sexta-feira, 8 de agosto de 2025

[#1526][Set/1989] DJ BOY


Uma coisa curiosa sobre revistas antigas de videogame — especialmente as brasileiras, que é o escopo desse blog, afinal — era a seção de "flashbacks". Normalmente, era apenas uma desculpa para trazer de volta jogos que já haviam coberto anos antes, normalmente como filler para fechar o número de páginas da edição. Mas de vez em quando, eles tiravam a poeira de algo realmente antigo, algo que nunca haviam analisado antes. E então você virava a página e lá estava: uma página inteira sobre algum fóssil esquecido de um jogo que, de alguma forma, havia passado despercebido.

Imagine a cena: abril de 2000. Sobrevivemos ao bug do milênio, o PlayStation 2 já está fazendo sucesso no Japão e o Dreamcast entra na reta final da sua breve vida. Mas aqui é Brasil. Um lugar onde o tempo não é medido pelas gerações de consoles, mas por quanto tempo seu primo se apega ao seu SNES antes de passar adiante pra vc. Então, não era incomum um pequeno artigo sobre um jogo de uma década atrás, disfarçado de joia retrô. Entra DJ Boy — uma versão para Mega Drive de um jogo de arcade de 1989 que ninguém pediu para lembrar... mas aqui estamos. A vida é estranha assim.

As caixas americanas do começo da vida do Mega Drive eram estranhas

DJ Boy, é um beat'em-up da Kaneko (uma desenvolvedora mais lembrada aqui por... uh, CHESTER CHEETAH: TOO COOL TO FOOL, eu acho?), acompanha a jornada de Donald J. Boy. Conhecido por seus amigos — e provavelmente por ninguém mais — como "DJ Boy", nosso herói parte em uma nobre missão: resgatar sua namorada sequestrada das garras de um punk vilão.

Por que ela foi sequestrada, você pergunta? Bem, é um beat'em-up dos anos 80. Se você não está abrindo caminho por uma cidade inteira no soco por sua cara-metade sequestrada, você está realmente namorando? Mas aqui está o plot twitter: nosso vilão não é um pervertido comum que sequestra namoradas apenas pq ele pode. Não, sua motivação é que ele quer impedir que DJ Boy participe de um torneio de luta de patins. Sim, uma corrida de patins de full contact que parece ser o evento definitivo da  sua geração! ... e que jamais será mencionado novamente fora do manual.

Claro, resgatar sua namorada de uma gangue de punks de rua já é clichê mais que suficiente, então será que que DJ Boy tenta se destacar de outras maneiras? Bem... mais ou menos. O único truque na manga aqui realmente são os patins. Nosso herói desliza pelas ruas como um protótipo de rádio Jet Set Radio, e isso  muda um pouco a jogabilidade. Algumas fases apresentam rolagem lateral automática, forçando você a pular sobre buracos e desviar de lixo aleatório na estrada como se estivesse em um spin-off de Road Rash da Shopee. 

E é... basicamente isso. Tem também um golpe de "soco duplo" quando você pressiona os dois botões de ataque juntos, permitindo que você acerte os inimigos dos dois lados. Não é exatamente chamativo, mas pelo menos não custa energia, algo bem raro nesse genero, então você pega o que puder. E então tem o verdadeiro MVP do arsenal: a gloriosa voadora na cara. Não é elegante, mas funciona. Principalmente contra chefes. Quer dignidade? Vá jogar Virtua Fighter. Quer uma bota cheia de rodas no meio do nariz do boss? DJ Boy tem vc coberto. Agora, se estamos falando mecanicamente, entretanto, a coisa pela qual esse jogo é mais lembrado é pelo quanto ele não tem a mais remota vergonha de arrancar o seu couro. 


BEM, SIM, É UM BEAT'M UP DE ARCADE, O QUE VC ESPERAVA?

Tá, eu espero que um arcade tente usar a dificuldade para arrancar moedas como se estivesse sendo pago por isso... porque meio que é, né? Mas o que eu me referia é a versão para Mega Drive: você tem quatro hits de energia e era isso. Sem vidas extras, sem continues. Embora seja possível usar os pontos pra comprar mais em uma lojinha no fim da fase, definitivamente é um dos beat'm ups mais dificeis ever exclusivamente por causa dessa questão da pouca energia que vc tem, 4 porradas e acabou o jogo, começa do zero.

Quanto aos inimigos que você enfrentará, bem... eles são o clássico beat'em-up. Uma mistura de valentões de rua vagamente punks e outros destroços humanos variados, embaralhados e repetidos até a exaustão. Mas então, os chefes chegam — e nossa! Esses são os momentos em que o jogo para de tentar fazer sentido completamente e simplesmente... olha, eu poderia tentar explicar, mas, sinceramente é  melhor você ver com seus próprios olhos. Palavras não farão justiça ao que a equipe de design deve ter alucinado naquele dia fatídico de 1989:


Olha, eu já vi algumas lutas de chefes estranhas na minha vida. Já atirei nos milhos de um cocozão senciente em Conker Bad Fur Day e uma vez dei um suplex em um trem fantasma em FINAL FANTASY 6. Mas DJ Boy... cara... DJ Boy é outro nível inteiramente diferente de "por favor, não deixe meus pais entrarem enquanto eu estiver jogando isso".

O primeiro chefe é... bem... não tem jeito delicado de dizer isso: é uma caricatura de uma mulher negra saída diretamente dos cartoons dos anos 30 que te ataca com peidos. Olha, eu não estou aqui para apontar o dedo como a polícia da comédia, então é melhor deixar alguém que entende bem mais do que eu explicar o que tem de errado nessa representação:


O que eu posso dizer é que a SEGA, veja bem, a SEGA achou que eles tinham pegado pesado demais e no port de Mega Drive eles fizeram algumas alterações. Cara, eu entendo a Nintendo censurar alguma coisa, diabos, eu ESPERO a Nintendo censurar alguma coisa a esse ponto, mas você sabe que cruzou a linha quando a SEGA acha que foi longe demais. Pense sobre isso.

Então, sim. Esse chefe existe. Foi uma escolha. Uma péssima. Agora, depois desse pequeno desvio de "como isso foi aprovado", você não tem a mais remota ideia do que esperar daí pra frente. Bem, a boa notícia é que o segundo chefe é bem menos ofensivo, ele é só um mendigo gaúcho que vira um stripper de sunga! 

... espera, o que?


É. Apenas um cara musculoso de sunga minúscula, óculos escuros e sapatos. O homem parece ter pegado o caminho errado a caminho do set de Magic Mike e acabou em uma briga de rua. E, sinceramente, depois do primeiro chefe, isso parece um limpador de paladar. O Adônis besuntado em óleo dançando sensualmente na direção de um adolescente patinador é o menor dos problemas desse jogo. Na maioria dos jogos, um homem quase nu te dando tapas em um beco seria considerado um exagero, aqui é apenas outra terça-feira. É só um cara com musculos e más intenções. Eu posso lidar com isso.

Depois de lidar com o Mr. Musculo precisando pagar os boletos do mês e sobreviver a uma mirror match contra uma versão sua de um universo alternativo — que é, por razões que não serão questionadas, um clone afro-americano do DJ Boy — você provavelmente está pensando: "Certo, isso deve estar levando a uma progressão lógica"  E está. Ah, está mesmo. Você luta... contra um letreiro de neon que é um palhaço. E que está vivo... eu acho?


Nesse ponto, o DJ Boy deixa de ser um beat'em-up e se torna uma instalação de arte. Você não está mais lutando contra punks de rua, está lutando contra conceitos abstratos e possivelmente contra sua própria compreensão da realidade. Ele pisca, se mexe, ele... eventualmente morre e deixa para trás apenas a cabeça, que salta pela tela como um balão de brinquedo mal-assombrado do inferno. Eu realmente não faço ideia do que essa coisa realmente é e nuito menos pq ele quer impedir que DJ Boy resgate sua namorada.

Então, depois de percorrer toda a galeria de vilões novamente — porque claro que tem um boss rush, este é um jogo dos anos 80, reutilizar sprites era uma forma rápida e barata de alongar a duração do jogo a preço zero —, chegamos à batalha final. E quem está por trás de toda essa trama? Aquele que orquestrou o sequestro, as brigas de rua, o plano de sabotagem do roller derby maligno e nada explicado?

Big Mama. De novo.


Sim, a mesma caricatura racial ambulante de Round 1, de volta para um bis — mas desta vez, com uma nova roupagem! O seu uniforme de Mammy Two Shoes se foi, e em seu lugar... um quimono laranja e uma faixa kamikaze da Segunda Guerra Mundial. Eu não estou brincando. O chefe final de DJ Boy é uma mulher negra, em trajes tradicionais japoneses, usando a faixa literal dos pilotos suicidas militares imperiais do Japão. Porque se você achasse que este jogo já tinha ofendido todo mundo no planeta... adivinhe? Eles encontraram um jeito de cruzar a linha de chegada invocando também o imperialismo dos tempos de guerra.

Sabe, o regime que cometeu atrocidades tão horríveis que até os nazistas disseram "eita, pega leve aí, meu consagrado!". E, obviamente, nada é explicado. Não há enredo. Nenhuma reviravolta. Só racismo e glorificação a crimes de guerra. A essa altura... eu nem tenho mais piadas pra fazer, apenas contemplar a tela de boca aberta. Você poderia me dizer que a cena final termina com DJ Boy socando as Convenções de Genebra e eu provavelmente acreditaria. 


Alias, falando em terminar, sim, DJ Boy te dá um desfecho... no Mega Drive. No Arcade você derrota a ultima chefe, o jogo dá Game Over e termina, coloque outra ficha e vida que segue. A Sega ao menos fez o seu port ter um final... embora eu não tenho certeza que isso é necessariamente uma coisa boa. Pq depois de derrotar a chefe final — a Kamikaze Mammy Two Shoes, e eu juro por todas as divindades dos games que isso realmente aconteceu — você é recompensado com um dos finais mais desconcertantes e lindamente quebrados que já vi.

A tela escurece, nosso herói DJ abraça sua amada Maria, e esta obra-prima da literatura te entrega um texto que faria Shakespeare querer morrer de novo por não ter escrito isso primeiro:

“Having just rescued Maria, the only you have ever cared for, you help her tightly in your arms frightned that you lose again.
Evening swept over the cold, barren city.
Colors fading until soon only a black silhouette could be seen.
You whispered ‘I'm sorry that i didn't come sooner, please don't cry.’
And as fate foretold, together you lived happily ever after.”

Eu quero deixar isso bem claro: essa é uma transcrição literal. Sem erros de digitação, ao menos não da minha parte. Eu meio que sinto que o final de DJ Boy quis ser poético, mas então tropeçou no Bing Translator em um dia particularmente ruim. 

Mas, no final, esse monólogo de encerramento quebrado me deu uma pista sobre o que realmente aconteceu aqui. Entenda que essa bagunça de texto não é uma uma localização ruim. Foi assim que apareceu na versão original em japonês, e isso realmente explica tudo. A gramática ruim, a confusão tonal, a faixa kamikaze na cabeça de um estereótipo racista dos anos 30 — tudo faz sentido com esse texto. Porque, claramente, os desenvolvedores folhearam uma lista de crimes de guerra contra humanidade da Convenção de Genebra, com o seu baixo entendimento do inglês olharam e entenderam que era uma checklist de coisas a fazer


É a única explicação lógica para o que acontece em DJ Boy. Nada mais faz sentido. Você vai de lutar contra roller punks a estereótipos que pertencem a um museu de propaganda, com um stripper masculino e um outdoor-palhaço. 

Sinceramente, eu já joguei muitos beat'em-ups a este ponto na minha vida. Já dei bodyslam em mutantes, soquei ninjas, apliquei suplex em ciborgues. Mas nunca, jamais, lutei contra um stripper masculino, várias caricaturas raciais e uma metáfora visual para crimes de guerra literais — tudo no mesmo cartucho. Isso só no Mega Drive mesmo.

Genesis really does what Nintendon't.

MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
EDIÇÃO 073 (Abril de 2000)