sábado, 13 de janeiro de 2024

[#1218][Jun/98] QUEST 64 (ou "Holy Magic Century" na Europa e "Eltale Monsters" no Japão")

As pessoas tem uma ideia de que o Nintendo 64 teve poucos jogos lançados - em especial se compararmos com o Super Nintendo antes dele e mais ainda se compararmos com o seu contemporaneo PS1 - porém não tem uma noção exata do quanto.

Ao todo, foram lançados 1755 jogos de Super Nintendo, quase 8 mil jogos para o PS1 durante toda sua vida útil (sim, MAIS DE OITO MIL) e mesmo o Saturn ganhou mais de 1000... enquanto para o Nintendo 64 esse número foi de 388 jogos no total, sendo desses 85 exclusivos do Japão. Sim, trezentos e oitenta e oito. É bem pouco, só de jogos revisados de PS1 nesse blog vai passar esse número tranquilamente.

E a razão é fácil de entender: devido ao seu formato único de cartucho, as desenvolvedoras não podiam simplesmente portar jogos de PS1 para o Nintendo 64, elas tinham que fazer uma versão própria para o console da Nintendo praticamente do zero. E isso demandava tempo (logo, dinheiro) que bem pouca gente achava negócio bancar. Logo era a questão de escolher entre o PS1 ou o Nintendo 64 e se você só tem uma bala na agulha é bastante óbvio onde o seu tiro vai. Some a isso os custos que a Nintendo exigia das desenvolvedoras pra publicar no seu console e o péssimo relacionamento acumulado do tempo que ela tinha monopolio dos videogames e o resultado final foi bastante óbvio.

Mas pq eu estou falando disso? Bem, pq devido a essa escaces de jogos para o Nintendo 64 alguns generos tomaram bonitaço no toba. Vc sabia, por exemplo, que até junho de 1998 não havia um único jogo de RPG para o Nintendo 64? NENHUM. Zero. Zilch. Nothing. Nada.

Como você espera sobreviver no Japão sem lançar um ÚNICO RPGzinho sequer para o seu sistema é algo que eu jamais entenderei, mas esse era o brete que o Nintendo 64 estava. DOIS ANOS sem um RPG sequer, aí fica dificil te defender Nintende...

Bem, seja como for era só questão de tempo até alguém perceber essa abominação na biblioteca do Nintendo 64... bastante tempo, verdade, mas enfim uma hora alguém ia ver. E quis o destino que esse alguém fosse a Imagineer.


Agora, se esse nome não lhe é imediatamente familiar, nada tema: vc não está ficando senil, é que não a Imagineer não tem um grande currículo. Com efeito, ele é quase inteiramente composto por ports de jogos de um sistema para o outro: por exemplo, eles fizeram a versão de Nintendinho de LEMMINGS ou a versão de Super Nintendo de SIM EARTH

Então o primeiro RPG de Nintendo 64 também é um dos primeiros jogos originais desenvolvidos pela Imagineer, é cego guiando cego, o que possivelmente poderia dar errado?


Oh Deus...

Eu não vou mentir pra vocês: a fama de Quest 64 é ruim. Eu quero dizer, BEM ruim e já começa pelo nome do jogo, chamar um RPG de "Quest 64" é o equivalente a chamar um jogo de luta de futebol de "Gol 64" ou um jogo de luta de "Combate 64". Se bem que tem realmente um jogo de luta chamado VS.... eu to cercado de idiotas pqp onde eu fui amarrar meu burro... mas enfim,que porra é essa, voltamos as eras do Atari onde o jogos se chamavam "corrida, futebol" e etc? Mas enfim, ao menos no Japão o jogo tem um nome melhor (Eltale Monsters) e na Europa tambem (Holy Magic Century)... ainda sim, Quest 64 é um nome ruim pra caceta. Sigamos.


Dizia eu então que pelo que eu ouvi falar a respeito desse jogo eu esperava a pior coisa do mundo desde a invenção da calça jeans molhada pq é o que todo mundo fala dele...e qual não minha surpresa ao ver que esse jogo não parece tão ruim assim?

As primeiras impressões que o jogo passa parecem ser uma tentativa bastante decente para a primeira entrada de RPG no catálogo do N64. Os cenários são amplos e parecem repletos de coisas para explorar. O sistema de batalha é complexo para um RPG de turnos. O sistema de stats é inovador. Os bonecos são compostos de várias peças diferentes. Daqui a pouco eu entro em mais detalhes sobre cada uma dessas coisas individualmente, mas por hora tenha isso em mente.

Mas passada essa primeira impressão inicial de que "não é tão ruim quanto dizem"... vc começa a ficar frustrado. E por "frustrado" eu quero dizer que esse jogo é simplesmente a experiencia mais chata que eu já tive jogando videogame na minha vida, sem exagero aqui. Os NPCs e os lugares tem menos conteúdo que quem reclama do BBB no Twitter. Dizer que a história inexiste seria uma ofensa a todas histórias inexistentes que já inexistiram. 

Taí um RPG que não perde tempo com introduções, eu te digo

Quando eu pesquisei sobre esse jogo vi que a gameplay dele tinha cerca de 6 horas, me pareceu muito curto para um RPG. Agora após ter jogado, te garanto que foram as seis horas mais longas da minha vida que eu já passei na frente de um videojogo.

Isso não quer dizer que o jogo seja sem NENHUMA qualidade, existem pontos positivos (o sistema de combate e o sistema de stats eram intrincados e inovadores para a época), mas todo resto é um exercicio de sofrimento e dor e sem nada vagamente interessante acontecendo depois da primeira hora de jogo esse jogo é nada senão um teste de perseverança. Mas vamos começar do começo...

A história aqui, pela falta de palavra melhor, é que nosso herói Brian... não, espera, isso não está certo. O jogo já tem o nome mais sem graça possível para um RPG, ele se chama fucking "Quest 64" e aí o herói da história se chama Brian?


Porra gente, personagens de RPGs costumam ter nomes legais, interessantes, exóticos! Chrono, Lucca, Aerith, Sephirot, Ramza, nomes fodas, não Brian! Brian não é alguém partindo em uma aventura mítica, Brian é alguém que vende um Lucky Strike do lado de fora do posto de gasolina por 50 centavos enquanto bebe o equivalente americano a uma Itaipava. Brian é o nome do padrasto de alguém, não de um herói que parte numa aventura lendária!

Porra de nome sem graça, Brian... mas enfim BRIAN deixa o mosteiro dos magos para encontrar seu pai que sumiu procurando um livro lendário (o Livro de Eltale do nome japones do jogo) por algum motivo. O que o tal livro faz é algo que jamais saberemos, pq certamente o jogo não se importa em elaborar sobre isso.

Depois de sair do monastério ele chega numa cidade e descobre que um ladrão roubou a pedra elemental daquela cidade. O que a pedra elemental faz e pq ela importa é algo que o jogo não se importa em elaborar sobre isso tb. Brian irá então derrotar essa pessoa, pegar a pedra e então seguir para a próxima cidade. Repita isso quatro vezes e o jogo termina. Fim.


No papel, essa história não é a pior coisa que já aconteceu em um RPG japonês, mas suponho que você não está entendendo o quão seca e sem inspiração a coisa toda é. O mundo é completamente vazio de coisas interessantes para fazer ou ver, e as poucas cidades que existem não são muito mais povoadas que isso.

A impressão que eu tenho é que esse jogo foi feito para quem não gosta de RPG e tenta pular o "blablabla" para agradar os moleques da ação nervosa americanos o máximo possível. Isso quer dizer que tudo é resolvido através de dialogos de uma fala que não raramente não te dizem sequer para onde ir, quanto mais dar algum contexto do jogo.

Pra vc ter uma ideia do quão seco esse jogo realmente é, tem uma hora que Brian finalmente encontra seu pai... e nada acontece. Ele tem uma fala igual a qualquer outro NPC e nada especial acontece, é só outro NPC, é esse o nível da "história" desse jogo.


Mas tá, um RPG pode sobreviver sem a parte do RP... não devia, mas vá lá... se o G for okay. O problema é que o jogo é péssimo em vários níveis que é até dificil enumerar, mas tentemos: repetição, grinding, gerenciamento de inventário, encounter rating, level design, picos de dificuldade, controles, câmera, exploração. Ou seja, quase todo o jogo.

Vamos destrinchar isso por partes... começando pela pior parte disso tudo é que o sistema de combate na verdade é realmente bem interessante: é um combate por turnos como em qualquer jRPG, mas vc tem uma pequena area pra se movimentar. Cada magia (e as magias dos inimigos) tem uma area e alcance especificos, então seu posicionamento no pequeno cercadinho importa. O que tem um certo aspecto tático e parece bastante o que LUNAR: The Silver Star Story tentou fazer, mas como aqui vc tem controle sobre o posicionamento do personagem é bem melhor.


Qual é o problema disso? Bem, o problema é que vc tem um encontro aleatório a cada três passos e a forma que o level up de magias desse jogo funciona exige que você FAÇA EXATAMENTE AS MESMAS AÇÕES EM TODA E CADA BATALHA DO JOGO. Eu estou sendo bastante literal aqui, você poderia programar um robo com a mesma sequencia de comandos e ainda sim terminaria esse jogo!

A evolução das magias funciona assim: toda vez que vc sobe de nível, vc escolhe um elemento para evoluir - sendo que cada elemento vai de um 1 a 50. Em alguns níveis pre-determinados vc ganha magias mais fortes. Tipo o elemento do fogo, no nível 13 vc ganha Hot Steam (uma magia de ataque em area), no nível 16 vc ganha Fireball 3, e assim por diante.

Outra forma de aumentar seus niveis de elemento é achar essas fontes de mana pelo mundo, que são o único colecionavel do jogo inteiro - literalmente, sequer dinheiro essa porra tem

Então a questão aqui é que se vc tem 4 elementos e vc sobe só um elemento a cada level up, qual é a vantagem de distribuir seus elementos? Nenhuma, simples assim. Então o sistema de evolução é escolher um elemento e usar só ele ad infinitum.

Isso seria resolvido fazendo os inimigos terem fraquezas elementais... o que meio que até que existe, mas honestamente não vale o trabalho de começar a upar outro elemento e é mais simples só atropelar com suas magias mais fortes. Outra coisa que resolveria seria o jogo não exigir que vc estivesse cagado no grinding, então ele EXIGE que vc esteja com a sua magia mais forte possível pra passar adiante.

E se vc só usa sua magia mais forte, vc só faz a mesma coisa. Nos combates a cada três passos. Num jogo em que as masmorras não tem mapa e os lugares parecem todos iguais, então prepare-se para ficar zanzando perdido... até pq se vc fugir do combate a camera não volta pro lado que vc estava indo antes do combate, então prepare-se para se perder bastante.

As dungeons não variam e consistem principalmente de longos corredores repetitivos. Acima tem uma imagem de estar virado para o leste e o oeste desse corredor. A bússola é uma piada. Você não a usa pra nada e com uma luta a cada tres passos vc vai acabar esquecendo para onde vc tava indo. Tudo o que resta a fazer é escolher uma direção e torcer pelo melhor.

Então pense sobre isso: vc passa pelo menos uma dezena de horas (seis se vc seguir um detonado, mas por sua conta não espere menos que o dobro disso já que NINGUÉM FALA NADA ÚTIL e as dungeons parecem todas iguais) repetindo os mesmos comandos no combate. Os exatos mesmos comandos. Não tem equipamento, não tem sidequests, não tem personagens, não tem narrativa, não tem nada de nada.

Repetidamente.

O principio que rege Quest 64 é a redundância. O jogo repete o mesmo formato para cada batida (cidade, bandido com elemento, abre caminho para uma nova cidade, novo bandido com elemento, abre novo caminho para uma nova cidade), encontros aleatórios a cada três passos, cidades que não têm nada para explorar, casas vazias (a cada 7, uma tem um bau com um item de cura), o diálogo geralmente é uma conversa fiada genérica que imita a fórmula da história (“Você está na cidade A, mas um ladrão malvado pegou B e está bloqueando o caminho para C. Quem vai nos salvar?”).

Depois de cada luta sua mana recupera um bocado, mas não seu HP. Então o que vc tem que fazer é usar magia de cura... que cura SEIS pontos de vida no nível 1 e 11 pontos no nível 2 (conseguido no elemento agua lv 16). E aí vc tem que encher manualmente sua vida lançando essa magia repetidas vezes! Agora imagine fazer isso depois de TODA luta, pq como toda luta tem pelo menos um turno que vc toma dano, vc precisa fazer isso depois de TODA E CADA LUTA QUE ACONTECE A CADA TRÊS PASSOS! AAAAAAAAAAAHHHH DESGRAÇA!

Enfim, pense no RPG mais básico que vc pode imaginar e agora arraste isso por uma dezena de horas ao ponto que depois da terceira hora apertando OS MESMOS COMANDOS vc vai estar desejando jogar sal nos seus olhos apenas pra checar se vc ainda é capaz de sentir alguma coisa além do tédio.

E eu também tenho que mencionar que esse jogo tem a pior camera que eu já vi em um jRPG na vida. Eu nem sabia que isso era possível, mas acredite, é um negócio forjado nas camaras frias do inferno a camera desse jogo. HORRÍVEL.

O que rola aqui: a câmera pode ser movida em batalha pressionando B, e em um primeiro momento faz a coisa certa, ficando atrás do personagem para que você possa ver o que está à sua frente. Só que em vez da camera  ficar lá, por alguma razão que senão sangue de capetanaz, ela flutua de volta ao seu local original se vc soltar o botão. 


Então a camera é essencialmente um cabo de guerra de vc tentando fazer ela parar atrás de vc pra vc ver pra onde tá indo quando você está tentando alinhar um ataque - lembre-se que posicionamento importa muito - e a câmera tentando voltar pra sua posição original o tempo todo. A coisa toda é um fodendo exercicio de insanidade, eu te digo.

 Enfim, o sistema de combate e de atributos é interessante (inspirando-se em Final Fantasy 2, Quest 64 aumenta seus atributos conforme realiza ações, então acertar coisas com seu bastão aumenta seu ataque, lançar mais magia aumenta a magia e ser muito atingido aumenta seu HP) e em um jogo que não transformasse seu cerebro num pudim de macarrão molhado pela repetição e tédio infindos seriam grandes coisas

Tirando isso e os gráficos que são surpreendentemente bons para a época, Quest 64 não faz mais nada bem. O que, considerando que é o primeiro RPG de Nintendo 64 depois de DOIS ANOS, é muito menos do que o minimo necessário - mais especialmente ainda que quem se manteve fiel do Super Nintendo estava acostumado a uma ótima biblioteca de jRPGs, e que era exatamente isso que o PS1 estava oferecendo nesse exato mesmo momento - considere que esse jogo saiu alguns meses DEPOIS de PARASITE EVE e XENOGEARS torna a coisa toda apenas mais constrangedora

Ao todo, que eu saiba apenas 6 jRPGs foram lançados para o Nintendo 64 e desses apenas 3 chegaram ao ocidente. E embora eu não possa provar isso, eu realmente desconfio que muito desses numeros deprimentemtente baixos se devem ao PRIMEIRO RPG ao qual o N64 foi exposto ter sido essa bomba. Depois do que eu passei aqui, nem dá pra dizer que tá errado.

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
Edição 130 (Agosto de 1998)



MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 053 (Agosto de 1998)


MATÉRIA NA GAMERS
Edição 032 (Julho de 1998)