domingo, 3 de agosto de 2025

[#1521][Abr/1999] SaGa FRONTIER 2

Nem tudo é feito para todo mundo. Óbvio, né? Quer dizer, você não esperaria pegar um paper cheio de jargões sobre física quântica e sair entendendo tudo na primeira leitura... ou mesmo na quinta. O mesmo princípio se aplica ao entretenimento. Claro, a maioria dos filmes, álbuns e livros são pensados para serem acessíveis ao público em geral, mas existem obras por aí que exigem um pouco de lição de casa casa — ou pelo menos um conhecimento específico — antes que você realmente entenda o que faz elas funcionarem.

Veja o filme Rubber, por exemplo. À primeira vista, parece pura tolice: uma paródia sobre um pneu assassino, senciente e psíquico. E sim, esse é o enredo — não estou inventando. Mas para realmente apreciar o que esse filme está parodiando você precisa ter alguma familiaridade com cinematografia, ângulos de câmera, teoria da cor, iluminação e um monte de outras convenções cinematográficas. Sem esse contexto, você provavelmente perderá nove décimos da piada e sairá pensando: "Esse desvio foi uma enorme perda de tempo e energia".

Então, por que estou falando isso? Porque os jogos funcionam da mesma forma. A maioria dos títulos é feita para ser amigável a iniciantes — qualquer um pode pegar e jogar, sem necessidade de manual. Mas alguns jogos ostentam orgulhosamente uma placa que diz: "Foda-se. Se você não entendeu, não entendeu. Não é problema meu." Pense em GUILTY GEAR X, um jogo de luta tão focado em pro-players que conseguem contar quadros de animação e calcular tempos de recuperação com termos que jogadores casuais que esmagam botões sequer conseguem imaginar que existem. E isso é intencional — algo que nosso querido desenvolvedor/rockstar Daisuke Ishiwatari sempre deixou bem claro.

Diz muito sobre o que vamos encontrar pela frente que a capa japonesa do jogo (que depois virou a capa internacional do remaster) seja a tela de Game Over

JRPGs não são diferentes. Na era do PS1, a Squaresoft estava tão por cima da carne seca com o sucesso internacional que podia se dar ao luxo de lançar subfranquias menores que atendiam a nichos específicos. E nesse portfólio, a série SaGa se destacava orgulhosamente no segmento "apenas para fãs hardcore de RPG. Casuais, por favor, vão se foder".

O que nos leva ao tópico de hoje: SaGa Frontier 2 para PS1. Antes de começar, eu preciso deixar issso bem claro: esse não é um jogo feito para o turista de RPG de fim de semana. Ele foi criado para os iniciados: jogadores dispostos a lidar com suas peculiaridades, complexidades e escolhas de design absolutamente... únicas, vamos colocar assim. Se isso parece a sua praia, aperte os cintos. As coisas estão prestes a ficar... técnicas.

Então... enquanto todos ainda estão descansados e (espero) pacientes o suficiente para aguentar as minhas tolices, vamos tirar do caminho o maior obstáculo logo de cara: a jogabilidade em si. Então, isso é um jRPG, certo? Você tem um grupo, equipa espadas brilhantes e armaduras legais, conjura magias, ataca, sobe de nível, fica mais forte — sabe, o bom e velho raguru dos JRPGs, certo? Bem... não exatamente. Na verdade, quase nada como isso. 

Você tem um grupo de até quatro personagens, e cada um deles tem espaços no inventário para equipamentos. Até aqui, tudo normal. Mas aí vem a surpresa: as habilidades dos seus personagens — chamadas "Arts" — não são automaticamente utilizáveis só porque você está segurando uma espada ou um arco. Não. Na verdade, você precisa acessar um menu separado para equipar as Artes que deseja que o personagem use em combate. Quer atacar com uma espada? Melhor equipar Artes de Espada. Prefere cutucar coisas à distância? Melhor preparar as Artes de Lança. Lanças, machados, cajados — mesma história. Sem Artes equipadas seu herói está preso cutucando os inimigos com o ataque básico mais ineficiente do mundo.


Certo, tudo bem. Então, como você consegue essas Artes em primeiro lugar? É aqui que Frontier Saga começa a mostrar suas verdadeiras cores. Veja, não há level up no sentido tradicional. Sem barras de XP para acumular, sem momentos de "ding!" em que os atributos de todos sobem e chove confete. Em vez disso, a progressão é baseada no uso — ou seja, se seu personagem usa uma espada em batalha, após a luta tem uma chance aleatória de que seu atributo de espada aumente. Se ele for atingido com frequência, há uma chance de que seu HP máximo aumente. Talvez. Possivelmente. Na maior parte do tempo nada acontece e você não ganha nada com as lutas.

Aprender novas Artes funciona com o mesmo princípio de "rezar para RNGesus": toda vez que você usa uma Arte existente em combate, há uma pequena chance de o personagem ter uma inspiração — literalmente uma pequena lâmpada acende sobre sua cabeça — e desencadear uma Arte totalmente nova bem ali no meio da luta. É imprevisível e você não pode forçar. Tudo o que você pode fazer é continuar repetindo o que sabe e torcer para que a inspiração chegue antes que sua paciência acabe. E isso são apenas as armas — e essa é a parte fácil de entender depois que você se acostuma. Mas as magias... meua migo... magias são uma besta completamente diferente. 

Então, como se conjura uma magia em SaGa Frontier 2? Bem, primeiro você precisa equipá-la — assim como faz com as Artes de Armas. Mas, claro, só isso não basta. As magias aqui exigem equipamentos, afinal, por que simplificar quando você pode torná-las lindamente arcanas?

Vejamos a magia de cura básica do jogo, Água da Vida. Na descrição, você verá algo como [Tree- Water]. O que isso significa? Significa que seu personagem precisa ter pelo menos um equipamento marcado com o elemento "água" e outro marcado com o elemento "árvore". Só então ele poderá conjurá-la. Quer usar a Arte do Arbusto (uma boa magia de área de efeito)? É melhor ter equipamentos que cubram Fogo + Árvore.

Mas espere, fica mais complicado: assim como as Artes de Armas, as magias não vêm totalmente desbloqueadas. Cada vez que você usa uma magia em combate, há uma chance aleatória de que a afinidade do seu personagem com aquele elemento (água, fogo, pedra, árvore, etc.) aumente. Talvez. Possivelmente. Você pode usar Água da Vida dezenas de vezes e nunca ver um aumento de atributo. Ou pode ter sorte e ganhar dois atributos de uma vez. Todos comigo até aqui? Provavelmente não — mas espere, tem mais.

Ao explorar masmorras, você não fica apenas repetindo magias ou brandindo armas à vontade: você tem dois recursos preciosos para gerenciar — Pontos de Arma (WP) e Pontos de Magia (SP). A maioria das Artes de armas custam WP, mas algumas especiais custam SP. Da mesma forma, a maioria das magias consome SP, mas algumas exceções estranhas queimam WP. Parece confuso, e é — mas força você a pensar no futuro em vez de martelar sua habilidade mais forte sem pensar a cada turno.

E lembre-se, não há healing points em masmorras. Então, cada dungeon se torna uma guerra de atrição: seu WP e SP continuam diminuindo à medida que você avança, e eventualmente você precisa ser criativo. Talvez você equipe algumas magias no seu lanceiro blindado (que normalmente só espeta as coisas com uma lança) porque o WP dele está quase no fim, e você precisa gastar SP no lugar se quiser ter WP para lutar contra o chefe. E acredite: os chefes aqui não pegam leve.

Só porque você passou fácil pelos mobs aleatórios não significa que o chefe não vai te dar uma surra. Às vezes, você encontrará um chefe tão brutalmente acima do nível dos monstros atuais que você se perguntará se não devia estar fazendo aquele capitulo só bem pra frente. Mas esse é o cerne da experiência: microgerenciar esse desgaste de recursos, planejar emergências e dobrar o sistema à sua vontade. Esse é o loop da jogabilidade. 

A seguir, vamos falar sobre o terceiro recurso deste jogo — e facilmente o mais importante: Pontos de Vida (LP).


Antes do início de cada turno de batalha, você pode gastar 1 LP para recarregar completamente o HP de um personagem. Se seu WP ou SP estiverem esgotados, você também pode gastar 1 LP  para forçar o uso de uma Arte de Arma ou magia de qualquer maneira — o que, neste jogo construído inteiramente em torno do desgaste de recursos, pode significar a diferença entre sobreviver a uma luta contra um chefe ou ver o Game Over. Contanto que você ainda tenha PV, você tem alguma margem de manobra para manter a luta fluindo.

E lembre-se: tudo o que eu expliquei até agora — todo o sistema complexo de gerar novas Artes, requisitos de elementos de magia, aprimoramentos aleatórios de habilidades, malabarismos com HP e LP — é apenas a camada básica de combate. Mas sabe o que é realmente interessante nisso tudo? O que é realmente incrível? O JOGO NÃO TE EXPLICA ABSOLUTAMENTE NADA DISSO.

Sim. Toda essa explicação prolixa que estou dando — só para cobrir o mínimo de como as batalhas realmente funcionam — você não vai ouvir nada no jogo. Não tem tela de tutorial, em um NPC vovô prestativo para te sentar e dizer: "Ei, garoto, é assim que as magias funcionam". Nada. E nem pense que o manual vai te ajudar — eu li de capa a capa. Nada. Niente. Zilch. Nothing. 

E quando eu digo que eu abordei só o básico, estou falando bem sério... nem queira que eu comece sobre as sub-partys ou a interação com o Pocket Station...

Eu não estou exagerando quando digo que eu passei mais tempo tentando entender como esse jogo funciona do que terminando jogos inteiros neste blog. Estou falando de horas literais batendo a cabeça na parede, tentando decifrar por que as magias aparecem na sua lista de Artes durante o combate, mas teimosamente permanecem acinzentadas; por que tem duas linhas separadas nas suas Artes equipadas; o que o pequeno símbolo "+" ao lado dos níveis de habilidade realmente significa; e percebendo que as descrições dos equipamentos não são textos explicativos decorativos — são pistas vitais sobre quais elementos eles fornecem para conjurar magias. (Protip: um "Escudo de Lava" implicitamente significa Fogo + Pedra. Porque, sabe como é... lava.)

E eu não posso estressar isso o suficiente: o jogo não te explica nada disso. Se você descobrir, ótimo. Se não foda-se, SaGa Frontier não poderia se importar menos, é Game Over, tchau e bença. E lembre-se: isso é 1999, quando a internet não era algo que você carregasse no bolso e tutoriais não eram assim pra encontrar. 

Tá, vá lá, não é TÃO arcano quanto VAGRANT STORY, um jogo que ainda HOJE as tabelas ocultas e gráficos de probabilidade invisíveis não fazem sentido. Mas não deixa de ser irritantemente opaco. E deixe-me enfatizar novamente: esta é apenas a base absoluta — o primeiro andar de uma casa que só fica mais estranha à medida que você se aprofunda. Porque acredite que tem mais. Claro que tem.

Certo, então sobrevivemos aos aprimoramentos aleatórios de habilidades, ao Sudoku elemental e à roleta russa de LP. Ótimo! Mas espere — tem mais. Vamos falar sobre os dois modos de combate "especiais": Duelos e Batalhas Táticas. Por que ter um sistema de batalha quando você pode ter três que ainda fazem menos sentido?


Primeiro: Duelos. Às vezes você tem a opção de realizar um duelo ao invés de uma batalha normal, as vezes a história te força a ser um duelo. Parece legal, certo? Bem, é... mais ou menos. Em Duelos, você não escolhe entre Artes pré-equipadas. Em vez disso, você pode inserir uma sequência de comandos (Charge, focus, feint, slash, etc) a cada turno. Dependendo da sequencia que você usar, essas sequências podem se transformar em Artes específicas que você conhece (tipo "charge, slash, slash" pode, ou não, ativar uma arte de espada) — ou, se tiver sorte, ativar Artes totalmente novas na hora.

E adivinha? Cada tipo de arma tem sequências e Artes em potencial diferentes. Ou seja, a menos que você goste de tentativa e erro (e de escrever notas enigmáticas como um teórico da conspiração obcecado), você passará horas forçando combinações. Duelos podem ser incrivelmente uteis para economizar recursos já que como você enfrenta só um inimigo, isso poupa gasto de WP e SP — além do uqe ativar Artes em um Duelo geralmente tem uma chance maior — mas também são mais arriscados pq se vc perder é game over na hora, e você nunca tem certeza se o jogo não vai te jogar um inimigo muito acima dos inimigos comuns que vc enfrentou na dungeon até então. Então, é basicamente a filosofia SaGa resumida: poderosa, recompensadora, mas absolutamente hostil.

Depois temos as Batalhas Táticas — aqueles raros momentos baseados na história em que o jogo decide deixar de lado as lutas por turnos habituais e se transformar em um mini RPG de estratégia estranho. Sabe, para o caso de você ter começado a achar que entendia como se jogar esse jogo.

Em Batalhas Táticas, em vez de quatro personagens, você controla unidades inteiras de soldados, cada uma composta por tropas genéricas. Você os movimenta em um pequeno mapa, planeja ataques e tenta eliminar as formações inimigas. Tudo se resume a posicionamento, número de tropas e adivinhar o que o inimigo fará em seguida. Quando duas unidades se encontram rola um turno de combate e perde quem terminar com menos unidades - se o inimigo terminar com 2 bonecos em pé e vc com 3, vc venceu o encontro.


Só que... isso tem ainda outras regras que, como vc pode esperar, o jogo oferece ainda menos orientação. Você simplesmente é lançado em sua primeira Batalha Tática sem nenhuma preparação e recebe a ordem: "Pega eles, tigrão". Enquanto isso, você tenta freneticamente descobrir como se mover, o que os bônus de formação fazem, por que sua unidade mais forte foi atropelada em dois turnos ou porque você tomou Game Over do nada após o inimigo mover uma peça. 

Mas aqui está a questão: por mais que pareça que estou detonando esses sistemas (e, bem, de certa forma estou), não posso negar que tem algo encantador neles. São brutos, hostis, mas também tão diferentes de qualquer outra coisa que eu já vi num RPG que é impossível não respeitar a ambição. Nenhum outro JRPG de PS1 (talvez de qualquer outro videogame) teve a audácia de enfiar três sistemas de combate separados em um jogo e não explicar nada sobre nenhum deles. Se isso é uma coisa absurdamente idiota ou absurdamente corajosa eu não sei dizer, mas diria que ambos ao mesmo tempo.

Confuso? Com certeza. Frustrante? Pode apostar. Mas chato? Nunca.


Agora que mal arranhamos a superfície do que pode ser o sistema de RPG mais complexo que já vi (e que não se chama VAGRANT STORY) — e que, novamente, não explica absolutamente nada dessa gloriosa bagunça — vamos falar sobre a história.

Porque, obviamente, você é uma pessoa sagaz e provavelmente já percebeu o padrão aqui e poderia achar que a narrativa é tão confusa, opaca e tem orgulho de não te dar uma colher de chá tanto quanto o combate. E você estaria certo! Mas eu tenho que explicar de qualquer forma: a história em SaGa Frontier 2 é construída em torno do que é facilmente a estrutura narrativa de RPG mais complexa com a qual já tive o prazer (e a dor) de lidar — uma estrutura que faz até mesmo o sonho febril de LEGEND OF MANA, fragmentado em sidequests, parecer completamente linear em comparação.

Eis como funciona: antes de cada segmento da história, você é jogado em um mapa-múndi e recebe uma lista de cenários para escolher. Esses cenários são rotulados com títulos enigmáticos como "A Transformação", "Família" ou "Prisioneiro da Memória" — títulos que não dizem exatamente nada sobre o que realmente vai acontecer.

Qual você deve escolher? Você deve seguir a história de Gustave sobre ser um príncipe desgraçado ou a saga familiar de Wil sobre caçadores de tesouros em busca de relíquias antigas? Existe uma ordem correta? Você deve terminar todos eles antes de desbloquear novos? Essas são todas excelentes perguntas, mas... sério gente, você realmente espera alguma orientação? Algum marcador de missão, talvez? Um tutorial pop-up amigável? DESTE jogo? Você estava prestando atenção em qualquer coisa que eu disse até agora?

O momento que a inspiração para uma nova arte surge

Não, meu amigo. Este jogo educadamente lhe entrega o mapa, aponta para a lista e diz: "Descubra. Ou não. Problema é seu." Não há explicação sobre qual cenário pertence a qual protagonista, nenhum aviso sobre os saltos temporais e nenhuma pista real sobre como as histórias estão conectadas. Às vezes, você joga como Gustave na adolescência, às vezes como Wil Knight na casa dos vinte, e então, de repente, avança décadas para os descendentes de Wil.

E eu preciso dizer que isso não é apenas uma questão de conteúdo adicional. Entender a ordem realmente importa: a história se estende por cerca de um século anos (mais ou menos), e grandes eventos em um ramo ecoarão em outro. Se você escolher cenários aleatoriamente, poderá acabar vendo consequências sem as causas, novos personagens introduzidos sem contexto ou recompensas emocionais que parecem "Espera, quem era esse cara mesmo?".

Através dessa lista de capítulos para escolher o jogo não conta, na verdade, uma única história — ele conta duas narrativas completamente distintas. De um lado, temos a história de Gustave XIII: o príncipe exilado com um rancor do tamanho de uma montanha. Do outro, temos a saga de Wil Knights e sua família de caçadores de tesouros em busca dos segredos dos enigmáticos Quells.

Parece simples? Bem, claro que não. Os capítulos que aparecem no mapa não são apresentados em ordem cronológica — eles simplesmente aparecem na ordem em que os desenvolvedores quiseram colocá-los no seu colo. Portanto, se você escolher o capítulo "errado" primeiro, pode pular anos, perdendo grandes partes do desenvolvimento do personagem e eventos importantes. Naturalmente, o jogo não dá nenhuma pista de que isso possa acontecer, nem uma linha do tempo para ajudar a acompanhar. Tudo que vc tem é a idade na tela de status do personagem.

Essa timeline na hora de escolher o capítulo é uma cortesia do remaster de 2025, o original tinha só o nome mesmo

Mas aqui está a coisa: mesmo que você siga um guia e jogue tudo em perfeita ordem cronológica... a história ainda não é exatamente clara. A narrativa deixa enormes lacunas para o jogador preencher, como se o jogo estivesse desafiando você a bancar o detetive e costurar tudo sozinho. E a tradução original em inglês também não é exatamente uma obra-prima de clareza (felizmente, a remasterização de 2025 corrigiu um pouco disso).

Por exemplo: em certo momento, Gustave trama um plano astuto para se tornar o conselheiro de um duque local. Grande intriga política, certo? Mas então, no capítulo seguinte, ele de repente está governando toda a região. Como ele conseguiu? Golpe? Suborno? Chantagem? O duque tropeçou em um tapete particularmente agressivo? O jogo nunca te diz. Você deve apenas presumir: "É, acho que Gustave fez algo fora da tela".

E essa é uma das lacunas fáceis de preencher. Na maioria das vezes, os saltos são tão abruptos que parece que você pulou capítulos inteiros acidentalmente — só que não pulou. É assim que a história é escrita: meio contada, meio implícita, com o jogador tendo que adivinhar o resto.

É bagunçada. Muitas vezes confusa. Mas há algo estranhamente cativante nisso — como juntar os pedaços de uma história familiar fragmentada a partir de cartas e rumores espalhados. Isso força você a se envolver, a ler nas entrelinhas e a imaginar as partes que faltam. E, de alguma forma, apesar (ou por causa) de tudo isso, as histórias paralelas de Gustave e Wil se unem em algo mais rico do que a jornada habitual de um herói de JRPG. Então, quando você finalmente consegue entender o que diabos está acontecendo aqui... é bem interessante, na verdade.


Metade da história acompanha Gustave XIII, o príncipe de Thermes — capital do reino de Finney. Ele deveria herdar o trono de seu pai, Gustave XII. Mas aos sete anos de idade, durante um ritual conhecido como Cerimônia da Marca de Fogo, Gustave XIII não consegue manifestar nenhuma habilidade mágica, conhecida neste mundo como Ânima. E isso não é apenas um constrangimento menor. Nesta sociedade, Ânima não é simplesmente mágica — é basicamente vista como a essência da sua própria alma. Então, quando o jovem Gustave falha, ele não é apenas considerado sem talento: ele é rotulado como sem alma.

Sua mãe, a Rainha Sophie, tenta desesperadamente impedir seu banimento, mas não adianta. Gustave XII friamente renega o próprio filho e expulsa ele e Sophie do castelo real. Expulsos da realeza, eles são forçados a se virar nas favelas de Thermes até conseguirem escapar.

Eles são auxiliados pelo Mestre Cielmer, um mágico, professor e conselheiro que os ajuda a fugir de Thermes e buscar asilo em Gruegel, uma cidade no reino vizinho de Na. Lá, o rei de Na lhes concede uma mansão — mas, embora Gustave agora tenha segurança e privilégios, ele não consegue se livrar da amargura da rejeição.

Crescer ouvindo, repetidamente, que não tem alma o molda. Gustave se torna frio, calculista e implacável. E o jogo deixa a questão ambígua de forma interessante: ele é realmente tão implacável porque, como afirma a tradição, ele realmente não tem alma? Ou ele se tornou assim precisamente porque a sociedade continuava lhe dizendo que ele era um monstro de qualquer forma? A história não oferece uma resposta — ela a deixa em aberto, e isso é parte do que torna seu arco tão envolvente.

A partir daí, acompanhamos a ascensão de Gustave ao poder. Deserdado ou não, ele continua ambicioso, brilhante e teimoso o suficiente para submeter o mundo à sua vontade. Ao longo de décadas, ele reconquista sua terra natal, pedaço por pedaço, por meio de diplomacia, astúcia e conquistas diretas. A narrativa é repleta de alianças instáveis, intrigas políticas, traições e parcerias instáveis, enquanto Gustave constrói um novo legado por pura força de vontade.

Por fim, por volta dos cinquenta anos, Gustave encontra seu fim no campo de batalha — possivelmente traído por seus aliados, embora o jogo também deixe isso como um ponto de interrogação. E após sua morte, a história não para simplesmente: ela se passa mais três décadas explorando o que acontece com as terras que ele moldou e o vácuo de poder que ele deixa para trás. É um épico político, confuso e fragmentado — mas, quando você recua e vê todo o arco, ele se torna algo genuinamente rico e trágico.

A segunda história no jogo pertence a Wil Knights, um membro de uma família rica de chamados "escavadores". Neste mundo, existem relíquias antigas de uma civilização há muito perdida, enterrada sob a terra, conhecidas como Quells — artefatos de imenso poder mágico e, obviamente, também de imenso valor monetário.

O sonho de Wil é tornar-se o maior caçador de Quells que o mundo já conheceu. Sua história é muito menos sobre política e tronos e muito mais dungeon crawling clássico: ele ouve rumores sobre um Quell lendário, reúne seus companheiros e se aventura em ruínas antigas, masmorras labirínticas e profundezas infestadas de monstros para recuperá-lo.


Mas há um fio condutor maior que une suas aventuras: a busca por um Quell específico, conhecido simplesmente como "O Ovo". O Ovo é um artefato extremamente poderoso — mas também é extremamente perigoso. Ele corrompe quem o possui, distorcendo até as intenções mais puras em obsessão e loucura. Pense nisso como o Um Anel deste mundo: uma relíquia amaldiçoada tão perigosa que sua própria existência ameaça tudo.

Com o passar dos anos, Wil se torna o escavador mais renomado vivo, respeitado em todo o continente. Mas essa fama lentamente se transforma em obsessão: ele é consumido pela ideia de que precisa encontrar e destruir o Ovo antes que ele caia em mãos erradas. À medida que Wil cresce e se aposenta de sua vida de aventuras, a história muda silenciosamente para a próxima geração: seu filho, Rich Knights. Rich segue os passos do pai como escavador, inicialmente em busca de fortuna e aventura, mas inevitavelmente atraído para o mesmo caminho fatal do Ovo. Na época que sua sua filha, Ginny, nasce ele se torna obsecado com o artefato amaldiçoado — e eventualmente desaparece em sua jornada final, para nunca mais retornar.

É aqui que a narrativa multigeracional do jogo funciona melhor: ela não conta apenas a história de Wil, mas traça a maldição do Ovo através da linhagem de sua família, sugerindo um ciclo trágico em que o passado continua assombrando o presente. E embora a história de Wil possa parecer mais simples e linear do que a intrincada saga política de Gustave, ela carrega seu próprio peso melancólico — uma família condenada pela obsessão por um poder que não conseguem controlar.

A terceira metade do jogo (não questione minha matemática) pertence a Ginny Knights — filha de Rich e neta de Wil. E, fiel ao legado da família, a vida de Ginny também se envolve na maldição do Ovo. Motivada pela determinação (e talvez por uma teimosia herdada do avô), Ginny parte em busca da relíquia que tirou a vida de seu pai. Sua busca a leva a se aprofundar ainda mais nas ruínas e nos segredos que sua família persegue há décadas. Eventualmente, Ginny encontra o Ovo — e, ao fazê-lo, fecha o ciclo da história. Nesse ponto, o Quell amaldiçoado acaba nas mãos dos Gustaves, conectando finalmente os fios antes separados da narrativa.


O que você encontra não são apenas três arcos de personagens aleatórios, mas um épico multigeracional que se estende por quase um século. Ele aborda a ascensão e queda de um exilado real, a trágica obsessão de uma família por poderes proibidos, conspirações políticas, guerras e — em sua essência — um objeto amaldiçoado que envenena silenciosamente todas as vidas que toca.

Imagine algo tão extenso e rico em personagens como Game of Thrones — mas contado ao longo de três gerações e apresentado em um formato deliberadamente fragmentado. A história salta através das duas cronologias, e posteriormente a história de Ginny como uma conclusão para a saga, permitindo que você junte os eventos como um mosaico. É uma estrutura narrativa que se assemelha mais a algo que você veria em filmes como 21 Gramas ou Amnésia, onde a narrativa é tudo menos linear.

É confuso. Às vezes frustrante. Mas também é incrivelmente ambicioso — e, honestamente, o jogo mais ousado em termos de narrativa que já abordei neste blog... bem, pelo menos desde XENOGEARS. E embora definitivamente não funcione para todos, para aqueles dispostos a investir tempo para desvendar tudo, SaGa Frontier 2 oferece uma das histórias mais ricas, estranhas e assombrosas que a era PS1 já produziu.

Então... o que eu realmente acho dessa bagunça gloriosa? Bem, é uma bagunça. Mas é uma bagunça boa ou ruim? Honestamente... as duas coisas. Por isso eu quero dizer que eu realmente admiro o que SaGa Frontier 2 tenta fazer. Mas sou muito menos fã de como ele realmente faz isso.


Mesmo depois que você finalmente entende todos os sistemas misteriosos e não explicados, o jogo ainda parece desajeitado pra caramba. Como suas magias dependem das propriedades elementais do seu equipamento, obter uma nova peça de armadura ou uma espada mais brilhante não é apenas uma questão de "melhorar atributos". Agora você precisa verificar: se eu trocar minha arma, ainda vou ter os elementos que eu preciso? E se não, você precisará reorganizar todo o seu equipamento e configurações de Arte para manter as afinidades elementais corretas.

Acrescente a isso o fato de que a maioria das armas tem um número limitado de usos antes de quebrar (com exceção de algumas armas especificas especiais), então você também precisa ficar constantemente de olho na durabilidade. Transforma o que deveria parecer um progresso — "oba, encontrei uma espada melhor!" — em "ótimo, hora de reconstruir completamente o equipamento deste personagem do zero...".

E não para por aí. O jogo fica trocando seu grupo o tempo todo. Você lida com duas histórias distintas, com elencos completamente distintos, além de saltos temporais regulares dentro de cada história, onde os personagens envelhecem, saem ou novos rostos entram. Narrativamente, faz sentido — afinal, as pessoas entram e saem da vida umas das outras. Mas em termos de jogabilidade é exaustivo.

Cada novo cenário leva pelo menos uma hora: meia hora só mexendo nos personagens, reorganizando sua lista de Artes e garantindo que seu novo membro do grupo não entre na masmorra um completo inútil... e só então você realmente consegue jogar. É menos "aventura épica" e mais "passar a noite enterrado em menus".


E isso te desgasta. Sempre que um novo personagem aparece de repente na tela, conversando amigavelmente com Wil ou Gustave, seu primeiro pensamento não é "legal, um novo personagem jogável!" — é mais como: "Ugh, ótimo, outro cara cujo equipamento e artes eu vou ter que configurar do zero".

Esse é o trágico paradoxo de SaGa Frontier 2: é fascinante e frustrante, profundamente ambicioso e quase masoquista. Ele quer ser esse épico grandioso, experimental e multigeracional — e, de muitas maneiras, é. Mas também faz você pagar caro por cada momento de brilhantismo, soterrado por camadas de sistemas opacos e microgerenciamento implacável.

O mesmo vale para a história: é muito trabalho para o que se propõe a fazer. Como eu disse antes, a tradução na versão original é, na melhor das hipóteses, miserável, e honestamente não sou um grande fã de histórias em que você precisa de um detonado aberto do lado só para entender o que está acontecendo.

Dito isso... ao mesmo tempo, também acho que se o jogo tivesse usado uma narrativa linear, teria sido bem menos interessante. Tenho sentimentos bastante mistos sobre como a história é contada — os saltos no tempo, as peças que faltam, as duas linhas narrativas que se cruzam apenas ocasionalmente — mas não posso negar que contar uma saga abrangente que abrange quase um século, três gerações e vários reinos, é nada menos que épico e extremamente ambicioso.

Então, no final das contas... SaGa Frontier 2 é a própria definição de uma bela bagunça. É um jogo em que cada passo à frente parece um arrancar dente, mas, de alguma forma, quando você dá um passo para trás e vê a coisa toda, ele tem seu próprio brilho estranho.

A história é confusa e inacessível sem um guia — mas também é genuinamente épica: uma saga de quase um século sobre três gerações, maldições antigas, reinos ascendendo e caindo, e questões sobre destino, legado e a natureza da própria alma. E, apesar de todas as minhas reclamações, tenho que dar todo o crédito ao jogo por isso: ele ousou fazer algo que quase ninguém mais tentou, você não encontrará nada parecido, especialmente contado neste formato fragmentado e com saltos temporais.

A jogabilidade é complexa ao ponto da loucura, com mais microgerenciamento do que qualquer pessoa sã poderia desejar — mas também silenciosamente fascinante, porque, uma vez que você se dá conta, você vê que há um sistema enterrado sob o caos. Ele simplesmente não se importa se você o descobrir. Verdade que eu seria mais feliz com um balanceamento melhor, não é raro você tomar um softlock pq de repente se encontra em uma dungeon da qual não pode sair sem skill level o suficiente pra enfrentar os inimigos e não tem recursos pra grindar, só dando load em capitulos anteriores... caso você tenha guardado o save, o que eu recomendo fortemente. 

E não vamos esquecer: o jogo é lindo. Em termos de estilo temos algo entre LEGEND OF MANA e FINAL FANTASY TACTICS, ele tem esses cenários deslumbrantes em aquarela, sprites delicados de personagens e uma estética pintada à mão que continua única até hoje. É, honestamente, um dos jogos de PS1 mais bonitos já feitos. É uma pena, porém, que a trilha sonora não corresponda à mesma grandiosidade; é perfeitamente boa, mas nunca atinge os patamares arrebatadores e icônicos que você esperaria de uma história tão ambiciosa.

Então, SaGa Frontier 2 é para todos? Absolutamente não. Mas para aqueles dispostos a lidar com seus sistemas teimosos e narrativa enigmática, ele oferece algo que você não encontrará em nenhum outro lugar: um experimento que, apesar de todas as suas falhas, ousou ser verdadeiramente diferente. E, ame-o ou odeie-o, só isso já vale a pena lembrar.

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 151 (Maio de 2000)


MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
EDIÇÃO 063 (Junho de 1999)


MATÉRIA NA GAMERS
EDIÇÃO 035 (Novembro de 1998)


EDIÇÃO 036 (Dezembro de 1998)


EDIÇÃO 057 (Março de 2000 - Semana 3)