É tarde da noite. Lá fora, faz um vento confortável, a vigilância cuida do normal. Em uma sala iluminada apenas pela estática de uma televisão de tubo, um rosto aparece. Olhos arregalados, segurando um controle com tanta força que o plástico range.
—De jeito nenhum! Eu me recuso! Você me ouviu? O contrato é nulo! Eu sou um cidadão, não um prisioneiro! Jorge, diga a eles! DIGA A ELES QUE EU TENHO DIREITOS!
[ESSA É A REVIEW DE UM JOGO DE 25 ANOS ATRÁS, VOCÊ ABRIU MÃO DOS SEUS DIREITOS AO ESCOLHER FAZER ISSO. MAS TÁ, O QUE FOI QUE ACONTECEU DESSA VEZ?]
O rosto de homem se contorce em uma expressão mista de insanidade e curiosidade, como se estivesse vendo o pequeno Shy Guy imaginario pela primeira vez em sua vida. Ele respira fundo, passa a mão pelos cabelos desgranhados com zero resultados no longo prazo, expira mais profundamente ainda, e então solta um urro de dor que apenas uma alma dilacerada pode compreender:
—O QUE FOI DESSA VEZ? Eu vou te contar o que foi dessa vez! Esta... esta cidade! Esta Alcatraz digital! Ela não me deixa ir! Eu procurei em todos os lugares! O mapa é uma mentira! As pessoas são mentirosas! Todo mundo só diz ‘as minas estão fechadas’ como se fosse eu estivesse preso na novela do fodendo STEPHEN PICAMOLE KING! Foi isso que aconteceu, Jorge!
[ACHO QUE VC ESTA EXAGERANDO UM POUCO, NÃO PODE SER TÃO RUI...]
—STEPHEN PICAMOLE KING, JORGE! PICAMOLEEEEEEEEEEEEEE!!!11!!1ONZE CÊ TÁ ME ENTENDEEN— —
Sim, esse aí sou eu.Você deve estar se perguntando como eu vim parar nessa situação. Bem, tudo começou quando eu decidi fazer a review de um joguinho de Playstation 2 chamado "Summoner"...
Mas para entender como eu cheguei nessa... não tão digna situação, coloquemos assim... suponho que eu preciso explicar quem foi a Deep Silver Volition, empresa que em 2022 foi absorvida pela Gearbox Software e em 2023 suas IPs foram compradas pela Embracer Group, como metade da industria dos videogames hoje já foi engolida por essa holding sueca — mas isso é discussão para outro dia. O que importa agora é a Volition e a forma pouco convencional que eles pensavam.
Quando jogos de tiro totalmente 3D se tornaram tecnicamente possíveis, a Volition foi a primeira a imaginar o que seria possível fazer diferente de Doom (algo que nem a própria ID Software ousou fazer em primeiro momento, dado que QUAKE é essencialmente Doom só que em 3D) e foi assim que nasceu Descent veio a existi. Agora, enquanto eu tenho vários apartes a fazer a respeito do que DESCENT efetivamente entrega, o meu ponto é sobre fazer o melhor da situação.
Ou então a coisa pela qual a Volition é mais conhecida: quando o mundo foi absurdamente dominado pelos jogos de mundo aberto 3D de GTA (e ainda é, diga-se de passagem), a Volition foi uma das poucas a ter sucesso em fazer do limão uma limonada e dizer "oh, vocês gostam desses joguinhos de mundo aberto em que dá pra avacalhar com tudo, né? Então a gente vai dar um pra vocês só que MAIS estúpido, MAIS absurdo, MAIS avacalhavel!" e assim nasceu sua famosa franquia puladora de tubarões por excelência, Saints Row.
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| Apenas uma arma melee comum em Saint's Row | 
Então, é, a coisa da Volition era pensar fora da caixa, tentar fazer algo que ninguém tinha feito ainda mesmo que seus resultados práticos fossem questionáveis. E é exatamente isso que Summoner é: a Volition viu que cRPGs como DIABLO ou Baldur's Gate faziam extremo sucesso no PC e pensou "hã, acho que o PS2 aguenta esses joguinhos de boas e se a gente fisgar apenas uma fração dos nerdões que jogam isso no PC tamo rico". O conceito é comercialmente visionário, mas como frequentemente acontece com a volition, a execução...
—STEPHEN PICAMOLE KING, JORGE! PICAMOLEEEEEEEEEEEEEE!!!11!!1ONZE CÊ TÁ ME ENTENDEEN— —
O jogo funciona como você esperaria que um cRPG funciona: quando você clica em alguma coisa, o seu boneco auto-ataca até que o inimigo morra, ou você morra (mas vamos tentar evitar isso), você dê outro comando ou o espaço-tempo colapse em uma bola de entropia. O que vier primeiro. Com a diferença é que como esse é um jogo de PS2 e não PC, vc não tem mouse e ao invés disso quando você aperta X o jogo pausa e deixa você selecionar os objetos selecionáveis mais próximos para interagir. E quer saber? A Volition achou uma solução surpreendentemente elegante para a ausência do mouse, apertar X e deixar você selecionar o que é interagível ao seu redor (incluindo crânios inimigos a serem devidamente macetados).
Adicione a isso todos shenanigans que vc poderia esperar de um cRPG: magias, equipamentos, uma party gerenciavel, nada inovador para um jogo de PC, mas uma adaptação completamente sem precedentes para consoles domésticos. Não é realmente exagero dizer que a Volition foi a que mais perto chegou até então de fazer você jogar Fallout ou Baldur's Gate com um joystick na mão, e sobre isso eu os saúdo!
Todos comigo até aqui? Provavelmente não, mas prossigamos. Então agora você tem uma ideia geral de COMO você joga Summoner, a próxima questão é O QUE exatamente você faz aqui... e é aqui que... meua migo...
... okay, para fazer meu ponto aqui ser entendido eu preciso falar sobre game design. Sabe, uma reclamação muito frequente dos gamers hoje em dia é que os jogos seguram a sua mão, você recebe uma quest e imediatamente aparece uma seta brilhante e em neon capaz de induzir epilepsia até em um Pikachu mostrando pra que lado vc tem que ir.
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| Não importa o que você faça ou para onde você vire, tal qual o Pai do Chris, o marcador estará lá. | 
Então deixa eu propor um pequeno experimento: eu te dou um martelo e digo que sua missão é entregar ele pro meu primo Osvaldo, que mora em algum lugar da cidade. O que você faz? Coloca o martelo na mochila e decide coletar informações antes de sair como um maluco por ai, pq vc é esperto. Só que há um porém: meus diálogos são limitados. O que eu disse é tudo o que você terá. Não adianta me perguntar onde ele mora, em que trabalha, como identificá-lo ou qualquer outra pista básica. O jogo não deixa.
Na cidade, a coisa não melhora. Ao contrário da vida real, ou de um RPG de mesa com um mestre humano, você não pode encostar um NPC na parede e exigir respostas, ameaçar a coleção de hamsters empalhados dele em troca de respostas ou tentar algo insano como, você sabe, apenas perguntar educadamente. Vc não tem essa opção do jogo de cintura pra trabalhar.
Sua única opção realista é bater de porta em porta, torcendo para que um dos habitantes seja o tal Osvaldo. É entediante, é ineficiente, é frustrante. Mas é o único caminho que o jogo te dá. E aí sinceramente te pergunto:
Veja, essa é a questão: as coisas não são feitas hoje de um jeito diferente porque um conselho secreto de overlords do mal decidiu se reunir numa sala escura, esfregando as mãos e rindo enquanto retorciam seus bigodes, pensando em como poderiam te sacanear. Não. As decisões de design não são tomadas because evil, e sim porque estamos lidando com a evolução natural de uma mídia que já está nessa brincadeira há quase 50 anos.
E antes que você comece a espumar pela boca e me acusar de ser nutelinha, de que “ahhh, hoje tudo sucks e antigamente tudo era bom, raiz, de verdade”, me permita deixar uma coisa bem clara: não apenas eu estava lá desde o comecinho, como neste projeto de blog eu literalmente rejoguei tudo o que foi publicado nas revistas ao longo de toda a década de 90. Isso significa que eu encarei essa filosofia de design tanto quando criança — sem a menor noção crítica, apenas com a fome de jogar o que aparecesse — quanto agora, como adulto, analisando friamente. E sabe o que eu descobri? Era ruim na época. E ficou ainda pior quando revisitamos sabendo para o que estamos olhando.
Então, sim, por incrível que pareça, as coisas são feitas hoje do jeito que são feitas por uma razão. E não é qualquer razão: é uma boa razão. Porque, convenhamos, jogos como Summoner e tantos outros da sua época eram uma experiência absolutamente miserável. Eu entendo, claro, que o game design de lá seguia uma lógica diferente porque era uma época diferente. Jogos eram caros. Opções de entretenimento, quase nulas. Então um jogo tinha que durar o máximo possível, porque sabe-se lá quando você teria outro. E mesmo que fosse chato, repetitivo ou punitivo, dane-se — não é como se você tivesse qualquer coisa melhor pra fazer numa tarde de domingo de 1999 (além da banheira do Gugu, mas isso era diversão para adolescente médio por aproximadamente 45 segundos if you know what i mean).
Hoje o cenário é outro. A acessibilidade a jogos nunca foi tão grande. Você tem acesso a literalmente milhares de títulos de ótima qualidade, se não de graça, por preços ridiculamente baixos. E não só isso: as opções de entretenimento explodiram a ponto de virarem um problema. Nossa atenção, hoje, é disputada a tapas. A cada cinco segundos somos bombardeados por alguma nova notificação, vídeo, reels, shorts, meme, estímulo dopaminante. É o equivalente moderno de tentar jogar enquanto alguém fica cutucando seu ombro sem parar.
E é nesse ponto que o design atual se ancora: os jovens de hoje não vão dar atenção a nada que não os entretenha imediatamente. Se o jogo parar por 27 segundos para enrolar, já era, a pessoa pula pra outra coisa. Eu entendo esse dilema. Mas, como alguém que viveu os dois mundos, posso te garantir: o jeito que era feito antigamente não era mais “autêntico”, não era mais “difícil de verdade”. Era apenas trabalhoso. Era exaustivo. Era como ter um segundo emprego não-remunerado. Não era diversão. Era Summoner.
E não foi “o tempo que matou Summoner” — foi Summoner que já nasceu velho, agarrado a um jeito de pensar videogame que não era só ultrapassado, era chato. Tanto que, se você olhar para as grandes desenvolvedoras de verdade da época — Nintendo, Capcom, Konami — nenhuma delas seguia essa cartilha. Elas já estavam anos-luz à frente, criando experiências que eram difíceis, sim, mas divertidas; longas, sim, mas recompensadoras; desafiadoras, mas nunca essa sensação de estar preso num trabalho de segunda categoria.
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| O pior é que eu gosto do combate de cRPG e esse jogo faz realmente uma boa adaptação dele para console, então ao menos o combate é divertido, não posso tirar isso do jogo | 
Summoner, por outro lado, é a definição do design datado: alongar artificialmente a duração, inflar estatísticas, fazer você repetir a mesma ação sem propósito cinquenta vezes e chamar isso de “conteúdo”. É aquele pensamento de que o jogador não tem nada melhor pra fazer, então qualquer tempo que ele gaste apanhando do sistema é válido. Só que, adivinha? Já em 2000 isso era antiquado. Já existiam padrões melhores. O contraste entre o que empresas de ponta ofereciam e o que Summoner entrega só escancara que o problema não é “mudança de gerações”: é um jogo que já nasceu cansado.
Por isso, quando o jogo literalmente te atira na cidade e diz: “Encontre o fulano, e é isso”, para te dar 100 EXP (enquanto um combate com um mob aleatório dá uns 30), isso não é conteúdo. Isso não é “raíz”. Isso é puro filler. E este jogo não é nada além do mais puro suco de espremer o seu tempo: cidades enormes, quase nenhuma informação sobre o que fazer, e a promessa velada de “nos vemos daqui a 30 horas”. Isso não é diversão.
E não ajuda nada que os mapas — pelos quais você fica batendo de porta em porta para encontrar NPCs ou itens de quest — sejam completamente mal desenhados. Na verdade, são alguns dos piores mapas que já vi em todos esses anos de indústria, porque Summoner não acredita em saídas. Acredita em becos que parecem portas. Acredita em escadas que levam a telhados sem saída. Acredita em um mundo onde cada mapa oferece uma saída falsa que te leva de volta a um lugar onde você já esteve, só para zombar de você.
[MAS O JOGO NÃO TEM UM MAPA? OU MESMO UM MINIMAPA?]
Existe um mapa. Um pergaminho desenhado à mão, estilizado, totalmente inútil, que mostra a forma teórica da cidade, mas não fornece nenhuma informação sobre como os distritos se conectam. É menos uma ferramenta e mais uma obra de arte abstrata intitulada “A Impressão Artística da Confusão Sobre Óleo”.
Eu até consultei a internet, Jorge. Sabe o que encontrei? Postagens de fórum de 2002. Um cara chamado “ShadowMage47” fazendo a mesma pergunta: “Como saio de Lenele?” A única resposta: “rsrsrs eu também”. Um mistério não resolvido de vinte e cinco anos!
[TALVEZ VC NÃO TENHA FALADO COM UM NPC IMPORTANTE, OU COLETADO UM ITEM QUE TRIGGA ALGUM EVENTO?]
FALEI COM TODO MUNDO! O ferreiro só resmunga sobre o ataque. As velhas resmungam sobre as minas. AS MINAS ESTÃO FECHADAS, JORGE! Isso não ajuda! Segui a Flece, mas ela só vagueia entre os mesmos dois prédios, presa em seu próprio inferno pessoal — um purgatório de NPCs que eu agora estava condenado a compartilhar!
Três horas, Jorge. Três horas da minha vida adulta gastas correndo entre as mesmas praças, os mesmos becos sem saída, trocando mapas que me levavam a bairros onde eu já estive. E o único lugar que realmente alcançavam era lentamente para a loucura. Isso não é um pico de dificuldade. Não é um puzzle complexo. É uma falha fundamental de design ambiental: uma cidade tão mal desenhada que se torna um soft-lock.
Comecei a duvidar da realidade. Haveria um switch secreto? Uma chave esquecida? Precisava examinar um vaso específico? Pela elasticidade do JoyBoy, era só a porcaria de um mapa! É um mapa, e eu sei ler mapas em jogos! Porra, consigo andar por Undercity no WoW sem sequer abrir o mapa — a mesma cidade que virou meme de quantos jogadores ficam perdidos lá para sempre!
Era só sair da cidade. Mas tudo que eu tinha eram as mesmas vendedoras dizendo que as minas estavam fechadas! AS MINAS ESTAVAM FECHADAS, JORGE! AS MINAS ESTAVAM FECHADAS!
De jeito nenhum! Eu me recuso! Você me ouviu? O contrato é nulo! Eu sou um cidadão, não um prisioneiro! Jorge, diga a eles! DIGA A ELES QUE EU TENHO DIREITOS!
… e essa, meus caros, é a história de como a cidade de Lenele, em Summoner para PlayStation 2, me destruiu.
Você entra nesta cidade por sua conta e risco, porque ela leva ao Futuro. Não a um futuro que será, mas a um que costumava ser. Este não é um novo mundo; é uma extensão do que costumava ser. Ele se modelou a partir de cada developer que já plantou a pegada de uma bota na história desde o início dos tempos. Tem refinamentos, avanços tecnológicos e uma abordagem sofisticada para a destruição da liberdade humana. Mas, como cada jogo de 6th geração que o precedeu, tem uma regra de ferro: a Lógica é inimiga e a Verdade é uma ameaça.
Qualquer jogo, entidade ou ideologia que não reconheça o valor, a dignidade, os direitos do homem, este jogo é obsoleto. Um caso a ser arquivado sob os arquivos dos terríveis jogos… em uma Zona Além da Imaginação.
MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 161 (Março de 2001)
EDIÇÃO 062 (Abril de 2000 - Semana 4)







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