segundo passo da nossa história e o motivo pelo qual a Unreal Engine ter dado tão certo (além dela ser uma engine realmente boa): o modelo de negócios da Epic Games.
Porque sabe quanto custa vc adquirir a Unreal Engine? Nada. Zero. Zip. Nothing. Niente. É tudo free, lalala.
HÃ, NÃO É MEIO DIFICIL FICAR RICO DISTRIBUINDO UMA COISA DE GRAÇA?
Bastante, um aspecto muito importante de ganhar dinheiro é que vc tem que ganhar dinheiro. Conceito complexo, eu sei. Mas então, eis como o modelo de negócios da Epic funcionava e ainda funciona: usar a Unreal Engine é de graça, porém ao adquiri-la vc assina um contrato com a Epic que caso o seu jogo lançado comercialmente venda mais do que 1 milhão de dolares, então 5% dessa grana é da Epic.
Atualmente a Epic cobra 5% dos lucros do jogo acima de 1 milhão, ou se o jogo for distribuido exclusivo na Epic Store é de graça pq a loja já fica com 12% da venda de qualquer jeito |
1 milhão no caso é o valor de hoje que a Epic cobra pela Unreal Engine 5, eu não achei os valores exatos que ela cobrava em 1998, mas o modelo do negócio é mais ou menos esse. Então, como você pode imaginar, 5% de um potencial infinito de grana É uma grana potencialmente infinita para o estúdio.
Para ter uma ideia do que isso significa em números, em 2009 Arkham Asylum foi desenvolvido pela Rocksteady usando a Unreal Engine 3. O jogo vendeu aproximadamente 10 milhões de cópias. 5% dessa grana se teletransportou imediatamente para os bolsos da Epic, e esses 5% de 10 milhões de jogos vendidos a 60 dolares são apenas de UM jogo, apenas a Unreal Engine 3 teve mais de 300 jogos lançados usando esse motor gráfico. Isso é diñero para uma senhora caceta, heim?
E esse é um sistema onde todo mundo sai ganhando, no fim do dia. O desenvolvedor só paga SE o seu jogo deu certo, e tirar os custos de não apenas adquirir a licença como evitar perder tempo desenvolvendo a Engine é uma senhora de uma puta enorme baita mão na roda.
Originalmente pensada apenas para FPS, com poucos ajustes a Unreal Engine hoje serve para desenvolver qualquer tipo de jogo e se tornou o pilar padrão no qual os jogos são desenvolvidos. Essa cultura de usar a Unreal Engine pq era bom pra todo mundo no final dos anos 90 se emaranhou tanto no mundo dos videogames que hoje mesmo desenvolvedoras que podem pagar para desenvolver suas próprias engines preferem usar a Unreal Engine não apenas pelo tempo poupado, mas pq seus programadores cresceram trabalhando com essa linguagem.
Mais do que uma questão de dinheiro, hoje a Unreal Engine é uma questão cultural dentro do desenvolvimento de jogos e é então a parte que eu disse no começo do texto sobre esse jogo ter moldado toda indústria de videogames até os dias de hoje. Até hoje a Unreal é a engine mais popular para desenvolver jogos AAA (embora para jogos mobile e indies a Unreal não seja mais a líder de mercado com 16% do mercado de engines, atrás da Unity com 29%), e dificilmente vc vai pensar em um jogo grande de orçamento milionário sem pensar na Unreal Engine.
Alias, vai além disso: a Unreal Engine moldou não apenas videogames, como toda cultura pop. Isso pq se vc tem uma engine de criar coisas em 3D que está com toda física, iluminação e as caralhas já programadas, pq limitar a usar isso para videogames?
Hollywood logo percebeu que tinha uma ferramenta de efeitos especiais prontinha prontinha para ser usada. E usada ela foi, como em Mandalorian, no remake em CG do Rei Leão ou em West World. Mais do que isso até, a Unreal Engine hoje é usada pelo FBI como simulação de cena de crime para treinamento de agentes, ou o Exército dos EUA que usa uma versão dela para treinar socorristas. A grande verdade é que se você quer um jeito fácil e acessível de fazer uma produção blockbuster em 3D hoje, dificilmente vc vai achar uma ferramenta que atenda mais as suas necessidades de forma acessível do que a Unreal Engine.
Toda essa cultura de usar engines comerciais nasceu aqui, nesse momento com Unreal - o jogo. No fim do dia, Unreal não é realmente um grande jogo pq - enquanto não é ruim - ele não tenta fazer nada que outros jogos da época já faziam bem melhor. O que ele de facto tenta fazer é mudar como toda indústria dos videogames pensa, e eventualmente mudar toda indústria do entretenimento.
E isso ele fez. Foi exatamente o que ele fez.
MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
Edição 134 (Dezembro de 1998)
MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 053 (Agosto de 1998)
MATÉRIA NA GAMERS
Edição 036 (Dezembro de 1998)