Você está sentado em frente a um monitor CRT bege. O zumbido fraco do seu PC se mistura com o zumbido de um modem de 56k, aquele guincho agudo que você consegue ouvir na sua memória mesmo decadas depois. Você está online — mas a internet ainda não é o oceano estrondoso de dancinhas do TikTok, vídeos sensuais e conteúdo alimentado por algoritmos. É mais como um pequeno arquipélago de ilhas pessoais, cada uma construída à blogs pessoais.
Em algum lugar, enterrado a três cliques de profundidade no diretório do Yahoo, você encontra: "Mark's Dorm Cam – Ao Vivo do Quarto 204". A página tem um fundo HTML simples, talvez com Comic Sans para dar um toque especial. Uma única imagem carrega no topo — 240×180 pixels, ligeiramente granulada. Mark está em sua mesa, curvado sobre um livro didático. Você espera. Depois de dez segundos, a imagem pisca e atualiza. Agora ele está pegando uma caneca.
Talvez tenha haja um espaço de bate-papo no final da página, onde cinco outros esquisitos estão digitando em letras minúsculas:
A transmissão é lenta, cai frequentemente, às vezes congelada — mas essa lentidão faz com que cada pequeno movimento tenha significado. O gato pula na mesa? Grande evento. O colega de quarto do Mark chega? Notícia de última hora.
Você pode ter tropeçado em uma câmera de aquário na Flórida, com uma placa escrita à mão colada no vidro: "Oi, internet!", ou uma câmera de lavanderia onde a coisa mais emocionante é alguém esquecendo as meias. Ou a lendária JenniCam, onde o mundano era o ponto principal — provando que a própria vida era o espetáculo.
Os videos são pequenos, mas a imaginação é grande. Você preenche as lacunas entre os quadros. Você começa a se perguntar sobre as pessoas do outro lado. De uma forma estranha, você se sente mais próximo delas do que da maioria das pessoas da sua rotina.
Estamos em 2000. A internet ainda é mais uma pequena vizinhança. Cada câmera é uma janela que alguém deixou aberta, convidando você a espiar. Nenhum algoritmo te empurrou o link — você encontrou sozinho, como descobrir uma casa na árvore secreta.
Amanhã, você vai dar uma olhada na DormCam do Mark. Talvez ele esteja estudando de novo. Talvez ele esteja dormindo. De qualquer forma, você estará lá. Porque neste momento frágil, conectado por discagem, você está testemunhando algo que nunca existiu antes na história da humanidade: uma conexão direta e sem filtros entre dois estranhos, do outro lado do mundo, em tempo real.
Se você cresceu com Twitch, YouTube Live e criadores transmitindo de câmeras 4K com ring lights, talvez não entenda por que uma webcam granulada com atualização de 10 segundos pareceria magia. Mas você precisa lembrar: antes dos anos 2000, se você visse alguém em uma tela, era porque uma emissora de TV, estúdio de cinema ou anunciante permitia que essa pessoa estivesse lá. Havia um muro — um muro enorme — entre "o público" e "a transmissão". E então, um dia... o muro rachou.
Claro, você pode imediatamente pensar que isso era uma forma de farmar dinheiro com pouco esforço, porque é assim que as coisas funcionam hoje. Mas na época, não tinha nada do tipo porque simplesmente não havia recompensa financeira para isso.
Não existam anunciantes, não tinha OnlyFans, não existam inscrições pagas de membros. Na verdade a mera ideia de colocar seu cartão de crédito na internet era uma aventura que não devia ser feita levianamente. Sim, algumas Live Cams pediam doações pelo paypal ou algo assim, mas a maioria não. Na verdade, algumas das primeiras webcams mais famosas foram:
E sabe de uma coisa? Nós assistíamos. Nós amávamos assistir. Para as pessoas naquela época, era como abrir uma porta secreta para outra vida. Hoje, você pode clicar no Twitch e ver milhares de pessoas ao vivo a qualquer momento. Mas em 2000, encontrar uma câmera ao vivo era como tropeçar em um sinal de rádio pirata — você não sabia quem eram, mas instantaneamente se sentia parte do mundo delas. Era hipnotizante porque era real — e real, naquela época, era inédito.
Enquanto isso, no lustre do castelo... havia a Sega. Você sabe, nossa velha amiga Sega, a esse ponto da história estava naquela fase maravilhosamente caótica em que tentavam quase tudo, desde que não fosse muito caro. Eles tinham o Dreamcast, tinham uma sangria financeira que parecia um episódio de Cavaleiros do Zodíaco e jogavam ideias na parede no desespero pra ver o que colava. SPACE CHANNEL 5? Claro. CHUCHU ROCKET? Por que não. Um jogo chamado "Samba de Amigo" pra ser jogado com maracas na forma de controles? Manda bala. Você pode então argumentar que samba não envolve maracas, mas então isso é conversa para outro dia.
O que importa é que entra Tomoko Sasaki — a compositora por trás de RISTAR e NIGHTS INTO THE DREAMS. Ela está em uma reunião, a Sega está discutindo brainstorm e ela propõe algo ... inusitado:
"E se fizéssemos um jogo inspirado nessa coisa toda de LiveCam?"
A sala não ri dela. Porque na Sega da época, com as contas que eles tinham para pagar, nada era estranho demais. Se fosse diferentão, barato e talvez — só talvez — pudesse pegar, recebia sinal verde.
E aqui está a coisa: eles podiam reutilizar a mesma engine que usaram em SHENMUE. Isso significava que a parte mais difícil (e portanto CARA) — criar um mundo 3D crível — já estava resolvida. Tudo o que precisavam era preenchê-lo com alguma coisa estranha.
É assim que chegamos a Roommania #203 — uma bizarrice do Dreamcast (e portanto nunca saiu do Japão, obviamente) em que você basicamente sintoniza o apartamento do morador do quarto 203 e se intromete em sua vida, tentando fazer a vida dele mais interessante. Imagine uma Live Cam onde você pode fazer pequenas mudanças: um pôster cai da parede, um objeto muda de lugar misteriosamente, você faz ele ficar um pouco interessado em beber água do nada.
Nossa história aqui é que você é um deus. Bem, não "Ô" Deus-vou-matar-geral-afogada-com-enchente-pq-fodasse-mwahahaha, mas mais um pequeno kami que está está entediado. Pra matar o tempo, se divertir ou sei lá o que, o kami então decide dar um caderno que pode matar pessoas para um sociopata só pra ver a zoeira que dá tornar a vida de um estudante colegial mais interessante.
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Mostrar a pia pra dizer que tem que fazer Neji beber água é fácil, agora o que diabos eu deveria fazer com uma "pista" que nem essa? |
Agora, talvez a coisa pela qual Roommania #203 (não) seja conhecido é que tem uma maneira infalível de melhorar o humor de Neji e torna-lo mais cooperativo para tira-lo do seu ciclo interminável de fumar, tirar sonecas e ficar olhando para a TV é colocar um CD da sua ídol favorita, Serani Poji. Para um kami tentando tirá-lo da depressão, ela é basicamente uma arma secreta.
Só que essa é a parte interessante: Tomoko Sasaki, junto com outros músicos da Sega, criaram Serani Poji como uma ídol fictícia apenas para dar um toque especial a Roommania. Ela deveria fazer parte do cenário, uma "celebridade falsa" para dar corpo ao mundinho de Neji. A coisa é que as pessoas realmente gostaram da música dela. Quando o jogo foi lançado, a trilha sonora do jogo (vendida como um produto separado para quem quisesse comprar, uma prática muito comum no Japão) acabou se tornando um produto popular por conta própria, muita gente que sequer sabia que Roommania era um jogo comprou o CD da trilha sonora pq a música é boa como CD de música mesmo.
Em pouco tempo havia fóruns de discussão não sobre o jogo, mas sobre essa estrela pop inventada em particular. Sasaki viu essa repercussão online e decidiu "well, why hell not?". Ela transformou Serani Poji em uma idol do mundo real, álbuns, apresentações ao vivo e produtos licenciados.
Serani Poji superou Roommania tão completamente que, hoje em dia, a maioria dos fãs de Serani Poji sequer faz ideia de que ela nasceu dentro de um jogo peculiar do Dreamcast sobre um estudante universitário entediado. É como descobrir que a Maria Takeuchi começou como uma NPC em um simulador de pesca.
Roommania #203 hoje é um jogo completamente esquecido, e certamente a Sega de hoje não faz a mais remota ideia que tem essa franquia (sim, franquia, pq o Roommania ainda receberia outros títulos) no catalogo. Mas Serani Poji é um grupo real ainda fazendo música, lançando singles e se apresentando, a porra toda. Então, se você encontrar uma música da Serani Poji no Spotify e pensar: "Hã, música maneira", lembre-se: em algum lugar, no canto de um apartamento japonês fictício por volta de 2000, um preguiçoso está concordando com você — e ele gostou dela primeiro.
E essa é a história de não apenas um jogo (MUITO) estranho de Dreamcast, mas uma fotografia tirada em uma camera Kodak de filme e revelada em uma loja que existia apenas para isso duas semanas depois ou mais. É sobre dias de conexão discada que vibravam com um tipo diferente de magia. Eu passava horas em sites criados por indivíduos, não por conglomerados. Não eram perfeitos e, mais sim do que não, não tinham muita utilidade, mas tinham personalidade. Cada um era um vislumbre da mente de alguém, cheio de histórias, peculiaridades e perspectivas únicas.
Hoje, sites independentes são relíquias, espalhadas nas ruínas de uma internet mais pessoal. Tudo está centralizado agora, e aqueles cantos estranhos e encantadores da web estão escondidos ou desapareceram completamente. Não tenho absoluta certez se isso é bom ou ruim. Por um lado, é bom poder encontrar o que eu procuro sem vasculhar dezenas de páginas irrelevantes. Mas, por outro, algo intangível se perdeu — uma empolgação que vinha de não saber o que encontraria em seguida.
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Bem, não dá pra negar que você está tornando a vida do Neji mais... huh... interessante |
É como se trocássemos a exploração pela conveniência e, agora, a outrora vibrante web se transformou em um feed higienizado de conteúdo previsível. Sinto falta da sensação de me perder online, da serendipidade de tudo isso. A internet costumava parecer uma cidade enorme com becos sem sinalização e cafés escondidos. Agora, parece mais um shopping — organizado, elegante e impossível de se perder.
Eu acho que esse é um caminho sem volta, que avança a cada dia para a otimização, para a monetização, para o cinismo frio dos resultados. Assim como os jogos bizarros da Sega como esse e as Live Cams que não estavam preocupadas com atender algorítimos e que você não precisava pagar (via superchat ou assinatura de um OnlyFans da vida) apenas para falar com alguem que parecia interessante, essa é uma era que se perdeu para sempre. A era da inocencia e da experimentação morreu, e uma eficiencia corporativa e fria tomou seu lugar.
... ou será que em algum lugar embaixo da imensa carcaça da Internet Morta ainda existe vida, humana, e esquisita pulsando em algum lugar?