Como disse uma altamente questionável adaptação cinematográfica do melhor livro de todos os tempos, "um começo é um momento muito delicado". E é verdade — novos começos têm um charme inebriante: um novo emprego, um novo relacionamento, uma nova cidade. Um novo videogame. Aquele momento mágico em que tudo parece possível, e você está tão ocupado se maravilhando com as possibilidades para notar o chão sob seus pés. Mas esta não é uma história sobre começos. Esta é uma história sobre o que vem depois. Sobre as terças-feiras. Os dias comuns e sem glamour em que o brilho se apaga e a vida se acomoda em sua rotina.
Em março de 2000, o PlayStation 2 tinha acabado de ser lançado. Havia uma febre no ar — uma espécie de curiosidade coletiva sobre o futuro. Todo mundo e a mãe de todo mundo queriam saber o que a nova máquina brilhante da Sony poderia fazer. Os títulos de lançamento eram o playground onde sonhos e tecnologia colidiam, cada um um pequeno cartão-postal do amanhã.
Mas eventualmente essa lua de mel acaba e chegamos à terça-feira da nova geração. O ponto em que os fogos de artifício do lançamento já passaram e o console se acomodou em sua rotina diária. E para o PS2, um desses primeiros jogos "cotidianos" que vamos cobrir nesse blog será Dark Cloud. Não um espetáculo que chamasse a atenção com capas de revistas, mas o feijão com arroz que viria a compor 90% da biblioteca do (até hoje, pelo menos) console mais vendido de todos os tempos.
Verdade seja dita, entretanto, Dark Cloud não é uma curiosidade aleatória de um estúdio de fundo de quintal — é, na verdade, o título de estreia de uma desenvolvedora que se tornaria um dos nomes mais respeitados da indústria: a Level-5. E é impossível falar da Level-5 sem imaginar imediatamente sua direção de arte inconfundível. Seja pelo charme europeu de contos de fadas da série Professor Layton, ou pelo mais próximo que provavelmente chegaremos de um filme jogável do Studio Ghibli com Ni no Kuni, sua identidade visual é sempre um ponto forte. Mesmo em seus primórdios no PS2, ainda uma equipe modesta encontrando sua voz, eles impressionaram o mundo com joias em cel-shading como Dragon Quest VIII e Rogue Galaxy.
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Dragon Quest 8, PS2 (2004) |
... caham... dizia eu que sim — quando você ouve "Level-5", espera um design de arte deslumbrante e memorável. E no caso de Dark Cloud... ia continuar esperando. Porque se tem uma coisa que Dark Cloud não é, é visualmente inesquecível. Ele tem os gráficos de um jogo comum de PS2. Roda como um jogo comum de PS2. E... é isso. Definitivamente um dos jogos já feitos.
Agora, eu não quero ser completamente injusto porque tem sim dois detalhes visuais que eu realmente chamam atenção aqui. Primeiro, é o rosto do personagem principal: ele parece sempre chocado, como se cada linha de diálogo — não importa o quão mundana — fosse a coisa mais transformadora que ele já ouviu na vida desde que descobriu que Mr. Bean tem apenas 15 episódios. Não é bem uma reação facial especifica, mas sim como seu "rosto padrão" normalmente parece e eu nunca me canso de achar isso engraçado. O que eu posso dizer, eu não sou uma pessoa complicada de agradar.
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Reação do nosso herói ao receber um tutorial do jogo... |
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... ou ver um gato |
Segundo... Preciso dar o crédito a quem merece: a coreografia de dança na introdução. Aqueles cultistas têm o gingado, e o trabalho de animação é facilmente o momento mais "Sexta Geração" de todo o jogo — quando você olha, não tem como não pensar que um PS1 jamais conseguiria fazer algo tão suave rodar com a engine do jogo em tempo real.
A história aqui é simples: tem um vilão maligno do mal que odeia o bem. Seu grande plano é ressuscitar um djinn antigo e malévolo porque obviamente isso não soa como algo que totalmente vai sair pela culatra. Uma curiosidade é que nos contos originais do Oriente Médio, os djinns não têm um limite de "três desejos" — isso é uma invenção ocidental posterior. E assim, após uns passinhos muito nervosos, nosso vilão maligno invoca o djinn e não perde tempo. Seu primeiro desejo não é dinheiro infinito, nem um harém de concubinas, nem mesmo dobrar o tamanho do seu bilongondão — que são os desejos mais óbvios que qualquer cidadão de bem pensaria de imediato. Não, seu desejo ardente é varrer do mapa alguma vila remota aleatória. Por quê? Porque ele é maligno e odeia qualquer coisa que remotamente se assemelhe à alegria.
Agora, essa é a má notícia. A "boa" notícia é que os poderes da luz decidem intervir para manter as coisas equilibradas. E por "intervir", quero dizer não parar o djinn de forma alguma — porque assim não teríamos um jogo —, mas sim selar tudo na vila em Pokébolas mágicas no último momento antes da destruição e espalhá-las pela terra. Sua casa? Pokébola. Tia Emengarda? Pokébola. O Tudo por R$ 1,99 que vende coçadores de cabeça para cachorro? Pokébola. Tudo cuidadosamente guardado em masmorras infestadas de monstros por... motivos.
Então, a missão do nosso herói é literalmente reconstruir sua vila explorando masmorras, recuperando essas Pokébolas mágicas e restaurando cada pedaço da cidade aos poucos. Depois disso, ele segue para outros cinco locais para repetir exatamente o mesmo processo — porque as forças do bem neste universo são aparentemente alérgicas à criatividade e só têm uma solução para salvar tudo que o djinn quer destruir.
Embora Dark Cloud não seja exatamente ABSOLUTE CINEMA, o enredo importa porque é basicamente o seu loop de gameplay. Você mergulha em uma dungeon, andar após andar, recuperando as "Pokébolas mágicas salva-vidas" que salvaram pessoas e prédios de serem completamente destruídos pelo gênio maligno (o jogo as chama de "Atla" ou "Atlamillias", mas meu nome é melhor). Depois de capturar um ou dois Atla, você pode sair da masmorra e colocá-los no modo "Diorama" — pense nele como a versão ano 2000 de ACTRAISER. E o que vc ganha fazendo isso? Duas coisas.
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Ao entrar em um andar da dungeon que vc já visitou, o jogo informa quantos Atlas faltam pegar nesse andar, o que é uma cortesia bacana. |
Primeiro, você desbloqueia os serviços básicos da cidade que todo herói explorador de masmorras precisa: blacksmith para conserto de armas, vendedores de comida e água, revendedores de acessórios — você sabe, a infraestrutura essencial para qualquer aventureiro que se preze. Nada disso simplesmente existe; você precisa tirá-lo da masmorra e colocá-lo de volta no mundo como uma espécie de planejador urbano mágico.
Segundo, mesmo que seu progresso na masmorra seja bastante linear — cerca de 17 andares mais um chefe — você ocasionalmente encontrará um pequeno obstáculo que exige uma sidequest. Por exemplo, a entrada para a chefe da Masmorra 3 é uma caixa de música e para abri-la você precisa de uma chave mágica obtida através de fazer serviços para um conjunto bem específico de moradores da cidade. Vc precisa desbloquear o chefe da máfia local, a cartomante local e de um lojista em particular. Aparentemente, neste mundo, a chave para derrotar o mal é... networking urbano.
Então, vamos resumir o que temos até agora: Dark Cloud é um dungeon crawler bem básico que também te permite construir uma cidade ao redor dele. Interessante no papel, claro — mas, no fim do dia o que determina se um dungeon crawler é bom... bem, você sabe... o quão bom o dungeon crawling realmente é.
[ANÁLISE DE JOGOS NÃO É UMA ARTE TÃO COMPLICADA, NÉ?]
Às vezes não é, Jorge. Às vezes não é. De qualquer forma, antes de entrarmos na mecânica, eu preciso abordar algo que vi em algumas reviews e me incomodou bastante: as pessoas chamando este jogo de cópia de Zelda. E a isso eu só tenho a dizer... mano. Ou quem escreveu isso nunca jogou esse jogo, ou tem lembrança beeeem vaga do que Zelda realmente é. A estrutura, a jogabilidade, o conjunto de movimentos e o design das dungeons de Dark Cloud não se parecem em nada com Zelda. E não é só um canalzinho aleatório do YouTube tentando desesperadamente angariar views com um clickbait tipo "O Zelda do PS2 que você nunca conheceu". Isso veio direto da revista Next Generation, a publicação de games daquela época que eu mais confio e me identifico com as opiniões (tanto que cito regularmente nestas reviews).
Vamo lá pessoal, eu sei que as vezes o dia tá dificíl no escritório, mas pelo menos joguem o jogo antes de fazer comparações baseadas apenas no fato de que a arte da capa está tentando desesperadamente se passar pelo Link. Certo, agora que isso já foi dito, vamos falar sobre o jogo em si.
Então, primeiro — em sua essência, Dark Cloud é um RPG de ação hack 'n' slash bem simples. Você hackeia, você slasheia, e em troca recebe novos números para os seus stats... bem, tecnicamente, suas armas que recebem as melhorias, não você. Ainda sim, básico mas perfeitamente funcional.
O jogo roda bem: a hit detection é decente, a mira trava nos inimigos gostosinho, o mapa fornece todas as informações necessárias, os controles respondem bem e — olha só — a câmera não é um problema. Vocês não tem ideia da alegria que me traz dizer isso sobre um jogo da primeira leva do PS2. Depois de tudo que eu sofri com as câmeras da 5ª geração, ver um jogo tão do comecinho do PS2 não ter problemas com isso parece um milagre. As coisas que damos como garantidas hoje em dia, eu te digo.
De qualquer forma, a jogabilidade é simples. Talvez simples demais, mas esse é o charme dos dungeon crawlers: eles são sobre desligar o cérebro e entrar em um ritmo confortável e familiar. Ninguém joga um dungeon crawler para fazer grandes perguntas sobre a vida ou para desafiar os limites do game design. Você joga para poder fazer a mesma tarefa repetitiva por horas enquanto seu cérebro se recupera silenciosamente de qualquer tormento lovecraftiano e indizível que o aguarda no mundo exterior fora do seu quarto.
[CÊ TÁ BEM, CARA?]
Radiante, Jorge. Sempre estive, sempre estarei. De qualquer forma, a simplicidade em si não é o problema aqui. Como eu disse, é exatamente isso que o jogo busca e isso ele consegue. Meu problema começa quando Dark Cloud tenta ser mais, é aí que vai o boi com as corda e tudo.
Dark Cloud tenta se diferenciar nos oferecendo possivelmente o explorador de masmorras mais sedento que já existiu em um videogame. No momento em que você entra em uma masmorra, um pequeno medidor de água começa a diminuir. Fique sem água e você começa a sofrer dano.
[VOCÊ NÃO PODE SIMPLESMENTE COMPRAR ÁGUA E LEVAR COM VOCÊ?]
Sim, Jorge. Você pode... depois de encontrar o Atla da loja de água, coletar todas as suas peças e colocá-lo no seu diorama. Então — e somente então — você pode estocar. Mas aqui está o problema: o Atla da loja também é gerado aleatoriamente. O jogo pode simplesmente dar de ombros e decidir: "É, você não vai conseguir isso nesta run". Que pena ser você. Ou eu, neste caso.
E a mesma lógica se aplica à durabilidade da arma. Cada golpe diminui a resistência da sua arma e, quando chega a zero, a arma se quebra e está perdida para sempre. Só que não é apenas a arma que você perde, você também perde todo o seu progresso porque é a arma que sobe de nível em Dark Cloud, não o seu personagem. Então, perdê-la significa que você está basicamente recomeçando do zero. Então, sim, voltamos à situação da água: você precisa que o Atla do ferreiro apareça para reconstruir a oficina dele e começar a acumular pó de reparo como um esquilo cheirado se preparando para o inverno.
[MAS DEPOIS QUE VOCÊ CONSEGUE AS LOJAS, ESTA QUESTÃO ESTÁ RESOLVIDA, CERTO?]
Huuuuuugh... não exatamente. Veja, para começar, a coisa de "depois que você consegue" é mais como 4 a 6 HORAS de tempo de jogo. 4 a 6 horas era uma boa duração para um jogo inteiro naquela época, aqui é só o que vc precisa pra começar a poder respirar um pouco. Ou beber um pouco, neste caso. Depois desse tempo seu inventário parece ridículo sendo metade garrafa d'água e metade kit de reparo, mas sim, você pode relaxar um pouco depois de QUATRO A SEIS HORAS do pesadelo de desidratação/perder todo seu progresso, mas sim, fica mais fácil.
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A partir da quinta, sexta hora você também desbloqueia outra personagem com ataque a distancia, o que torna sua vida muito, muuuito mais fácil |
... exceto pelo grinding. Sabe, porque aí os chefes começam a arrancar seu couro a menos que você realmente grinde suas armas. A evolução de armas aqui é simples: toda vez que você sobe de nível, você ganha +1 de poder de ataque, e você tem dois ou três (dependendo da arma) slots para ganhar +1 em qualquer outro dos quase 20 atributos que a arma possui.
Para se ter uma ideia, a espada mais forte que o jogo tinha dropado pra mim (aleatoriamente, claro) tinha poder de ataque 50. É recomendado que para pegar o chefe da masmorra 3 você esteja em torno do nível 80 em poder de ataque da arma, além de uma boa parte do nivelamento de afinidade de fogo, já que ela é baseada em gelo. Legal. Ótimo. Faz sentido. Mas... com que rapidez você realmente ganha níveis em Nuvem Negra?
Sabe, eu perdoo muita coisa em jogos retrô. Eu, de verdade, não julgo um jogo dessa época pelas mesmas métricas que eu julgaria um jogo de hoje porque as coisas eram diferentes, as ferramentas que os devs tinham eram diferentes, a experiencia de saber o que funcionava e o que não funcionava era diferente. Controles ruins? Tá, vai. Dublagem constrangedora? Adoro. História que faz menos sentido do que um sonho em que você era uma bolinha da piscina de bolinhas do McDonnads? Claro, eu aceito. Mas é aqui — ISTO — é onde eu traço a linha. Porque para derrotar esse chefe no meio do jogo — NÃO o chefe final, não algum deus da guerra lendário, apenas uma mina com um corte de cabelo feio — você precisa aumentar o nível da sua arma TRINTA. VEZES.
E, oh-ho, não são só "trinta vezes" tipo bam-bam-bam, pronto. Não. Não, não, não, sua linda alma ingênua. Isso é grinding raiz, ritmo de melaço escorrendo em um dia frio de julho em Curitiba, como se fosse um caracol transando com uma tartaruga. Você ganha EXP dos inimigos tão devagar que começa a medir o tempo em era. Você não está mais matando monstros — está esperando que eles morram de causas naturais.
E aqui está a coisa — o jogo nem tenta fingir que essa rotina faz parte da diversão. Nada de minijogos. Nada de eventos especiais. Nada de NPCs interessantes. Apenas "lute contra os inimigos até seus olhos ficarem vidrados e você começar a dar nome e sobrenome para os botões do controle em voz alta". Isso não é jogabilidade — é um estágio não remunerado no Purgatório.
Eu dei uma olhada em um LongPlay no YouTube. Das 40 horas de jogo, VINTE HORAS são de grinding pesado. Isso é METADE do jogo. É quase um dia inteiro da sua vida — perdido para sempre, como lágrimas na chuva. Um dia inteiro que você poderia ter passado aprendendo violão, pintando, encontrando o amor, criando uma família, envelhecendo, vendo seus filhos se formarem — e em vez disso, você está aqui... entrando e saindo do mesmo andar para respawnar os mesmos três goblins até sua alma sair do seu corpo como se estivesse atrasado para o busão das 18:30um ônibus.
Isso... isso não é diversão. É Síndrome de Estocolmo. Na hora 15, eu podia ouvir minha própria sanidade se dissolvendo — as vozes na minha cabeça começaram a dizer coisas como: "Está tudo bem". Não, NÃO está tudo bem! É o Dia da Marmota sem o charme do Bill Murray, só eu em um loop temporal lutando contra o mesmo slime de pallet swap pela 276ª vez!!
VINTE HORAS! SÃO 1.200 MINUTOS! 72.000 SEGUNDOS! VOCÊ SABE QUANTOS BATIDAS CARDÍACAS SÃO ISSO?! EU PODERIA TER ASSISTIDO A EDIÇÃO ESTENDIDA DE O SENHOR DOS ANÉIS QUATRO VEZES! EU PODERIA TER APRENDIDO UMA LÍNGUA INTEIRA! EU PODERIA TER ASSISTIDO TODO ONE PIECE... tá, isso não... MAS AO MENOS EU PODIA TER ASSISTIDO O ARCO DE WATER 7 DE NOVO!
E quando você finalmente, FINALMENTE sobe de nível o suficiente, você entra naquela luta contra o chefe pensando que está prestes a saborear a doce vitória — só para descobrir que OS PRÓXIMOS CHEFES PRECISAM DE MAIS E MAIS E MAIS GRINDING AINDA!!!
[HÃ, C?]
O quê foi, Jorge?
[TALVEZ... SEI LÁ, TALVEZ VOCÊ DEVESSE DAR UM TEMPO?]
Um tempo? DAR UM TEMPO? Ah, claro, deixa eu TIRAR UMAS FÉRIAS nas Bahamas com todo o tempo que eu não tenho mais, porque ele está enterrado a quase dois metros de profundidade sob HORAS MATANDO OS MESMOS MONSTROS, JORGE!
... sabe de uma coisa? Não consigo fazer isso. Não consigo terminar esta review. Este jogo... tirou algo de mim que não posso recuperar. Pra mim chega. Apenas... chega.
[UH... É, ENTÃO... O C ESTÁ DEITADO NO CHÃO, RESMUNGANDO ALGO SOBRE "LOBOS NA TERRA" E "O RELÓGIO DA MORTALIDADE". VAMOS ENCERRAR POR HOJE. OBRIGADO POR TEREM LIDO ATÉ AQUI E LEMBRE-SE: SEU TEMPO NESTA TERRA É PRECIOSO. NÃO O GASTE GRINDANDO.]
MATÉRIA NA SUPER GAME POWER