domingo, 17 de agosto de 2025

[#1532][Dez/2000] EVIL DEAD: Hail to the King


O ano é 1977 na Universidade Estadual de Michigan, onde um estudante de cinema de 18 anos acaba de realizar o que, para ele, foi o maior triunfo de sua jovem vida: ele e seu grupo de amigos de infância filmaram uma comédia boba chamada "The Happy Valley Kid" e conseguiram exibi-la para o público do campus (talvez um pouco bebados, mas enfim).

A parte que o deixou extasiado não foi tanto que alguém tenha assistido ao filme — isso também — mas que todo o projeto custou míseros US$ 700 e arrecadou quase US$ 6.000 com as exibições no campus. Para um garoto obcecado por cinema desde que aprendeu a mexer em uma câmera Super 8 na garagem dos pais, isso não era apenas encorajador. Era uma prova. Dinheiro vivo e frio, multiplicado por dez, de repente estava em suas mãos, e pela primeira vez o sonho não parecia uma sonho de criança — parecia uma carreira esperando para ser construída.

Samuel Marshall Raimi olhou para os amigos, com os olhos arregalados, e disse: "Pessoal, acho que podemos ganhar a vida fazendo isso". Ao que seu amigo de infância e estrela de "The Happy Valley Kid", Bruce Campbell, abriu um sorriso e respondeu: 

Um segundo ponto de virada veio com o próximo filme deles, "It's Murder". Sam Raimi sempre foi apaixonado pelos clássicos da comédia pastelão — os Três Patetas, Buster Keaton, todos os grandes nomes que conseguiam fazer o público gargalhar sem dizer uma única palavra. E enquanto filmava "It's Murder", uma coisa lhe ocorreu: comédia física e terror não são tão diferentes assim, não é? Alguém tropeça em uma cena, uma série de acidentes violentos se desenrola e a piada se transforma em caos. A única diferença real é que Moe, Larry e Curly acabam com uma torta na cara, enquanto uma vítima de terror acaba encharcada de sangue falso.

Mas também sim uma diferença crucial entre os dois gêneros — uma que Raimi logo percebeu. O público de comédia era implacável: se uma piada não funcionasse, você ouvia o silêncio e todo mundo descascaria seu filme. O público de terror, por outro lado, é muito mais tolerante. Não exigiam cenários inteligentes ou piadas espirituosas — apenas tensão, um bom susto e talvez um balde de xarope de milho vermelho para completar. E estávamos no início dos anos 80, o alvorecer de uma era de ouro do cinema  trash. Os drive-ins não exibiam mais sessões duplas para toda a família — eles estavam produzindo filmes baratos, do tipo que se multiplicavam com ritmo frenético, enredos superficiais e mortes de mentirinha cada vez mais mais criativas.

Então Raimi e Campbell se dedicaram ao que faziam de melhor: serem idiotamente exagerados das câmeras. Só que agora, em vez de tortas de chantilly e tombos, eles tinham maquiagem de látex, sangue falso aos litros e uma obsessão crescente em levar o absurdo ao seu limite sangrento. Mais uma vez, o resultado foi um sucesso estrondoso com o público universitário. E agora, com um gostinho de sangue e um toque de grana no bolso real, Raimi sabia que era hora de dar o próximo passo — deixar as exibições na faculdade e testar a sorte no grande e selvagem mundo do cinema de verdade.


No início de 1979, Raimi, seu parceiro de longa data no caos, Bruce Campbell, e seu amigo que virou produtor, Robert Tapert, juntaram tudo que sobrado — quase irrisórios US$ 1.600 — e partiram para filmar um curta-metragem de 30 minutos, como prova de conceito, em uma casa de fazenda no Tennessee. O filme se chamava "Within the Woods" e seu único propósito era atrair investidores para algo maior.

Mas foi aqui que a engenhosidade de Raimi brilhou. Eles não tinham orçamento para criar um monstro convincente. Claro, poderiam ter jogado uma máscara de borracha e um pouco de ketchup em um amigo que tirou o palitinho mais curto pra passar vergonha, mas Raimi sabia que isso não faria muitos favores para impressionar possíveis investidores. Em vez disso, ele se apoiou em algo muito mais criativo: o monstro não apareceria. Era uma força invisível e malévola capturada inteiramente por um trabalho frenético de câmera em primeira pessoa — tomadas trêmulas e invasivas que perseguiam os atores como um predador. 

O que poderia ter parecido vulgar acabou sendo inesquecível, não apenas por causa do trabalho de câmera criativo, mas também porque Raimi tinha Bruce Campbell à frente e no centro. E Campbell tinha um talento natural. Ele podia se jogar de um lado para o outro da cena como se sua vida dependesse disso, contorcendo-se, gritando e caindo de cara no chão como um furacão da comédia pastelão — imagine a comédia física de Jim Carrey, mas mais de uma década inteira antes de Ace Ventura explodir nos cinemas.

A aposta deu certo. "Within the Woods" causou impacto, tanto que, em novembro de 1979, a equipe havia arrecadado a impressionante quantia de US$ 85.000 — dinheiro de verdade, finalmente. Com esse orçamento e uma equipe de atores corajosos, eles arrastaram câmeras de 16 mm e um roteiro de 65 páginas (naquela época intitulado "O Livro dos Mortos") para as profundezas da floresta do Tennessee. Raimi tinha apenas 20 anos, prestes a enfrentar uma exaustiva filmagem de seis semanas que mudaria a vida de todos eles.


A primeira coisa que Raimi aprendeu em seu primeiro longa foi que a vida real não se importa com seus sonhos. O desastre aconteceu quase imediatamente. A cabana que eles tinham alugado desabou, literalmente, e a substituta foi um pesadelo: sem eletricidade, sem água encanada, esterco espalhado por toda parte e moradores locais cochichando que poderia ter sido a cena de um assassinato. Era o cenário perfeito para um filme de terror — mas não para morar enquanto se filma um.

A produção rapidamente mergulhou no caos, como registrado no diário cansado do assistente Josh Becker: "Nosso diretor é um desastre de primeira... Alguém tem que [dormir aqui] já que todas as nossas ferramentas elétricas foram roubadas." Os ânimos se exaltaram, as promessas de organização evaporaram e cada dia trazia uma nova miséria. As noites congelantes do Tennessee literalmente congelaram suas câmeras. A equipe, coberta de sangue falso pegajoso feito de xarope de milho e corante não conseguia nem manusear o equipamento sem manchá-lo. Raimi contou em entrevistas que, para tocar na câmera sem transformá-la em uma massa vermelha e coagulada, eles tinham que lavar as mãos com café quente — o único líquido aquecido que eles tinham, já que a água era mais fria que gelo nas noites do Tenesse.

O cronograma previa 25 tomadas por dia. Na melhor das hipóteses, eles conseguiam seis. Na tela e fora dela, "O Livro dos Mortos" era um survival horror. No entanto, a luta se tornou parte de sua textura. A sujeira, a exaustão e a improvisação se infiltraram no celuloide, dando ao filme sua inesquecível atmosfera suja. E a necessidade forçou a inovação: ângulos holandeses, cenas filmadas de trás pra frente, máquinas de neblina que também funcionavam como aquecedores para a equipe não morrer de frio e a agora icônica "câmera do monstro" — como uma câmera antigravidade era absurdamente cara, eles prenderam a camera a uma tábua de madeira e duas ou mais pessoas corriam por ela pela floresta segurando de cada lado, criando um ponto de vista demoníaco mais eficaz do que qualquer fantasia de halloween poderia ter sido para um antagonista.

No Natal de 1979, o calvário havia destruído a maior parte da equipe. Quase todo mundo tinha picado a mula (incluindo atores), restando apenas cinco membros da equipe de produção, forçando Raimi a recrutar qualquer um que estivesse ao seu alcance para as tomadas como dublê. A coisa foi tão grave que estes ficaram conhecidos como "Fake Shemps" (uma referência aos Três Patetas), e nos créditos do filme superam o elenco creditado em quatro para um. Quando a atriz principal pediu demissão, o próprio produtor Rob Tapert botou um vestido e maquiagem pesada para terminar as cenas. Após doze semanas brutais, a filmagem principal chegou ao fim em 23 de janeiro de 1980 — mas as refilmagens se arrastaram por meses, alimentadas por uma arrecadação de fundos fragmentada.

A pós-produção se estendeu por mais um ano, com um então desconhecido Joel Coen (sim, aquele Coen, dos futuros Irmãos Coen) ajudando na edição. O custo final disparou para US$ 375.000, um salto impressionante em relação aos US$ 85.000 iniciais. Em outubro de 1981, após uma estreia estrondosa em Detroit, Raimi e companhia finalmente conseguiram um distribuidor: o lendário Irvin Shapiro, que também havia lançado A Noite dos Mortos-Vivos. Shapiro concordou em apoiá-los com uma condição: que "O Livro dos Mortos" fosse rebatizado com um título mais impactante e comercial.

Assim, nasceu Evil Dead.


Evil Dead (ou "Uma Noite Alucinante", se vc quiser a versão brasileira Herbert Richters), é claro, não é uma obra-prima cinematográfica refinada. É um slasher básico onde jovens vão de comes e bebes um por um, onde o "monstro" nunca realmente aparece na tela, e, em vez disso, Raimi joga todo o seu arsenal de truques na plateia para mantê-la fisgada. Baldes de sangue falso. Possessões no estilo Exorcista. Maquiagem questionável. Relâmpagos, neblina, objetos inanimados repentinamente ganhando vida. E no centro de tudo: Bruce Campbell se atirando através de paredes, portas e janelas como um homem possuído, mastigando o cenário com uma autodestruição sem meios termos.

E sabe de uma coisa? Funcionou. A aposta de US$ 385.000 se transformou em quase US$ 30 milhões em todo o mundo — um retorno impressionante, especialmente para um grupo de jovens da Universidade Estadual de Michigan sem experiencia nenhuma no mundo real. A notoriedade do filme foi selada não apenas por seu sucesso, mas também por sua audácia. Raimi não tinha interesse em moderar as coisas para os censores; ele levou a violência e o sangue ao limite, entregando um filme tão goresticaemnte macabro quanto possível. O resultado: polêmica. Evil Dead foi incluída entre os filmes de terror mais infames de sua época — "Holocausto Canibal" e "I Spit on Your Grave" (um dos filmes mais crus e brutais de todos os tempos, e que foi lançado no Brasil com o nome "Doce Vingança" pq o Brasil não é para principiantes) — e, nos Estados Unidos, recebeu a temida classificação indicativa X, uma categoria mais frequentemente reservada para pornografia do que para terror.

A recepção da crítica foi extremamente impressionada ao que o filme se propunha a fazer, o crítico da BBC, Martyn Glanville, deu quatro estrelas e o declarou uma estreia mais forte do que O Massacre da Serra Elétrica, de Tobe Hooper, ou A Última Casa à Esquerda, de Wes Craven. Tirando a infame cena do "estupro da árvore" — algo que realmente incomodou os críticos do hemisfério norte —, Glanville o considerou "um dos grandes filmes de terror modernos, e ainda mais impressionante quando se considera seus modestos valores de produção".

Raimi passou os anos após Evil Dead retribuindo o favor aos irmãos Coen — ajudando-os em projetos, incluindo um filme extremamente ambicioso, mas fracassado, chamado Crimewave. A sequência só viria seis anos depois, mas nessa altura as circunstâncias já tinham mudado drasticamente.


Para começar, Raimi tinha números para se gabar: Evil Dead havia transformado US$ 385.000 em quase US$ 30 milhões. Arrecadar dinheiro de repente ficou muito mais fácil, e "Uma Noite Alucinante II" conseguiu um orçamento de US$ 3,5 milhões — um salto de quase dez vezes. Mas, mais importante, o próprio Raimi estava mais experiente, mais confiante e finalmente pronto para fazer o tipo de filme que realmente queria: não um filme de terror direto, mas um desenho animado sangrento. Em termos de tom, Evil Dead II se aproxima mais de Gremlins do que de "Fome Animal"— engraçado, anárquico, absurdo e alegremente sem seriedade, apenas as tortas na cara foram trocadas por jatos de sangue e partes de corpos voando.

A prova mais clara do conforto de Raimi é que quase metade do filme é apenas Bruce Campbell na tela. E o que ele faz com esses holofotes? Exatamente o que você esperaria: se arremessa através de portas, bate o próprio rosto nas paredes, luta contra a própria mão possuída por demônios como um Buster Keaton enlouquecido e gargalha como um maníaco. É puro caos pastelão, só que encharcado de sangue falso.

Porque aqui está a coisa sobre Bruce Campbell: ele sabe exatamente o que é — e o que ele não é. Ele não vai ganhar um Oscar e sabe que recitar Shakespeare só faria o público rir dele, e não com ele. Em vez de lutar contra isso, Campbell abraça inteiramente. Se ele é um ator "ruim", tudo bem — ele vai ser então o melhor ator ruim do mercado. Suas atuações são tão conscientemente cafonas, tão descaradamente exageradas, que dão a volta completa e se tornam brilhantes. Sim, ele é exagerado — ridiculamente exagerado — mas ele domina esse exagero de forma tão completa que ela se torna magnética. Ninguém no mundo é tão divertido em ser mal ator quando Bruce Campbell, e em Evil Dead II ele prova isso cena após cena gloriosa e sangrenta.

Portanto, Evil Dead II não é exatamente um filme de terror — é uma comédia de humor negro com pele de terror. Pense menos em Halloween e mais em Os Três Patetas, só que desta vez Moe é Bruce Campbell, e Curly é o irmão de Raimi, Ted, enfiado em camadas de látex como a grotesca e estridente "Henrietta". Raimi apostou no absurdo pastelão e, embora hoje pareça a evolução natural de seu estilo, o público em 1987 não soube muito bem o que fazer com isso. O filme arrecadou apenas US$ 5 milhões nas bilheterias, uma queda acentuada em relação aos quase US$ 30 milhões do primeiro filme.

Campbell aceita tão bem esse entendimento sobre suas capacidades de atuação que sua aubiografia tem esse nome

Mas a genialidade de Evil Dead II é que ele foi construído para a longevidade, não para o sucesso imediato. Assim que as pessoas entenderam a piada — que a intenção era ser ridícula, um espetáculo de terrir — o filme explodiu em home video. Os aluguéis e as vendas em VHS o transformaram em um clássico cult, onde permaneceu confortavelmente por décadas. Até hoje, ele ainda aparece nas listas de "melhores filmes cult", celebrado como o momento em que Raimi aperfeiçoou sua arte de mesclar comédia e gore.

E em 1991, Raimi não era mais apenas o garoto esquisito que fazia um festival de sangue na floresta. Ele agora era um respeitado diretor de Hollywood, conhecido por transformar orçamentos minúsculos em ouro de bilheteria (ou Home Video). O sucesso surpreendente de Darkman em 1990 consolidou sua reputação, provando que ele conseguia multiplicar o dinheiro do estúdio sem perder seu estilo. E com esse renome, Raimi finalmente garantiu o orçamento para encerrar a trilogia Evil Dead.


Então, naturalmente, ele ligou para seu antigo parceiro no crime, Bruce Campbell — e lhe propôs algo totalmente diferente de tudo o que haviam feito antes: se Evil Dead II era uma comédia de humor negro que ocasionalmente flertava com o terror, então Evil Dead III — mais conhecido como Army of Darkness — abandona completamente o terror e mergulha de cabeça na comédia. 

A cabana claustrofóbica na floresta se foi, e em seu lugar: um épico de fantasia medieval completo, com castelos, exércitos de mortos-vivos e Campbell balançando seu boomstick como um homem que acabou de ganhar na loteria. Depois de dois filmes sendo o ganso mais bobo preso na cabana mais raivosa do mundo, Bruce Campbell estava subitamente livre para ser o mais ridículo humanamente possível — e acredite, ele podia ser muito ridículo.

Então, se você assistir a Army of Darkness esperando terror, certamente sairá decepcionado — não tem nenhum um susto à vista e o gore dá quinze passos pra trás. Mas se você está aqui para algo tão exagerado, tão absurdamente cafona que dá a volta e chega a ser brilhante, então você terá uma surpresa. O filme não apenas aceita o seu próprio absurdo — ele mergulha de cabeça nele. De certa forma, parece a versão de Raimi para GREMLINS 2: nessa continuação os elementos de terror foram descartados, substituídos por pastelão, paródia e espetáculo cafona em toda a sua glória.


E, claro, ninguém na Terra faz "espetáculo cafona" melhor do que Bruce Campbell. Esta é sua obra-prima de comédia — proferindo frases de efeito com excesso de confiança shakesperiana, fazendo pose para a câmera como um veterano do vaudeville e transformando uma motosserra e uma espingarda em acessórios cômicos. Army of Darkness pode não ser terror, mas é o mais puro suco da parceria de Raimi e Campbell: nenhuma vergonha de ser idiota, gloriosamente exagerada e absolutamente inesquecível.

E assim, com Army of Darkness, a trilogia Evil Dead chegou ao fim — não com um grito na floresta, mas com uma motosserra de gasolina infinita na Idade Média. Foi o capítulo final da era caótica de Raimi, um período em que ele e Bruce Campbell podiam conjurar um universo inteiro com máscaras de borracha, galões de xarope de milho e palhaçadas dos Três Patetas.

A partir daí, a carreira de Raimi mudou de patamar. No final dos anos 90, ele não era apenas um diretor respeitado, mas um produtor cujas ideias eram ouvdas — sendo o sucesso e grande impacto de XENA: Warrior Princess sua mais iconica criação, cuja relevancia e impacto eu expliquei naquela review (com até uma participação especial de Bruce Campbell). E nos anos 2000, ele se tornou algo completamente diferente: o diretor que definiu o Homem-Aranha para uma geração inteira. O cineasta antes conhecido por câmeras com fita adesiva e Fake Shemps agora comandava não apenas uma das maiores franquias de Hollywood, mas os rumos que todos os filmes de super-heróis após a renascença do genero com X-MEN em 2000.

É por isso que a trilogia Evil Dead continua tão especial. É o Raimi cru e sem filtros: três filmes nascidos de engenhosidade teimosa, de excelente mau gosto e o ator ruim mais comprometido do mundo. Antes de ser o cara do Homem-Aranha, antes de ser um nome conhecido, Raimi era apenas o garoto lunático que descobriu que terror e pastelão eram a mesma coisa — só que um termina numa torta na cara e o outro num jato de sangue.

Evil Dead gerou todo um subgenero de comédia do "machão sem noção" que foi bem popular nos anos 90, com coisas como DUKE NUKEM 3D e Austin Powers seguindo os passos de abraçar a tosquice de Bruce Campbell

O que, claro, nos leva ao tema deste post: Evil Dead ganhou adaptações para videogame. Quer dizer, é claro que ganhou, Ash tem uma motosserra no lugar da mão e luta contra demonios — se isso não grita "videogame", não sei o que mais o faria. Ao longo dos anos, Evil Dead gerou vários jogos, mas hoje estamos falando de... bem, digamos que eu preferiria ter doado o meu sangue e pele como páginas do Necronomicom do que ter jogado isso, mas... um homem faz o que um homem tem que fazer, eu suponho.

Mas tá, vamos começar com uma nota positiva, porque este jogo acerta em algumas coisas. Mais notavelmente, Bruce Campbell retorna como Ash. Campbell não é nenhum novato em dublagem em jogos — ele emprestou sua voz para jogos como PITFALL 3D: Beyond the Jungle, Tachyon: The Fringe e Broken Helix. Aqui, seu diálogo de abertura é puro Ash: sarcástico, exagerado e perfeitamente entregue. A escrita, reconhecidamente, parece quase uma homenagem a Evil Dead II, quadro a quadro, mas, ei, ouvir a voz de Ash ainda é um deleite.


O design de som é forte no geral. A espingarda parece robusta e brutal, e a motosserra — a arma de todas as armas — tem um estrondo grave e satisfatório. Se você estiver usando um rumble pack, as vibrações sincronizam perfeitamente com o rugido da motosserra, adicionando imersão tátil. A música, embora esparsa, é eficaz quando aparece: uma breve picada orquestral quando um Deadite irrompe do chão é assustadora e tensa.

Graficamente, o jogo também acerta em algumas coisas. Os cenários capturam bem o clima da floresta do primeiro filme e recriam alguns cenários da franquia com detalhes pré-renderizados, que são ocasionalmente aprimorados por loops de vídeo mostrando sombras em movimento ou galhos esqueléticos saindo da mata. É uma solução inteligente para a natureza estática dos cenários pré-renderizados, embora mesmo no Dreamcast os fundos sejam de baixa resolução — literalmente os mesmos da versão de PS1, sem nenhum upscaling. Em um hardware dos anos 2000, isso não era pedir muito.

Ainda assim, alguns pequenos toques brilham. Conforme você anda, sangue pinga da motosserra de Ash, deixando um rastro macabro para trás. Esses detalhes mostram que os desenvolvedores sabiam o que tornava o universo de Evil Dead divertido e imersivo. Com mais desses toques, talvez eu pudesse ter ignorado os problemas gritantes de jogabilidade que assolam este título... se bem que, pensando bem, para ignorar os problemas de jogabilidade que esse jogo tem os gráficos teriam que ser de PS5 no ano 2000. Pq se o jogo consegue se parecer com Evil Dead e soar como Evil Dead... tudo isso desmorona no momento em que você pega o controle na mão. G-SuS quicando no pogobol... vamos a isso então...


Por anos — dois anos e meio, se formos precisos — um jogo assombrou meus pesadelos. Veja, eu me refiro a um jogo  tão ruim, tão escabrosos que meus que até meus pesadelos tinham pesadelos com ele. Estou falando da abominação digital conhecida como THE CROW: City of Angels. Sempre que preciso me lembrar de quão catastroficamente errados controles 3D podem ser, essa é a primeira coisa que me vem à cabeça. Porque, honestamente, é inacreditável o quão quebrado aquele jogo é. Fazer um beat 'em up com controles de tanque já parece uma ideia ruim, mas THE CROW: City of Angels elevou essa ideia horrorosa a uma forma de arte. 

Ângulos de câmera estranhos que impediam de ter certeza pra que lado você estava virado? Check. Absolutamente nenhuma noção de profundidade ou posicionamento? Check.
Inimigos que te acertam três vezes antes mesmo que você consiga dar um soquinho? Check.
E a cereja do bolo: a hit detection decidir se vai ou não registrar seu ataque como acerto é um ato de pura intervenção divina. Não era apenas ruim — era o estado da arte da incompetência. Até agora.

Porque... de alguma forma... e eu nem sei como isso é fisicamente possível... existe um jogo ainda pior que esse. Quer dizer, eu tinha ouvido boatos de que Evil Dead: Hail to the King era ruim. Mas nada — absolutamente nada neste mundo ou em qualquer outro — poderia ter me preparado para a realidade. Este não é apenas um jogo ruim, é uma monstruosidade profana. Faz THE CROW: City of Angels parecer uma obra-prima que o Miyamoto passou decadas esculpindo com amor em comparação. Sim, você leu certo — este jogo faz THE CROW: City of Angels parecer jogável.


Para começar, Ash tem uma motosserra no lugar de uma mão e você pode equipar todos os tipos de armas na outra — um machado, um porrete com espinhos e, claro, seu iconico boomstick. Parece incrível no papel, certo? Bem, na prática a teoria é outra.

Usar a motosserra é menos "diversão foda de matar demônios" e mais "Jardineiro José Simulator 2000". Isso pq pra ela funcionar ela consome gasolina, e embora isso possa não parecer um problema (survival horrors são construídos em cima de administrar recursos, afinal), aqui está o problema: ela não queima combustível apenas quando você ataca com ela. Ah, não, ela está consome gasolina o tempo todo em que você deixa ela em stand by, como um Chevetão 78 esquentando o motor na garagem em um dia frio. Claro, vc tem a opção de desligar, mas aí tem que passar por toda a animação de ignição toda vez que é e você é emboscado o tempo todo. Então, escolha o seu veneno: desperdiçar gasolina ou desperdiçar segundos preciosos. De qualquer forma, a diversão perde.

E quando você finalmente entra em uma luta, a motosserra se transforma em um desastre completo. A detecção de colisão é uma piada, os ângulos de câmera forçados lutam mais contra você do que contra os inimigos, e os controles respondem como se você tivesse mergulhado seu joystick no melaço. Mas espera que piora: os inimigos respawnam infinitamente. Não apenas quando você revisita uma área durante o backtracking usual de um survival horror, mas às vezes se você permanece muito tempo em uma sala. Ou pouco tempo. Ou sempre que o jogo simplesmente acha que sim, não tem um padrão realmente. Se você não fugir, pode passar a eternidade atacando os mesmos três encostos como um primo pouco glorioso do Sísifo criada por um game designer com o prazo estourado.


O resultado é que sua gasolina e munição se esgotam mais rápido que sua paciência. Claro, os inimigos geralmente deixam cair alguns restos de vida ou munição, mas nunca é o suficiente. Principalmente quando você percebe que, sem gasolina, sua motosserra leva uns 5 ou mais hits para matar um único inimigo. O que deveria ter sido a arma mais catártica do jogo acaba sendo sua mecânica mais frustrante.

Não faz duas semanas que eu analisei VAMPIRE HUNTER D para PS1 e na ocasião disse que o jogo era "quase um desastre". A única coisa que o tornava jogável como um survival horror era o alcance longo da espada do D — você podia acertar algo sem precisar entrar no seu campo gravitacional. Bem, Hail to the King não oferece esse luxo. Na verdade, não oferece luxo algum. Suas armas não têm "alcance curto" ou mesmo "alcance próximo". Não, o alcance do acerto aqui é praticamente quântico — você precisa esfregar o peito contra o rosto do inimigo para quem sabe o jogo considerar registrar um acerto.


E não pense que as armas de longo alcance são melhores, elas são igualmente ruins. A camera não ajuda nada a você ter a minima noção de para que lado seus tiros estão indo, e obviamente o jogo não dá nenhum feedback visual pra te ajudar a se orientar. Porém mesmo se você estiver diretamente na frente de um inimigo, a detecção de acerto joga uma moeda para decidir se você realmente acerta o tiro. Corpo a corpo ou à distância — não importa. Você está ferrado. 

[TÁ, MAS VOCÊ NÃO PODE APENAS EVITAR O COMBATE E PASAR CORRENDO PELOS INIMIGOS?]

Eu pensei nisso, Jorge. Infelizmente, o jogo pensou também — e portanto tornou essa rota bem miserável. Os inimigos respawnam infinitamente e te seguem por várias telas. Fugir não é uma opção, a menos que sua ideia de diversão seja arrastar um desfile do mesmo zumbi pela metade do mapa.

Então, como resolver esse dilema e jogar confortavelmente Hail to the King? 


Você mistura uma combinação miserável de combate insatisfatório com uma fuga igualmente miserável e reza a todos os deuses sombrios dos jogos para que tudo acabe mais cedo do que tarde. Felizmente, o jogo termina rápido... embora até mesmo suas insignificantes duas horas de conteúdo pareçam durar quatro eras geológicas e meia inteiras.

E mesmo fora do seu combate horrível, o jogo se recusa a te jogar um osso. Os quebra-cabeças são a sua típica "use item X no lugar Y" — vagueie pelas telas pré-renderizadas, pegue bugigangas aleatórias, carregue-as de volta para onde o jogo exigir e troque-as por outro objeto brilhante para finalmente abrir uma porta ou avançar a trama um pouco. Não é inteligente. Não é envolvente. Mas pelo menos é funcional, o que é mais do que posso dizer do combate. Ainda assim, chamar "menos ruim que o combate" de elogio é como chamar intoxicação alimentar de "melhor que cólera".

No fim do dia, Evil Dead: Hail to the King parece menos um jogo e mais uma fita VHS amaldiçoada — aperte o play e você terá uma morte lenta e agonizante por frustração garantida. O combate é a coisa mais abominável que eu já vi em um jogo 3D, os puzzles são chatos, a câmera te odeia e os inimigos respawnam como se não tivessem nada melhor para fazer por toda a eternidade. O que é apropriado, porque é exatamente assim que se sente ao jogar: condenação eterna, um golpe desajeitado de cada vez. Groovy, minha bunda.


MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 160 (Fevereiro de 2001)


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MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
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