Mas não por causa de alguma profecia biblica, não porque Nostradamus disse, nem a NASA previu um asteroide com um timing absurdamente dramático, e sim por causa do Bug do Milênio. Ah, o bug do milênio. O grande bicho-papão digital do final dos anos 90. Dependendo de para quem você perguntasse, seria um pequeno contratempo ou o fim da civilização como a conhecíamos. Bancos quebrando, aviões caindo do céu, bombas nucleares disparando — basicamente O Exterminador do Futuro, mas causado por um bug de programação em vez da Skynet.
O problema central era surpreendentemente banal: por décadas, os sistemas de computador economizavam espaço de armazenamento escrevendo os anos com apenas dois dígitos. "81" significava 1981. "93" significava 1993. "99" significava 1999. Mas... e "00"? Bem, esse era o problema para uma máquina ler — era 1900 ou 2000? Computadores não entendem contexto.
Para um sistema de folha de pagamento, isso poderia significar que seu contracheque estava datado de um século antes. Para um sistema de controle de tráfego aéreo, isso poderia significar... bem, você não quer que seu software confunda "2000" com "1900" quando estiver em um 747 em pleno ar. Imagine que todo sistema de gerenciamento de alimento de uma grande distribuidora (e eu estou falando coisas nível a SEASA com MILHARES DE TONELADAS DE COMIDA) entendesse que tudo estava podre a mais de um século. Me tira uma ordem de serviço pra distribuição de uma coisa assim, quero ver. Agora imagine hospitais gerenciando inventário, sistemas de transito, sistema financeiro... dá pra imaginar o tamanho do problema?
[ENTÃO... TODA CIVILIZAÇÃO IA ACABAR A MEIA NOITE PORQUE OS PROGRAMADORES TINHAM SIDO PREGUIÇOSOS DE NÃO COLOCAR DOIS NUMEROS A MAIS NA CODIFICAÇÃO?]
Hmm, "preguiça" não é exatamente o problema aqui. A verdade é menos desleixada e muito mais pragmática. Das décadas de 50 até os anos 90, cada byte de armazenamento era precioso. Memória era cara. RAM era cara. Espaço em disco era caro. Até cartões perfurados tinham limites. Se você pudesse salvar dois dígitos em um campo de data, economizaria milhões, talvez bilhões em um sistema de escala global. Reduzir "1969" para "69" não era preguiça — era otimização. Empresas inteiras foram construídas extraindo cada gota dos kilobytes.
E por décadas, funcionou perfeitamente. Ninguém que escreveu COBOL em 1971 pensou: "E se alguém ainda estiver executando esse código daqui a trinta anos?", da mesma forma que hoje ninguém escreve um código pensando "e se eles ainda estiverem usando isso em 2060?". O ano 2000 era uma abstração distante, um cenário de ficção científica com carros voadores e empregadas domésticas robôs. Acreditar que alguém ia resolver isso estalando os dedos quando chegasse a hora não parecia muito forçado, quer dizer, capaz que a tecnologia não ia evoluir tanto em TRINTA ANOS.
Quando o final dos anos 90 deixou de parecer menos um episódio dos Jetsons na imaginação das pessoas e mais uma coisa que vc estava olhando no calendário, os programadores gelaram. Pouco surpreendentemente, nada mágico ou radical aconteceu nesses trinta anos, a tecnologia foi evoluindo em cima do que foi construído anteriormente e quando alguém parou pra prestar atenção, já era tarde demais pq literalmente o MUNDO INTEIRO havia sido construído em cima desse sistema de dois digitos. Era uma bomba-relógio enterrada nos alicerces da infraestrutura moderna.
Cada canto da vida moderna estava imerso em código escrito muito antes de alguém pensar que o ano 2000 era mais do que ficção científica. De repente, o mundo se deparou com a possibilidade de que a véspera de Ano Novo de 1999 não terminaria em fogos de artifício, mas em falhas em cascata nos sistemas.
O pânico foi generalizado. Empresas investiram bilhões em projetos de "Y2K Compliance". Legiões de programadores foram contratados (ou retirados da aposentadoria) para vasculhar códigos antigos em COBOL e Fortran como exterminadores digitais. Mas pior que isso, a mídia sentiu o cheiro de sangue na água e fez o que a imprensa faz de melhor: viu a oportunidade de faturar as pampas em cima do pânico. Especiais de notícias, capas de revistas, guias de sobrevivência. As lojas vendiam kits para o bug do milênio com comida enlatada e lanternas como se estivéssemos nos preparando para o apocalipse.
E então o fatídico dia 31/12/1999 chegou, a temível meia noite se aproximava como o sinal do fim dos tempos e... e... nada aconteceu. Bateu meia-noite, os relógios marcaram 1º de janeiro de 2000 e o mundo continuou girando. Claro, algumas pequenas falhas aconteceram — um sistema de passagens de ônibus na Austrália deu problema, algumas máquinas caça-níqueis em Delaware se recusaram a funcionar — mas o caos em massa nunca aconteceu. O que levou à narrativa de que todo a coisa do bug do milênio foi histeria exagerada.
Mas aqui está a coisa: a razão pela qual nada aconteceu é porque muito, muito, muito trabalho foi feito para evitá-lo. Aqueles bilhões não foram desperdiçados, eles resolveram o problema. O mundo evitou o desastre não porque o bug fosse inofensivo, mas porque programadores passaram anos em desespero remendando os buracos antes que ele afundasse o navio. É como rir dos bombeiros por apagarem o fogo de um prédio em chamas antes que ele desabe e dizer: "Viu? Nada estragou, muito barulho por nada."
Então, no fim das contas, o Y2K não foi o apocalipse — mas foi a primeira vez que o planeta inteiro prendeu a respiração por causa de um bug de software. Revelou o quão frágil era nossa brilhante infraestrutura digital, o quanto dela foi construída com fita adesiva e pensamento de curto prazo. E, à sua maneira estranha, foi uma prévia do século XXI: um lembrete de que a menor linha de código poderia manter o mundo inteiro refém.
E, como você pode esperar a esse ponto, alguém (além dos jornalistas) tinha que capitalizar em cima de tudo isso. Entra a Runecraft (mundialmente famosa por... hã... Barbie Race Ride?) e lança seu point-and-click presciente, Y2K: The Game.
Provando que sutileza é para comedores de quiche, a arte da caixa consiste inteiramente em avisos terríveis de Bill Clinton, The Sunday Times e etc, mas nenhuma informação sobre o jogo em si. Na verdade, toda vibe da embalagem dá a impressão de que se trata de um survival horror um tanto sério, não tem nenhuma indicação do quanta tolice isso tudo realmente é.
Nosso herói aqui é o nerdola Buster, basicamente o tio do LESTER THE UNLIKELY, que ganhou na loteria, yay! Com o dinheiro do prêmio, ele gastou sua fortuna conseguindo uma namorada atraente (palavras do manual do jogo, não minhas) e comprando uma mansão antiga que ele equipou com o estado da arte da alta tecnologia porque ele é um nerdola, afinal. Cada cômodo foi decorado com câmeras e engenhocas, enquanto droides passam o tempo limpando e arrumando as coisas, tudo controlado por uma IA meio cuzona, como é de praxe na ficção.
Então chega a meia noite do ano novo do ano 2000, Buster enche o rabo de goró até desmaiar deixando Candise, sua cara-metade adquirida a alto custo, sozinha na mansão. Quando Buster acorda, o bug do milênio fez sua IA se tornar maligna do mal que odeia o bem, prendendo sua cocotinha na masmorra da mansão e tornando a vida de todos mais miserável.
... até a segunda página. Não espere exatamente um caos nível GREMLINS 2, é mais alguns utensílio domésticos trancando o seu caminho e vc precisa resolver alguns puzzles para lidar com isso. Apesar de escalar o inigualável Dan Castellaneta (também conhecido como dublador do Homer Simpson) para o papel principal, o jogo não faz muita coisa realmente engraçada com ele. Qualquer tentativa de comédia é artificial e bem previsivel.
Apesar do protagonista insosso e com um senso de moda questionável, verdade que os gráficos fazem um bom trabalho em representar o cenário. As áreas podem ser roladas em 360° segurando o botão direito do mouse, o que funciona mais suavemente do que na maioria dos point'n click da época - inclusive se você manter pressionado o botão direito do mouse, isso te permite ter mais controle sobre para onde está olhando. Gostaria que mais jogos da época tivessem seguido esse caminho.
Embora não seja um jogo particularmente dificil (especialmente para os padrões dos point'n click), falta muito polimento no design geral do jogo. Tem vários momentos, por exemplo, que seriam perfeitas para um puzzle de lógica para ser resolvido, mas que são resolvidas com um clique do mouse. Isso significa que todos os puzzles são sobre usar itens do inventário, o que tira aquela quebrada de ritmo do jogo. Pior ainda, o feedback é praticamente inexistente. Você clica em algo, nada acontece e fica se perguntando se fez errado ou se os desenvolvedores simplesmente esqueceram de programar uma resposta. Salas inteiras estão cheias de objetos interativos que não oferecem nenhuma piada, nenhuma história, nenhuma dica — nada. Parece muito o beta de um jogo que não estava terminado.
Então, quando os créditos rolam — depois de, no máximo, duas horas de jogo mesmo sem consultar um detonado — você fica se perguntando qual era o sentido de tudo aquilo. Além da cena de abertura na véspera de Ano Novo, não há nenhuma razão real para que este jogo seja sobre o bug do milênio. É apenas um gancho de marketing superficial aplicado a um produto medíocre. E, considerando o quão apressado e malfeito o resultado final parece, parece ainda mais um shovelware feito para surfar na modinha do momento.
E, assim como o próprio bug do milênio, Y2K: The Game foi esquecido quase instantaneamente. Seu único legado real é servir como uma cápsula do tempo cultural — uma lembrança daquele momento bizarro em que as pessoas realmente pensaram que o mundo poderia entrar em colapso por causa de algumas linhas de código mal colocada. Se ao menos os potenciais apocalipses de hoje fossem tão fáceis de consertar com um hotfix...
MATÉRIA NA GAMERSEDIÇÃO 060 (Abril de 2000 - Semana 2)