quarta-feira, 27 de agosto de 2025

[#1540][Mar/2000] STEPPING SELECTION


No início dos anos 2000, os jogos de ritmo musical estavam a todo vapor nos fliperamas — especialmente no Japão. O sucesso sobrenatural de DANCE DANCE REVOLUTION não criou apenas uma moda passageira, ele esculpiu um rolo compressor cultural que ecoa até hoje (sério, você ainda pode encontrar essas máquinas de dança com som estouradaço no fliperama de qualquer shopping sem nenhum esforço em 2025). E naquela época isso, obviamente, desencadeou um frenesi de imitadores. Todo mundo e a mãe de todo mundo tentou pegar carona na onda da DANCE DANCE REVOLUTION. De repente, o mercado era um bufê de experimentos rítmicos: guitarras de plástico falsas, o império Bemani da Konami em constante expansão, mascotes em tons pastel balançando suas perninhas curtas, visuais caleidoscópicos abstratos, simuladores de DJ que faziam você se sentir como se estivesse tocando em Ibiza sem nunca sair do seu quarto. As empresas estavam atirando tudo na parede pra ver o que colava.

E então... chegou a Jaleco. Ah, Jaleco — a monarca indiscutível da mediocridade. A empresa tão agressivamente medíocre que a única razão pela qual você se lembra dela é justamente porque não consegue se lembrar de um único jogo que eles tenham feito. Todo o seu ethos corporativo era: "Vamos fazer mais o que está na moda, mesmo que seja medíocre a tia de alguém vai comprar pra dar de presente de aniversário". Quando os beat'm ups estavam na moda e FINAL FIGHT era a coisa mais quente do verão, a Jaleco correu para lançar RIVAL TURF. Quando survival horror era a moda e todo mundo tentava ser o próximo RESIDENT EVIL, a Jaleco meteu um CARRIER pq vai que cola. E quando DANCE DANCE REVOLUTION era a moda, a Jaleco em seu jalequismo máximo reuniu seus executivos para se sentarem e discutirem como jalecar a coisa quente do verão.


Agora, se você quiser copiar o sucesso de DDR, você pensaria que o primeiro passo seria perguntar o que realmente fez de DDR um sucesso? Eis a sessão de brainstorming de Jaleco: uma sala de reuniões cheia das mentes mais medianas já reunidas, debatendo apaixonadamente todas as perguntas erradas.

Cena: Sala de Reuniões da Jaleco, final de 1999.

Uma mesa comprida. Luzes fluorescentes zumbiam no teto. Um quadro branco com um marcador torto diz: “Operação: Pagar Boletos AtrasadosDerrotar DDR”. Os executivos de terno estão reunidos, munidos de café, ansiedade e uma capacidade quase sobrenatural de perder o foco.

Executivo nº 1: [batendo um gráfico] “Senhores, o segredo do sucesso da DDR é óbvio. É a interface! As setas! As pessoas adoram setas! Em vez disso, faremos um jogo de ritmo com triângulos. Triângulos são o futuro!”

Executivo nº 2: [acenando com a cabeça sabiamente] “Ou talvez seja a marca. A Konami é uma potência. Se disfarçamos nosso logo para parecer com o da Capcom, as pessoas vão se aglomerar. Reconhecimento da marca, essa é a chave!”

Executivo nº 3: “Não, não, vocês estão todos errados. É o design do gabinete. DDR tem luzes chamativas. E se — vejam só — fizermos as nossas marrons? Resistente. Confiável. As pessoas vão respeitar.”

Executivo nº 4: [esfregando as têmporas] “Olha, a jogabilidade! É tudo uma questão de entrada. DDR tem um teclado em que você pisa. Precisamos de algo diferente, algo inovador... e se fizermos os jogadores tocarem os botões com as mãos? Revolucionário!”

A sala vibra com a energia elétrica da mediocridade. Ninguém percebe o faxineiro empurrando seu balde de esfregão pelo corredor, até que ele para, se inclina pela porta aberta e murmura sem nem olhar para cima:

Faxineiro: “É a música, seus idiotas engravatados.”

Silêncio. Os executivos congelam. Por um momento, você quase consegue ouvir as engrenagens rangendo em suas cabeças enquanto a revelação luta para ser assimilada.

Executivo nº 1: “…Música? Hã. Nunca pensei nisso.”

Executivo nº 2: "Quer dizer que... as pessoas podem gostar de dançar músicas que já conhecem?"

Executivo nº 3: [rabiscando furiosamente] "Fazer as músicas serem interessantes em um jogo de música... é tão louco que pode funcionar..."

E ele estava certo. Porque a verdadeira magia de DANCE DANCE REVOLUTION não era apenas bater os pés ao som de qualquer barulho que saísse dos alto-falantes. Era bater os pés ao som de músicas que você realmente gostava. Faixas reconhecíveis e contagiantes como "That's the Way (I Like It)" ou "Kung Fu Fighting", de Carl Douglas. O ingrediente secreto não eram as setas brilhantes ou a pintura da máquina de arcade — era o fato de você estar essencialmente dançando ao som da trilha sonora pop da sua vida. A "revolução" em DANCE DANCE REVOLUTION não era a tecnologia. Era fazer você dançar ao som de músicas que você já amava. Não é exatamente ciência de foguetes, né.

Então aconteceu — um evento tão raro que está na página 414 do Livro dos Milagres: a Jaleco realmente acertou uma em cheio. Eles entenderam. Eles decifraram o código. A música era a parte mais importante de um jogo musical. Nascia assim a série Stepping Stage, a qual foi adaptada para o PS2 na forma desse Stepping Selection. Começem o desfile, soltem as pombas, alguém grave essa data em pedra!

... só que, hã, tinha um pequeno, microscópico problema, quase imperceptível problema: música é cara. Tipo, bem cara. Os desenvolvedores não colocam sucessos mundialmente famosos em seus jogos não porque não pensaram nisso — eles não fazem porque licenciar essas músicas custa o suficiente para financiar um pequeno país. Contratos musicais são um labirinto jurídico, e direitos conexos se transformam em um pesadelo até o fim dos tempos, em que você precisa renegociar a cada port, remaster ou apenas porque passaram alguns anos. Alias é por isso que tantos relançamentos ou remaster discretamente trocam seus sucessos por músicas de elevador genérica quando são relançados. Resumindo: é uma enxaqueca embrulhada em um processo judicial, coroada com uma pilha de boletos pra pagar.

E aqui, pela primeira e possivelmente única vez em sua existência corporativa, a Jaleco demonstrou algo semelhante à engenhosidade. E SE, veja bem, E SE usarmos as músicas... mas não as versões originais? Genial. Lindo. Maligno. Terrível. Tudo de uma vez.

Por que pagar uma montanha de dinheiro para Ray Parker Jr. pelo tema de Caça-Fantasmas quando você pode dar um maço de cigarros e um passe de trem para uma banda de garagem morrendo de fome em Shibuya? Por que desembolsar milhões para Britney Spears por "...Baby One More Time" quando você pode pagar a prima do seu estagiário — que tem uma máquina de karaokê e já cantou em um casamento — pelo preço de duas cartas de Pokémon e uma fita de cabelo? De repente, a Jaleco podia encher seu jogo com "sucessos reconhecíveis" que soavam familiares o suficiente para enganar seu cérebro e dizer: "Ei, eu conheço essa música!" — antes de perceber imediatamente que algo estava errado, como ouvir sua faixa favorita tocada por uma banda cover às 2 da manhã, após a terceira rodada de saquê.

Tá, esse não foi um bom exemplo pq a Britney Spears foi um dos poucos que eles realmente pagaram os direitos pela música original e o clipe

Foi, à sua maneira, brilhante. A Jaleco havia encontrado o loophole mais barato possível: vender a ilusão da música pop sem precisar pagar por ela. Então aqui está o paradoxo: à sua maneira bizarra e infestada de areas cinzentas jurídicas, Stepping Selection realmente tem a melhor trilha sonora que um jogo de ritmo já havia reunido até então. Sem exagero. Estamos falando de clássicos raíz, testados e aprovados que todos conhecem e gostam como "Scatman (Ski-Ba-Bop-Ba-Dop-Bop)", "Surfin' U.S.A.", "Dschinghis Khan", "The NeverEnding Story" e por ái vai. É uma sequência de hits sensacionais, um após o outro, o tipo de playlist que faz você se perguntar se o Jaleco finalmente contratou pessoas brilhantes para tomar as decisões.

E, para seu crédito, algumas dessas faixas foram legitimamente licenciadas com os artistas originais. Scatman John, por exemplo, aparece em toda a sua glória no ski-ba-bop. Então, crédito a quem merece — a Jaleco não foi completamente mesquinha. Mas na maior parte da trilha sonora, sim, para cada Scatman genuíno, havia três primos falsificados de sucessos, cantados e tocados por quem Jaleco conseguisse subornar com um bentô de 759¥. O que nos deixa com a pergunta de um milhão de dólares que você provavelmente está se fazendo nesse exato momento: 


Bem... é complicado.

Porqui aqui que o direito entra num limbo cinzento com a questão cultural japonesa. Se alguma vez houve um país que deixaria o "golpe do karaokê cover" da Jaleco passar batido, esse país era o Japão dos anos 90. Por quê? Porque o karaokê não é apenas um passatempo lá — é um praticamente uma religião nacional. Arranha-céus inteiros existem dedicados apenas para você poder cantar My Heart Will Go On desafinado às 2 da manhã. Legalmente, o Japão tem a JASRAC (Japanese Society for Rights of Authors, Composers and Publishers), que é a maior sociedade que administra direitos autorais no Japão. E devido a grande cultura de karaokê no Japão, a JASRAC facilita bastante a vida de quem quer ganhar uns trocados em cima de uma música licenciada. Pague uma taxa fixa, assine alguns papéis e pronto — sua versão genérica de Surfin' U.S.A. é totalmente kosher para cobrar das pessoas.

Agora, compare isso aos Estados Unidos, onde os direitos autorais são protegidos como os códigos de lançamento nuclear. Quer colocar um cover em um jogo? De repente, você precisa de um pequeno exército de advogados, uma montanha de dinheiro e, possivelmente, uma sessão espírita para pedir a benção ao espírito do Elvis. Essa divisão cultural explica muitas coisas — como por que JoJo's Bizarre Adventure pode livremente batizar personagens e golpes com nomes de bandas e músicas (Killer Queen, Red Hot Chili Peppers, Another One Bites The Dust) no Japão, mas no momento em que cruza o Pacífico, "Crazy Diamond" (uma referencia a música "Shine on You, Crazy Diamond" do Pink Floyd) vira "Shining Diamond". As editoras japonesas tratam isso como homenagem. Os advogados americanos tratam como sangue na água.


Outro exemplo bem iconico dessa diferença cultural é que a Capcom aprendeu isso da maneira mais difícil nos anos 90. Originalmente, o boxeador de Street Fighter era chamado diretamente de "M. Bison", que soava praticamente como Mike Tyson. Perfeitamente aceitável no Japão, onde as pessoas davam de ombros e diziam "eu entendi essa referencia". Mas nos EUA isso era um processinho esperando pra acontecer. Então a Capcom fez a infame troca de nomes: M. Bison virou Balrog, Balrog virou Vega e Vega virou M. Bison. Até hoje, os fãs ainda discutem sobre qual nome pertence a quem — tudo porque a Capcom não queria testar o quão litigiosos os americanos poderiam ser (e a resposta é MUITO, acredite).

A Jaleco, na sabedoria advinda de reconhecer sua infinita mediocridade, realmente entendeu isso. Eles sabiam que era melhor não tentar a sorte. Stepping Selection nunca saiu do Japão porque eles não foram loucos o suficiente para arriscar contra as leis de direitos autorais ocidentais. No Japão, seus covers de karaokê eram protegidos pelo sistema. Nos EUA, a primeira faixa pirata de Ghostbusters teria summonado tantos advogados de terno Armani para a sede da Jaleco que bloquearia o Sol por aeons inteiros. É por isso que Stepping Selection continua sendo uma raridade exclusiva do Japão, porque eles sabiam que os Estados Unidos não entendem "homenagens" — os Estados Unidos entendem processinhos.

Então esta é a história do título de lançamento de PS2 mais estranho que nunca saiu do Japão. Março de 2000: chega o PlayStation 2, um obelisco negro e reluzente do futuro, acompanhado de oito títulos de lançamento... hã, questionáveis, mas como eu expliquei na história do Playstation 2, meio que ninguém se importava com isso.

Girls Just Want Have Fun, by Cindy Lauper da Shopee

Seja como for, a lista dos 12 jogos originais de PS2 no seu lançamento japonês era A-Train 6, DRUMMANIAETERNAL RING, Kakinoki Shogi IV, KESSEN, Mahjong Taikai III, Morita Shogi, Kakinoki Shogi IV, RIDGE RACER 5, Stepping Selection, STREET FIGHTER EX 3 e TEKKEN TAG TOURNAMENT. Definitivamente uma lista dos jogos já lançados, eu te digo... mas meu ponto aqui é que, para surpresa de ninguém, os jogos de tabuleiro exclusivamente japoneses como shogi e mahjong nunca cruzaram o Pacífico já que localizar Mahjong Taikai III para os EUA teria sido como pagar os custos de dublar curling para o Brasil.

Mas depois de limpar a lista desses títulos que culturalmente não faziam sentido, um único jogo se destaca como o único jogo de lançamento do PS2 que nunca saiu do Japão: Stepping Selection. E agora você sabe por quê. Não por causa dos custos de localização. Não porque o Ocidente "não entendesse". Não porque a Jaleco não quis se dar ao trabalho de traduzir um ou dois menus. Não, foi porque a Jaleco não ousou tankar o boss final da civilização ocidental: os advogados de direitos autorais americanos.

Então aqui estamos, com um dos exclusivos de lançamento mais bizarros de todos os tempos. E, de certa forma, isso dá à Jaleco algo que eles nunca tiveram antes: algo pelo que ser lembrada. Pela primeira vez a Jaleco não era mais apenas "a empresa que fazia jogos esquecíveis". Agora eles são a empresa que nos deu o jogo de lançamento do PS2 amaldiçoado demais para ser lançado no exterior. E essa é a coisa mais memorável que eles já fizeram. Yay... eu acho?

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 149 (Março de 2000)


EDIÇÃO 151 (Maio de 2000)


MATÉRIA NA GAMERS
EDIÇÃO 061 (Abril de 2000 - Semana 3)