Este jogo não é apenas um jogo, é o fim de uma era inteira. E usualmente no mundo dos videogames, quando um genero, quando um console morre, usualmente é de forma lugubre e esquecível, uma nota de rodapé que ninguem mais lembra a respeito, só ver o glorioso e querido Super Nintendo cujos ultimos jogos nesse blog são coisinhas altamente pouco dignas de nota, tipo SPACE INVADERS e ARKANOID: Doh It Again.
Porém essa é a regra, e toda regra tem uma exceção. E essa é a história dessa exceção: como o jogo que sepultou definitivamente o genero point'n click é nada senão uma obra-prima. Hoje falaremos do Fandango Ominoso.
Porém, primeiro, é necessário contextualizar esse jogo: não se pode falar dos jogos de computador nos anos 90 sem falar dos point'n click, e não se pode falar dos point'n click sem os jogos desse genero da Lucas Arts, e se estamos falando de point'n click da Lucas Arts então estamos falando de Tim Schafer. Embora ele não oficialmente tenha criado o genero point'n click, com certeza foi ele que imortalizou o mesmo inserindo humor e nonsense em títulos que tornaram sinonimos do genero - estou falando de pedradas como THE SECRET OF MONKEY ISLAND e FULLTHROTTLE. Tim Schafer é, definitivamente, sinonimo de tudo de bom que PnC pode ser.
É importante entender isso pq Grim Fandango é o maior e mais ambicioso que Schafão da massa jamais produziu. E por mais ambicioso eu não estou falando levianamente: só pra ter uma ideia o jogo tem aproximadamente 12 horas de duração e dialogos se você souber o que está fazendo, a média de PnC é de tres ou quatro.
E não ache que essa duração é preenchida com encheção de linguiça, porque esse jogo tem o cenário mais ambiocioso e complexo criado pela mente de um homem muito criativo - e não subestime o quanto Tim pode ser criativo, acredite. O que rola aqui é que Grim Fandango se passa na Terra dos Mortos, onde as almas recentemente falecidas visam chegar à Terra do Descanso Eterno na Jornada de Quatro Anos da Alma.
Boas ações na vida te dão créditos de viagem para adiantar sua jornada de quatro anos, se vc foi um santo na sua vida então pode pegar um expresso e chegar na Terra do Descanso Eterno em quatro minutos, por exemplo. Algumas dessas almas que não fizeram boas ações o suficiente para comprar um atalho e tem que fazer sua jornada de quatro anos a pé acabam desanimando e ficando pela cidade dos mortos mesmo, tendo empregos e vivendo sua pós-vida ali mesmo.
Nosso herói, Manuel Calavera (ou "Many", para os intímos), é um desses caras que não foi tao grande pessoa em vida e está na sua jornada de quatro anos. Seu emprego é ser agente de viagens: assim que um recem chegado chega a Terra dos Mortos, ele é um dos agentes que tentam vender pacotes premium para levar o morto a Terra do Descanso Eterno.
E isso parece bastante "espera, o que?" isso é apenas o cenário básico, eu nem comecei a falar sobre o que acontece no jogo! Recontar a história de Grim Fandango de uma forma que faça sentido para o leitor levaria cerca de algumas páginas, e mesmo assim ainda não faria sentido, mas a ideia geral da coisa é que Manny Calavera terá a sua frente uma jornada para (a) afirmar o papel do indivíduo altruísta em um sistema sem alma (e sem corpo, no caso dos mortos) de procedimentos burocráticos e corrupção desenfreada e (b) encontrar o significado da morte por meio do sofrimento, trabalho duro, amizade, traição, vingança e apenas uma sutil, tênue, mas superimportante sugestão de romance.
Se há uma única ideia religiosa-filosófica crucial no universo que Schafer criou para esse jogo, não é uma particularmente nova: a crença pré-cristã de que a vida após a morte não é tão diferente da vida antes da morte. As divindades pagãs, afinal, foram modeladas a partir da sociedade humana por milhares de anos - em contos de fadas sobrenaturais chineses, a Burocracia Celestial é retratada em detalhes vívidos como sendo muito próxima da Corte Imperial, e tenho poucas razões para duvidar que os astecas, cujas crenças são o pilar de inspiração para o cenário de Grim Fandango, também retrataram a viagem do falecido por Mictlán, o Submundo, como tendo múltiplas semelhanças com a jornada de uma pessoa comum de sua aldeia natal para a corte do governante supremo.
A genialidade de Schafer foi pegar esses paralelos e integrá-los com as realidades burocráticas do mundo moderno, urbanizado e industrial. Hoje, isso não é novidade: tratar o pós-vida como uma empresa burocrática moderna repleta de normas e corrução, Soul (da Pixar) e The Good Place são bons exemplos disso, porém em 1998 isso era sem precedentes na grande midia.
A Terra dos Mortos de Schafer é essencialmente dividida em duas partes muito diferentes. Há a área "urbanizada", a cidade dos mortos, El Marrow e a cidade menor de Rubacava. Essas não são cidades quaisquer, entretanto, e sim especificamente são locais nos quais qualquer amante de filmes noir se sentirá bastante familiariazado. Sim, essencialmente GF é um jogo com temática noir - já entraremos em maiores detalhes sobre isso em breve.
A segunda parte da Terra dos Mortos são os vastos espaços entre e além dos centros urbanizados. Aqui, você encontrará coisas, entidades e perigos muito mais próximos dos realmente retratados nos mitos astecas - entidades que não foram "corporativadas", por assim dizer. Florestas com árvores de formatos estranhos, aranhas demoníacas, castores cuspidores de fogo, polvos gigantes e outras esquisitices encherão sua jornada e complicarão sua vida intrigante, mesmo que eu tenha um feeling de que Tim não se divertia tanto escrevendo essas partes do mundo quanto se divertia escrevendo as partes urbanas
E, no entanto, essas viagens são essenciais para o enredo — elas transformam Manny Calavera, o cara esperto da cidade, em um pouco de Ulisses, mostrando-o como ele realmente é: um pária, destinado a vagar pelo mundo (bem, submundo nesse caso) em busca de um lugar onde ele possa finalmente descansar a cabeça. É como se... bem, como se O Falcão Maltês e A Rainha Africana fossem o mesmo filme, ou Casablanca e Caçadores da Arca Perdida, se isso faz algum sentido pra você.
Nossa história é extremamente tipica de um filme noir, como eu já tinha mencionado antes: envolve uma mulher fatal desencadeando toda uma série de problemas. Os problemas, no caso, são que Manny cansa de só pegar clientes bosta que nunca tem créditos para comprar nenhum pacote de viagens e decide roubar uma cliente de um colega mais bem sucedido de quem ele tinha inveja.
Essa cliente é Mercedes Colamar, e pelo que Many descobre ela deveria ter créditos para um cruzeiro de luxo direto para o pós-vida - DEVERIA, porque por ter sido cliente dele ela acaba tendo que fazer a jornada a pé. Isso faz Manny ir atrás do que caralhos está acontecendo, e descobre um enorme esquema de corrupção na cidade dos mortos.
Agora Manny é o agente central de vários plots acontecendo: a corrupção na Cidade dos Mortos, o movimento de resistencia que o recruta como agente infiltrado e sua busca por Mercedes Colomar, a quem ele se sente responsável por ela ter que fazer a perigosa jornada pela Terra dos Mortos a pé.
Alias essa subtrama romântica é notável porque (assim como em Casablanca, uma das grandes inspirações para esse jogo) não há quase nenhum romance real — metade do jogo é gasto rastreando a potencial namorada de Manny, e a outra metade é gasta resolvendo seus problemas. Nós nem mesmo temos uma confirmação estrita de que eles viveram felizes para sempre: em resposta ao "Manny, quando chegarmos ao próximo mundo, vamos ficar juntos?" de Mercedes, este último só pode responder "Ninguém sabe o que vai acontecer no final da linha, então você pode muito bem aproveitar a viagem".
A própria Mercedes está extremamente longe do nosso ideal de uma personagem feminina forte — ela não só não tem quase nenhuma agência (na maioria das vezes, cabe a Manny tirá-la de uma enrascada ou outra), ela também é mostrada como não particularmente inteligente ou perceptiva; no entanto, como uma daquelas personagens femininas santas de um romance de Dostoiévski, sua importância é a de ser um farol moral brilhante para justificar a própria existência do protagonista.
A melhor coisa sobre Grim Fandango, no entanto, não é seu enredo ou qualquer personalidade particular de qualquer um de seus personagens em particular. A melhor coisa sobre este jogo é, de longe, seu diálogo: a magnum opus de Schafer se caracteriza por um diálogo tão completamente brilhante e tão inacreditavelmente consistente em seu brilhantismo que faz cada personagem ganhar vida mais invejável, de uma forma ou de outra. Se este jogo fosse um filme poderiamos estar falando do nível de Tarantino ou irmãos Coen. Aqui, talvez apenas um pouco simplificado para o bem dos consumidores (infelizmente, este é um videogame, afinal).
Sejam os mocinhos ou os bandidos, os personagens principais ou NPCs que aparecem brevemente, os intelectuais ou a plebe da Terra dos Mortos, todos eles têm muito a dizer e dizem de tais maneiras que, se eu apenas começasse, levaria horas para digitar todas as minhas citações favoritas. Resistirei à tentação e darei apenas um exemplo — das bocas de três esquerdistas neomarxistas amontoados em um canto do Blue Casket, o ponto de encontro favorito de Rubacava para os amantes do jazz moderno, poesia beat e visões progressistas. Esses caras têm uma implicancia em particular com nosso garoto Manny após ele se tornar o dono de um cassino local ("você cheira a bacon e opressão, cara! não há espaço para a burguesia em nossa revolução!"), e não mostram sinais de amolecimento, mesmo depois que Manny sobe ao palco e entrega sua própria peça improvisada de poesia beat:
Manny: Então, o que você achou do poema?
Revolucionário nº 1: Eu gostei. Era triste e bonito, como minha mãe.
Revolucionário nº 2: Eu o desprezei. Era muito curto e não me dizia nada, como meu pai.
Revolucionário nº 3: Eu não tinha sentimentos sobre ele. Era indiferente e se lambia demais, como meu gato, o Sr. Trotsky.
O melhor de tudo é que isso não é apenas "engraçado pelo bem de ser engraçado", como foi o caso de grande parte do diálogo em MANIAC MANSION: Day of Tentacle — um ótimo jogo por si só, mas que parece extremamente leve em comparação a Grim Fandango. A obra-prima de Schafer levanta todos os tipos de questões — moral, política, justiça social, ética de trabalho, discriminação, relação entre sexos, até mesmo a criação de filhos.
E a mudança de estilo de arte quando Manny vai a Terra dos Vivos buscar os recem falecidos é um toque genial |
E meio que aqui também está o problema: Grim Fandango exige um certo nível de educação para ser interesante da maneira como foi projetado para ser interessante. Se você não sabe quase nada sobre ideologia marxista e não reconhece a melodia básica de The Internationale; se o nome "Robert Frost" é tão estranho para você quanto "Bhumibol Adulyadej"; se você nunca viu Casablanca ou On The Waterfront; se você acha que "poesia beat" tem algo a ver com os Beatles — se você é tudo isso e muito mais, então Grim Fandango provavelmente não vai ser tão rico para você, e a maior parte da profundidade e do humor serão perdidos. E para evitar acusações de esnobismo, admito de bom grado que pelo menos parte disso provavelmente passou despercebido para mim também — pode haver toneladas de referências culturais no jogo que não consegui identificar)
De toda forma, meu ponto é que todos os jogos da LucasArts existentes, este é o mais intelectualmente carregado — e, consequentemente, pode ser um dos jogos mais intelectualmente carregados de todos os tempos, o que torna ainda mais irônico seu status como o do jogo que finalmente matou os point'n click, mas chegaremos a isso em breve.
Do ponto de vista mecanico... bem, é seguro dizer que os puzzles são a parte mais fraca do jogo. Em parte porque as outras são realmente acima da média - em especial os dialogos e o cenário - mas tambem pq aqui Tim Schafer e sua galerinha do barulho forçaram a amizade em vários momentos.
Esse toque do manual é o tipo de genialidade que esperamos de Timothy Schafer e sua galerinha do barulho |
Por exemplo, no início do jogo, para pegar um lote de ovos de pombo do telhado de um prédio, você tem que afugentar os pombos fazendo um barulho alto — que pode ser produzido estourando um balão inflado que você pode comprar de um vendedor ambulante com antecedência. Mas você não pode simplesmente estourar o balão sozinho; o que você tem que fazer é escondê-lo no fundo de uma bacia de água vazia espalhando algumas migalhas de pão sobre ele, e então os pombos se reúnem em todas as migalhas e inadvertidamente estouram o balão eles mesmos.
E se você pensar em "quem espalharia migalhas de pão em um balão" ou "apenas estourar o balão de qualquer jeito não teria o mesmo efeito?", então vc ainda não está entendendo o grau da lógica Schaferiana. E este é realmente um dos quebra-cabeças de duas etapas mais fáceis do jogo, daí pra frente é dedo no cu e gritaria. Pior, o jogo frequentemente faz você procurar por objetos dos quais você nem tem certeza se precisa: por exemplo, muita atenção é rapidamente atraída para o detector de metais de Carla, a segurança, mas mesmo depois de todo o trabalho para pegá-lo, você não tem certeza do motivo pelo qual fez isso.
Verdade seja dita, os puzzles não são TÃO aleatórios quanto SAM & MAX HIT THE ROAD, mas a sensação recorrente é que eles ficam no caminho do que vc realmente quer ver no jogo, pela real razão que vc está jogando isso. Que hoje Grim Fandango funcionaria melhor como uma série animada, disso eu duvido bem pouco.
De um ponto de vista puramente estético, os quebra-cabeças de Grim Fandango não são particularmente memoráveis ou engenhosos — não tem nada como "enviar um suéter de hamster 200 anos no futuro" ou "fazer George Washington cortar sua última cerejeira" de MANIAC MANSION: Day of Tentacle. De vez em quando você consegue uma risada de um puzle, como dar as abelhas operárias com dificuldades linguísticas uma cópia de Das Kapital, ou manipular sua própria roleta para que o Chefe de Polícia feche seu local como Claude Rains em Casablanca, mas mais frequentemente você tem que se contentar em pescar detectores de metal em areia de gato ou inventar combustível de foguete para Glottis ou algo ainda mais rotineiro. É bastante claro que com Grim Fandango, a história veio primeiro para Tim, e os desafios vieram em segundo — mas honestamente, eu não o culpo. Pode-se até argumentar que uma ótima história interativa e um ótimo conjunto de quebra-cabeças de aventura sempre tiveram dificuldade em dividir a mesma cama.
E esse é, possivelmente, o maior problema do jogo: enquanto as aventuras de Manny em El Marrow são mais o filme Brazil de Terry Gilliam e seus desafios em Rubacava são mais Casablanca, todo esse cenário riquissimo com personagens interessantes e dialogo estalando de qualidade... são segurados por puzzles que ficam no seu caminho. E em 1998 estava bastante claro que os jogadores meio que já estavam sem paciencia para esse tipo de shenanigagem.
Isso levou ao cenário em que Grim Fandango foi amplamente aclamado pela mídia e quem o jogou (inclusive ganhando o premio de Jogo do Ano da Gamespot - o mesmo ano que teve jogos de peso como THE LEGEND OF ZELDA: Ocarina of Time, METAL GEAR SOLID, RESIDENT EVIL 2 e Half-Life), mas as vendas foram tão decepcionantes para a Lucas Arts que eles chegaram a conclusão de que mesmo fazendo o melhor que dava pra fazer - e com certeza não tem como fazer muito melhor que isso - a era dos point'n click havia chego ao fim.
Esse desapontamento com o retorno comercial do jogo levou fez com que esse fosse o último point'n click escrito por Tim Schafer e o penultimo jogo do genero da Lucas Arts - ainda seria lançado uma continuação de CURSE OF MONKEY ISLAND em 2000, mas essa continuação da maior franquia de point'n click já estava em desenvolvimento a essa época. Então, Grim Fandango não foi o último point'n click já feito — nem foi o último jogo da LucasArts e não dá pra dizer que os point'n click "morreram" no século 21 tanto quanto o rock progressivo não "morreu" depois de 1975.
Mas ainda não é um acidente que Grim Fandango apareça com regularidade previsível em quase qualquer texto crítico ou histórico sobre o declínio dos point'n click e isso tem a ver não apenas com a cronologia de seu lançamento, mas com o fato de que o jogo em si tem um tom despedida longa e agridoce, tem uma certa sensação de series final mais do que qualquer outro jogo da LucasArts que eu já joguei.
Não sei se Tim Schafer viu um pouco de si mesmo em Manny Calavera, mas certamente vejo muitos desses designers e escritores de jogos idealistas e movidos por sonhos em Manny: caras honestos, nobres e trabalhadores que estavam nisso tudo principalmente pela arte, em vez de apenas pelo dinheiro, trabalhando para tornar o mundo um lugar mais interessante, inteligente e diverso, em vez de um lugar administrado por todos os tipos de Don Copals, Hector LeManses e Domino Hurleys. O final formalmente feliz do jogo, com Manny e seu amor acelerando em direção à suposta paz feliz, muda pouco — não sabemos nada sobre o Nono Submundo, mas sabemos algo sobre o mundo que os protagonistas deixam para trás, que é governado pela mesma ganância, corrupção e hipocrisia que vemos ao nosso redor na vida real; e sabemos quão pouca esperança há de torná-lo melhor, mesmo que você consiga uma vitória pontual de vez em quando.
A parte dos puzzles demonstra o esgotamento do genero em 1998, mas o cenário, os personagens, a inteligencia de Tim Schafer escrevendo garantem a Grim Fandango uma despedida com honras e fanfarras do genero point'n click. Terminado este jogo, a Lucas Arts e Tim Schafer apertaram as mãos sabendo que se Grim Fandango não havia sido um estrondo comercial, nada mais nesse genero o seria. E estava tudo bem, porque todas as coisas boas uma hora chegam ao fim.
E este, crianças, foi o fim da era dos point'n click. Um tremendo espetaculoso excepcionalmente dublado fim, mas não menos um fim por conta disso. Da parte de Grim Fandango entretanto, se não entrarmos nas discussões suas vendas e as frias realidades comerciais que cercam seu papel no legado de seu gênero, provavelmente ele merece mais ser lembrado por suas outros adjetivos. Você pode usa-los na forma de palavras como "clássico", "obra-prima" e, ah sim, "arte".
MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 135 (Janeiro de 1999)
MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
EDIÇÃO 059 (Fevereiro de 1999)