Ao lado de CRASH BANDICOOT, Spyro o Dragão é possivelmente uma das primeiras coisas que as pessoas pensam quando se fala em jogos de plataforma para o Playstation. Na verdade mesmo a primeira coisa que as pessoas pensam é que se vc quer jogar jogos de plataforma, então vc teria mais sorte no Nintendo 64 - especialmente agora que estamos num ponto onde BANJO-KAZOOIE já existe.
Ainda sim, se você está preso ao Playstation, então não tem como fugir muito desse pequeno dragão roxo. No entanto, embora eu saiba da sua importância para a história do PlayStation e tenha gostado de outros jogos da Insomniac Games (eu devo ter sido uma das 3 pessoas no multiverso que jogou DISRUPTOR, que é um jogo bem interessante até), nunca joguei um único jogo sequer de Spyro. Bem, chegou a hora de corrigir isso e hoje falaremos de um dos clássicos do PS1... mas será que merece ser um clássico realmente? É o que veremos a seguir!
A história do desenvolvimento do dragão espiroleta começa justamente com o citado primeiro jogo da Insomniac, DISRUPTOR. Esse jogo foi, é claro, um fodendo fracasso de vendas embora tenha angariado críticas positivas na época - e mesmo depois dela, na minha review de DISRUPTOR eu apontei varias qualidades da Insomniac bem interessantes para um primeiro jogo.
Pois muito que bem, acontece que eu não fui o único que percebeu isso: na época, Mark Cerny era um dos consultores da divisão de games da Universal Studios, quem publicou o jogo - se você manja dos games e sabe quem é esse cara, já sabe onde essa história termina, mas prossigamos. Cerny viu o potencial dos garotos e decidiu colar neles pra dar umas dicas pra eles.
E sua dica foi fundamental para esse jogo vir a ser: a ideia da Insomniac para seu próximo jogo era fazer um jogo de ação baseado em dragões, muito inspirado pelo filme Coração de Dragão (que hoje ninguém lembra, mas na época foi um grande blockbuster). A Universal, mais especialmente Cerny, acreditava no potencial dos caras mesmo com o fracasso comercial do primeiro jogo, e por isso mesmo só deu uma dica para eles: "caras, todo mundo e a mãe de todo mundo está fazendo jogos de fantasia medieval seriões de dungeons para o PS1. Se vcs mantiverem essa ideia de dragão, mas numa pegada mais family friendly, não tem muito disso no sistema. Pensem nisso."
E a Insomniac pensou nisso de facto.
Então ao invés de ser o 18o jogo de hack'n slash medieval como IAN LIVINGSTONE DEATHTRAP DUNGEON ou... meu SEM OR respira... EXCALIBUR 2555 AD, pq não ir numa pegada totalmente diferente e fazer um jogo de plataforma 3D como os que a Nintendo/Rare faziam tão bem no Nintendo 64 e praticamente inexistia no PS1?
Foi o que eles fizeram, um jogo de plataforma 3D colorido e aberto como SUPER MARIO 64 ou BANJO-KAZOOIE! ... o que era um problema, e existia um motivo pelo qual esses jogos só eram feitos no Nintendo 64 e não no Playstation: o hardware do N64 era muito, muito melhor que isso. Hoje, dado o sucesso panglobalitico mastodontico do PS1 é fácil esquecer isso, mas o hardware do console da Nintendo dava voltas ao redor do console da Sony.
Logo, fazer mundos abertos amplos com personagens feitos de vários poligonos e vários elementos na tela era algo que o Nintendo 64 foi feito para fazer, enquanto o PS1 se tivesse que fazer uma sala maior que 10 metros virtuais já ficava tipo:
Tá, não são 10 metros exatos, mas vc entendeu a ideia. Era algo que o PS1 não tankava, e os jogos que tentavam fazer algo assim tinham que ser bem mais simples: ou com controles travados que não permitiam muitos elementos dinamicos ultracrazys como CROC: The Legend of Gobbos, ou então com um numero bem menor de coisas na tela ao mesmo tempo como GEX: Enter the Gecko.
Pois muito que bem, foi justamente nessa limitação aí que a Insomniac viu uma oportunidade! E SE, veja bem, E SE houvesse um jogo de PS1 que permitisse os mesmos shenaniggans que o Nintendo 64 fazia? É claro, eles ainda não teriam a genialidade do Miyamoto para fazer um SUPER MARIO 64 ou a fase dourada de hit após hit que a Rare estava rolando com BANJO-KAZOOIE, mas no Playstation mesmo não havia nada remotamente parecido para competir!
Então foi o que eles fizeram! A Insomniac então virou noites e noites e noites macetando uma engine que gambiarrace os limites do que o PS1 era capaz de fazer até que Alex Hastings descobriu uma forma de fazer a coisa funcionar explorando o Level of Detail dos objetos. Funciona mais ou menos assim: em um jogo 3D, o jogo não renderiza completamente tudo que está fora da camera justamente para economizar memória e recursos. Ele mapeia onde as coisas estão e se necessário (se a camera virar, por exemplo) ele então gasta mais recursos para desenvolver melhor aquele modelo.
É assim que jogos 3D funcionam até hoje, saiba você:
Mas suponha que você esteja trabalhando com um sistema com recursos bem, mas beeeem limitados como era o caso do PS1, existia algum jeito de economizar mais memória ainda? Essa foi a grande sacada da engine criada pela Insomniac, havia sim!
Ao invés de colocar mais detalhes apenas quando o objeto entrava no campo de visão do jogador, se eles colocassem mais detalhes apenas quando ele fosse se aproximando então isso permitiria mais coisas na tela ao mesmo tempo pq as coisas que estariam ao fundo seriam tosquinhas e sem muito detalhe, só comendo recursos do sistema quando o jogador levasse a camera para perto delas!
Um exemplo de uso do Level of Detail. As áreas mais claras são renderizadas com mais detalhes, enquanto todas informações fora do campo de visão (na area cinza) existem apenas em modo stand by e só são renderizadas se necessária.
É óbvio que isso é bem mais dificil fazer do que falar, porém ao final de 1998 a Insomniac tinha realmente conseguido por para funcionar uma engine que fazia o PS1 rodar um jogo aberto e com tantos elementos na tela quanto os jogos de Nintendo 64!
Parasse aí, eles já teriam uma grande carta na manga pra mostrar para impressionar a Sony, só que tinha mais: naquela época, o escritório da Insomniac ficava literalmente do outro lado da rua da onde ficava a Naughty Dog, e as duas empresas tinham uma ótima relação - com uma testando os jogos da outra, dando sugestões de como melhorar e etc. Alias é por isso que o CD desse Spyro the Dragon tem uma demo do próximo jogo que viria a ser lançado do Crash Bandicoot.
E isso é importante pq a Naughty Dog sabia tudo sobre como fazer um jogo de plataforma com um personagem carismático e ultradinamico, dado que na época seu grande sucesso era ninguém menos que o bandicoot mais querido dos videojogos:
Então aí vc junta as duas coisas, e começa a entender o que é "Spyro: The Dragon": um jogo de PS1 que (através de muito macetamento) parecia ter a capacidade tecnica do Nintendo 64, porém com o carisma e dinamicidade de CRASH BANDICOOT e é fácil começar a entender pq esse jogo importa tanto.
E agora que vc já entendeu o básico por trás da ideia desse jogo, podemos olhar mais de perto alguns dos seus detalhes, como a sua história por exemplo. Alias, vou fazer melhor que isso: em 2018 toda trilogia de jogos do Spyro recebeu um remake para os videogames da geração atual, e uma das coisas que foram melhoradas nesse remake foi justamente a narrativa. Então vamos permitir que o próprio jogo conte a sua história, sim?
Po gente, chamar de feio também foi desnecessário né? Mas enfim, todos dragões da Terra dos Dragões foram transformados em estautas com exceção do nosso tampico herói Spyro. Agora, pq apenas Spyro não foi transformado em estatua? Essa é uma excelente pergunta para a qual jamais teremos uma resposta!
Seja como for, derrotar tesouros e saquear inimigos, é o que iremos fazer nesse jogo! Até pq fora essa abertura, a trama se resume principalmente em pegar o bandido e todo o resto é apenas uma mistura de conselhos de gameplay e piadas. Você vê, toda vez que você liberta um dragão ele tem um pouco de audio gravado para transmitir. Às vezes, essas são dicas úteis para a jogabilidade, às vezes são dicas óbvias para a jogabilidade e às vezes são piadas sobre como é hilário que Spyro não goste de pessoas velhas porque ele é jovem e cheio de atitude, SEU COROA!
Haha! É engraçado porque os idosos são chatos e o Spyro não quer falar com eles porque são chatos! ... eu juro que essa piada em particular foi reutilizada pelo menos umas vez vezes durante o jogo e vc pode que meio que imaginar que não era engraçada na primeira vez, não é nas outras nove que ficou...
Mas olhe para mim, falando sobre os fiapos de história quando eu nem falei sobre os controles do jogo ainda, onde estão meus modos? Spyro tem a habilidade usual das estrelas dos jogos de plataforma de se mover e pular, mas também possui algumas habilidades adicionais que o diferenciam de seu jogo de plataforma 3D padrão no departamento de jogabilidade. Ele pode incendiar a área diretamente à sua frente, dar uma investida ou planar após um salto.
Isso quer dizer que toda variação no combate que vc vai ter é que alguns inimigos, geralmente armadurados, são imunes às chamas. Outros inimigos, geralmente grandes, são imunes a investida. Eu sei que não parece algo realmente complexo ou profundo, mas... bem, não é mesmo. Os inimigos aqui são mais um obstaculo a real razão pela qual vc joga esse jogo do que ser a razão em si: a exploração.
Todo jogo é organizado não ao redor do combate, mas sim da exploração e o cenário de Spyro não tem a menor vergonha de mostrar plataformas altas repletas de coisas brilhantes para te fazer pensar "hmm, como eu chego lá?" - o que evoca bastante sensações do primeiro TOMB RAIDER (que é chocolatante, e não TOMB RAIDER 3: Adventures do Lara Croft, sua coisa horrorosa).
Só que enquanto Laurinha Cruz pode escalar para chegar aos lugares, nosso dragoneta roxo aqui tem a habilidade de planar - então chegar em lugares altos aparentemente inascessível usualmente envolve descobrir um lugar mais alto ainda e então macetar sua planação, embora nem sempre seja tão simples quanto a descrição pode fazer parecer.
Quer dizer, as vezes fica REALMENTE desafiador descobrir como chegar lá:
Me permita dar outro exemplo do que quero dizer: em uma fase do mundo Magic Crafters (o terceiro), vi algumas saliências que não consegui alcançar ao longo da fase. Encontrei várias áreas secretas com itens extras, mas nunca encontrei um caminho de volta para essas saliências. Voltei e examinei tudo cuidadosamente apenas para descobrir que, se planasse pelo lado de fora perto do início da fase, poderia chegar a uma daquelas saliências.
E então aquela saliência tinha um caminho para as outras saliências, plataformas laterais e áreas que eu nem fazia ideia e que envolviam as paredes e telhados de áreas anteriores que explorei. Descobrir essas coisas que estavam escondidas bem debaixo do seu nariz através do uso inteligente das técnicas que você aprendeu é a verdadeira graça do jogo.
Isso quer dizer que Spyro não é um jogo dificil se vc só quiser terminar ele. Se o seu objetivo é conseguir o numero minimo de dragões resgatados para abrir o ultimo mundo e derrotar o chefe, o jogo não fica muito no seu caminho - tanto que uma reclamação comum em reviews por aí é que o jogo é fácil. E é. Mas não é.
Isso pq o real desafio, a verdadeira graça do jogo como eu disse não é apenas terminar ele do jeito que der, e sim coletar tudo. Como nos grandes jogos de plataforma 3D, esse sim é o verdadeiro proposito do jogo e isso já não tem nada de facil realmente.
Outra coisa que ajuda bastante a diversão é que os cenários são bem variados, permitindo que os desenvolvedores brinquem com várias possibilidades de level design. Cada mundo é temático ao papel que um tipo de dragão tem naquele reino: a Casa dos Artesões, os Guardiões da Paz, os Tecelões de Sonhos, etc. O que é um world building até que bonitinho pra um jogo que não se foca muito na história, saiba você.
Pra não dizer que eu gosto de tudo TUDO nesse jogo, minha coisa menos favorita em Spyro the Dragon definitivamente são as fases de voo. As fases de vôo normalemnte estão escondidas em cada mundo e, como você pode imaginar, é o único momento em que o Spyro pode realmente voar. E por que é o meu menos favorito? É porque esses cursos são com tempo contado.
Existem 4 coisas que você precisa coletar nas fases de voo - o que, exatamente, muda a cada um e pode ser qualquer coisa, desde voar através de anéis até derrubar aviões com seu sopro de fogo. Às vezes é acender os faróis ou mergulhar sob arcos. E se vc quiser todas as joias para o nível, você não só precisa completar as 4 tarefas… mas também terminar tudo de uma tacada só. O problema é que com o tempo que vc tem, se vc errar em apenas uma coisa terá que começar de novo pq não tem tempo para se recuperar.
E vc VAI errar pq os controles de voo são... menos do que estelares, vamos dizer assim, e não por nada essa foi uma das coisas que eles mais mexeram quando fizeram o remake. No remake é dificil, mas fazível com alguma paciencia. No PS1... vai precisar de mais paciencia do que apenas "alguma", vamos colocar assim.
As fases de voo são lindas e a música é ótima... nao que você terá tempo para absorver nada disso... mas é um stresse que vc terá que passar para completar este jogo 120%, que como eu disse, é o verdadeiro ponto desse jogo - se não for jogar para colecionar tudo, esse jogo não é tão interessante assim.
Porém a boa noticia é que essas fases são poucas e meio que é até onde vai meu problema com o jogo. Voltando a falar dos aspectos positivos, uma coisa interessante é que a música foi composta por Steward Copeland (ex-baterista do The Police), e não apenas isso mas Copeland jogou as fases antes de criar a trilha sonora, e essa atenção aos detalhes realmente fica evidente no produto final, pq a música realmente se adapta ao cenário de fantasia. A dublagem também é de primeira qualidade - quer dizer, ela é ridicula, mas ela é INTENCIONALMENTE ridicula para ser divertida e não ridicula quando estava tentando ser dramática né whatimfightingfor do MEGA MAN X4?
Mas enfim, como dá pra ver a grande coisa do dragão espiroleta é que ele é essencialmente o sonho molhado da Sony para 1998: um jogo de Nintendo 64, rodando nas limitações do hardware do Playstation. E tão divertido quanto os jogos de plataforma 3D do Nintendo 64, trazendo para baixo da asa do PS1 o último bolsão de resistencia que o dominio do console da Sony não tocava. Com o Saturn já praticamente morto a esse ponto de 1998, aniquilar o monopolio da Nintendo sobre os bons jogos de plataforma 3D era tudo que restava entre o Playstation e a dominação mundial.
E essa é uma história que termina com um final feliz para todos os envolvidos. Mark Cerny, que havia defendido manter a Insomniac na folha de pagamento mesmo após o fracasso comercial de DISRUPTOR acabou se tornando chefe da divisão de games da Universal e estreitando laços cada vez mais com a Sony - eventualmente ele se tornou consultor da Sony para o desenvolvimento do hardware do PS2 e do PS3, e hoje é o arquiteto diretamente responsável pelo PS4 e PS5.
Junto com ele, quando Cerny foi migrando cada vez mais para dentro da Sony ele trouxe os dois estúdios que ele descobriu e apostou suas fichas quando trabalhava na Universal: a Naughty Dog e a Insomniac, que até o dia de hoje ainda são o braço direito e o esquerdo no desenvolvimento de jogos exclusivos para o Playstation.
The Last of Us Part 2, da Naughty Dog, e Marvel Spider-Man, da Insominiac, são dois dos quatro jogos (junto com God of War e Final Fantasy 7 Remake) que IMHO justificam a existencia do PS4
Então eu posso afirmar sem um único pingo de nostalgia (eu nunca tinha jogado esse jogo até agora) que Spyro é um jogo fantasticamente jogável mesmo hoje (tanto que nada do gameplay foi mudado para o remake, apenas os gráficos e alguma coisa dos controles foi melhorada), graças ao design level design que sempre mantem interessante coletar coisas e um mantem o foco de coletar viciante para levá-lo adiante. O fato de o título ainda ser lindo graças ao uso de cores e ainda possuir uma trilha sonora excelente é apenas a cereja do bolo, o que significa que esse jogo realmente merece todo o carinho com o qual é lembrado pelos fãs.
Definitivamente não havia mais nada agora entre o Playstation e a dominação do mundo. E agora como sai dessa, Miyamoto?