domingo, 31 de agosto de 2025

[#1543][Fev/1999] ARMORED CORE: Masters of Arena


É fácil esquecer que videogames não são apenas uma indústria multibilionária — ou mesmo que não são realmente uma "indústria". Desconsiderando os orçamentos de marketing, as fusões corporativas e as abominações sem alma conhecidas como "GaaS — Games as a Service", o que resta no fim do dia é um projeto de paixão. Seres humanos são criaturas teimosamente apaixonadas, despejamos sentimentos não apenas em pessoas ou animais de estimação, mas em praticamente qualquer coisa a que nos dedicamos por tempo suficiente. Pode ser um blog de nove anos sobre jogos retrô esquecidos que ninguém lê, pode ser uma banda de garagem que nunca tocou fora do bairro, ou pode ser um videogame criado por uma pequena equipe que simplesmente não consegue evitar perseguir sua visão. Uma espécie curiosa, esta humana.

Exemplo em caso, Masahiro Sakurai. Todos o conhecem como o capitão da franquia gigantesca SUPER SMASH BROS., um homem que movimentou bilhões sozinho sob a bandeira de jogos de luta da Nintendo. Se ele quisesse poderia se aposentar amanhã em uma ilha tropical, bebericando água de coco, e só pegando seu bat-telefone quando a Big N decidisse que precisa de mais alguns bilhões na conta. Mas a verdadeira paixão de Sakurai não é colocar Pikachu pra lutar contra o Solid Snake pela centésima vez. Seu bebê — a única coisa para a qual ele sempre volta, não por causa do dinheiro, não por causa da aclamação popular, mas porque é seu trabalho de amor — é Kirby. Kirby é o cachorrinho rosa e redondo de Sakurai, e a piada recorrente entre os fãs é que a Nintendo lhe paga em milhões, 13o salário, férias e a licença para produzir um ou dois jogos do Kirby a cada ciclo de desenvolvimento.

Mas por que eu estou falando disso? Porque a FromSoftware — sim, aquela FromSoftware, a FromSoftware "devoradora de Game Awards", a "vamos reinventar gêneros inteiros com nossa fórmula Souls" FromSoftware — tem seu próprio equivalente a Kirby. Uma série que eles não criaram para bilhões em vendas, ou para arrasar na temporada de premiações, mas porque era seu projeto de paixão, seu amado filhote de ouro. Essa série é Armored Core. Antes que o mundo os conhecesse por pântanos amaldiçoados, cavaleiros melancólicos e chefes que te fazem gritar no travesseiro, a FromSoftware estava silenciosamente se dedicando a uma saga de construção de mechas que, apesar de todas as suas arestas a serem aparadas, carrega a marca inconfundível de obsessão e amor.


Eu já escrevi uma review sobre o ARMORED CORE original em 2023, mas a ideia geral é simples: Armored Core é um jogo muito, muito, muito difícil. Uau, um jogo da FromSoftware que é difícil — parem as máquinas, certo? Mas não, falando sério — ARMORED CORE não é apenas "difícil" no sentido de chefes esponjas de balas ou testes de reflexos. Sua dificuldade é muito mais profunda, de uma forma que parece inconfundivelmente FromSoftware.

Este não é o típico jogo de tiro em terceira pessoa com mechas como skin. O verdadeiro desafio não está em atirar até seus misseis acertarem, a dificuldade aqui está em navegar por menus desajeitados, trocar peças com cuidado, equilibrar o peso das armas e rezar para que seu orçamento não imploda antes mesmo de seu mecha sair da garagem. Esqueça o tanque ambulante de 15,7 metros atirando em você — o verdadeiro desespero de ARMORED CORE é quando você verifica seu orçamento e percebe que está endividado até seu pescoço de titânio. O jogo é punitivo em termos monetários muito mais do que em termos de bulletários (e ainda dizem que jogamos videogames para escapar dos problemas da vida real, vai vendo). E vai ainda mais fundo do que isso, mas não vou repetir aqui toda a filosofia do primeiro jogo — já escrevi essa review e recomendo fortemente que você a confira se quiser uma análise completa de como funciona a economia perversa de ARMORED CORE.


Corta pra dois anos depois, em 1999, a FromSoftware decidiu lançar uma espécie de DLC, Nucleo Blindado: Mestres da Arena. Eu digo "DLC" pq esse jogo é menos Armored Core 2 e mais como se a FromSoftware se dissesse: "Tá, tudo bem — vocês vão ganhar uma folga dessa vez, mas não se acostumem com isso".

A primeira mudança chocante no simulador de dívidas conhecido como ARMORED CORE te atinge logo de cara. Você inicia o Masters of Arena e — espera um momento... 100 mil créditos já na sua conta e todo o catálogo de peças desbloqueado desde o início?


Isso não pode estar certo... esse é um jogo da FromSoftware, tem que ter uma pegadinha. Em algum lugar nas letras miúdas, tem que ter um "AHÁ! Te peguei!" esperando pra te dar uma rasteira. Talvez seu mecha exploda na decolagem. Talvez o banco tome posse das suas pernas. Talvez a sua garagem seja mal-assombrada. Alguma coisa. Qualquer coisa. Porque a FromSoftware não te entrega brinquedos bonitos e diz: "Vá e se diverta". Não esses caras. Nunca.

... exceto que desta vez eles realmente fizeram isso. Nenhuma cláusula de pegadinha no contrato. Nenhuma tela de "Game Over por Falência" espreitando nas sombras. Nada. Masters of Arena simplesmente permite que você compre peças e construa seu mecha como um ser humano normal e funcional. Apenas menus limpos, opções acessíveis e liberdade de experimentar builds. Mas espera — fica ainda mais estranho...

Na continuidade original estabelecida no ARMORED CORE de 1997 mantida até Armored Core 2: Another Age de 2001, a Terra experimentou um cataclismo conhecido como "Grande Destruição", forçando a humanidade a viver no subsolo. Lá embaixo, mega corporações ascenderam ao poder e — como corporações fazem — imediatamente começaram a lutar pelo domínio. Suas armas preferidas eram mechas chamados Núcleos Blindados, e seus pilotos conhecidos como Corvos.


E o que os entediados chefões corporativos subterrâneos fazem para passar o tempo em seus bunkers? Bem, obviamente, eles organizam um torneio de gladiadores em arenas, porque nada diz "late capitalism" como cage matchs de mechas para entretenimento. E é aí que você entra. Em Masters of Arena, seu objetivo é... nunca que você ia adivinhar isso... se tornar o Mestre da Arena. Por essa você não esperava, né?

Então, como você faz isso? Simples: para se classificar para o torneio, você precisa de um patrocinador. Para conseguir patrocínio, você faz tarefas para a megacorporação do seu bairro — missões em que você explode coisas em nome deles. Faça alguns trabalhos, obtenha a aprovação deles e ganhe uma licença para entrar em um novo nível na Arena. Limpe aquele nível, pegue outra licença, suba de nível, repita até ter esmagado todos os pilotos do elenco e conquistado a coroa de Mestre da Arena.

Parece simples, certo? E aqui está a coisa estranha — de fato, é. Masters of Arena é surpreendentemente generoso em comparação com seu antecessor. Nas batalhas de Arena você não perde dinheiro ao ser derrotado, já que seu patrocinador cobre as despesas. O que significa... você pode farmar créditos. Sim, farmar. Para peças. Para melhorias. Para diversão. O ARMORED CORE original punia você implacavelmente, cobrando contas de reparo, custos de munição e gastos com combustível tão altos que metade das vezes seu salário não cobria a missão (algo bem relacionável realmente). Essa sensação esmagadora de desespero financeiro foi um dos principais motivos que tornaram o primeiro jogo tão brutal.


Masters of Arena, por outro lado, praticamente te dá passe livre. Você pode perder, tentar de novo e ainda sair mais rico. Para quem acabou de sair do "Debt Simulator Core", essa generosidade parece menos game design e mais bruxaria.

Na jogabilidade não mudou muita realmente, embora haja algumas melhorias dignas de nota. Como eu disse na minha review original, a jogabilidade de ARMORED CORE não justifica todo o trabalho que sua mecânica exige — porque, sejamos honestos, os tiros em si não eram tão bons assim. Bem, em Masters of Arena, é um pouco melhor. Seu mecha parece um pouco mais responsivo, os movimentos são mais suaves e — rufem os tambores — você finalmente pode disparar seus canhões de ombro enquanto se move. Revolucionário. 

Infelizmente, o jogo carrega um peso morto de 1997: os controles. Não é que eles sejam impossíveis de jogar, mas eles teimosamente se recusam a evoluir. Ainda não tem suporte para analógicos. Em 1999. No PlayStation. Isso três anos depois que o analógico se tornou uma opção padrão nos jogos. Então, sim, você ainda está preso usando botões de ombro para olhar para cima e para baixo, uma configuração que já parecia desajeitada em 1997 e em 1999 era completamente arcaica. É especialmente frustrante porque um movimento do analógico direito poderia ter resolvido todo o problema. O jogo tem suporte para vibração, mas não para analógico, o que quer dizer que a FromSoftware sabia que o DualShock existia... mas só na parte do rumble? Bom, pelo menos o lado bom é que os gráficos receberam uma repaginada sólida para os padrões de 1999, e a IA parece visivelmente melhor. 


Agora, como você pode ou não ter notado, a Arena é o verdadeiro destaque de Masters of Arena. E com isso, quero dizer que fica bem claro que é aqui que a FromSoftware dedicou a maior parte do seu esforço. Cada ladder match consegue ser memorável de alguma forma — às vezes porque a luta força você a usar um setup que vc não usaria normalmente, às vezes porque a própria arena lança obstáculos únicos em você e às vezes simplesmente porque seu oponente é diferente de tudo que você já viu.

O que você tem aqui é uma galeria colorida de inimigos mecha dignos de anime, variando de clichês de mecha clássicos a um Núcleo Blindado totalmente personalizado com tema de Sailor Moon. Porque sim — mesmo em uma sociedade subterrânea pós-apocalíptica governada por corporações implacáveis, alguém ainda acredita em "punição em nome da lua". Prioridades, certo?

Minha favorita, porém, é o bracket "Campeões". Aqui, você luta contra armored cores que foram usados ​​no torneio real Armored Core realizado no Japão pela FromSoftware. Um dos prêmios para os finalistas era ter seus setups personalizados imortalizadas nesta sequência, orgulhosamente posicionadas como o último nível a ser conquistado. Claro que eles são controlados por uma IA bem mais limitada que um campeão humano jogando, mas ainda sim é uma coisa maneira pra caceta. Seja como for, esse é o ponto: em um jogo chamado MASTERS OF THE ARENA, definitivamente ajuda o fato de a própria Arena acabar sendo a parte mais legal de toda a experiência.

YOU era o nick de Yuya Hishiki, que ganhou tantos torneios de Armored Core na época que a FromSoftware pediu para ele não participar só para dar graça e dar uma chance dos outros competirem

Então, minha impressão geral é que Masters of Arena é um passo atrás em relação ao jogo original — mas um passo atrás na direção certa, se isso faz algum sentido. É muito, muito menos ambicioso, mas, como eu disse antes, não acho que o Armored Core original valesse todo o esforço que exigiu do jogador.

Nesse sentido, MoA parece mais simples, mais humilde — e isso, na verdade, funciona melhor para o que a jogabilidade pode oferecer realisticamente. Deixe-me colocar desta forma: o nucleo de jogabilidade de Armored Core (trocadilho intencional, humor y piadas) não é muito melhor do que THE GHOST IN THE SHELL para PS1. Então faz sentido que a complexidade que ele exige seja reduzido para algo mais realista de uma "jogabilidade razoável, mas não estelar". Não estou dizendo que um jogo não pode ser tão complexo e punitivo quanto o primeiro Armored Core. O que estou dizendo é que, se um jogo vai ser tão punitivo, então, no mínimo, o nucleo de jogabilidade principal precisa ser satisfatório o suficiente para justificar o sofrimento.

O que, curiosamente, acabou se tornando a assinatura da FromSoftware com a série Souls: dificuldade brutal aliada a uma jogabilidade tão precisa e recompensadora que você realmente quer rastejar por cacos de vidro para ver o que vem a seguir. Mas aqui no PS1, com as limitações da sua época e o combate desajeitado com mechas, esse passo para trás pareceu adequado — e, honestamente, muito mais agradável de se jogar.

MATÉRIA NA GAMERS
EDIÇÃO 062 (Abril de 2000 - Semana 4)


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