terça-feira, 9 de março de 2021

[SUPER NINTENDO] ILUSION OF GAIA (ou ILUSION OF TIME na Europa) [Setembro de 1994] [#646]



 Então, Ilusão da Gaia né? Eis um jogo que é bastante complicado de falar a respeito e eu passei um bom tempo procurando um angulo adequado para aborda-lo porque esse é um jogo bastante, bastante pecúliar: ele é um jogo muito bom (de fato, praticamente todas as melhores listas de RPG invariavelmente do SNES citam ele) mas ao mesmo tempo ele é um jogo muito, muito ruim ao passo que se o programador tivesse substituido partes dele por apenas dar cabeçadas no teclado o resultado seria o mesmo.

O que eu seriamente desconfio que aconteceu em partes desse jogo.

Aparentemente Gaia é uma palavra proibida na Europa, seja qual for o motivo tenho bastante certeza que é um estúpido

Mas vamos começar do começo, e vamos começar pelo aspecto positivo: como eu disse, frequentemente esse jogo é laureado como um dos grandes RPGs do SNES a ponto que muita gente pediu para que ele fosse incluído no SNES mini, e eu meio que entendo o ponto das pessoas. Isso porque IoG é um bom jogo, de verdade.

Sob outras condições, na verdade, eu diria que é um excelente jogo mas eu já chego lá. Vejamos, Illusion of Gaia é um Action RPG não muito diferente de Zelda ou SECRET OF MANA. Como o nome sugere, um Action RPG é um jogo que tem toda a estrutura de um RPG (níveis, atributos, equipamento, etc) mas ao invés de resolver as coisas por turnos resolve na boa e velha ultraviolencia.

E pra variar, a capa japonesa é a melhor de todas

E, nesse aspecto, eu diria que IoG é um dos melhores Action RPG do SNES. Embora eu goste do ritmo mais organizado de Legend of Zelda e do uso de itens, não há muito realmente o que reclamar de IoG - exceto talvez que a dificuldade spika a partir da penultima dungeon, mas o jogo se tornar incrivelmente dificil a partir da penultima dungeon em um jogo de tipo umas 20 horas não é a pior coisa que já me aconteceu nessa vida. Você ainda tem umas boas 15 horas de gameplay sólido pelo menos, então eu posso viver com isso.

Mas o que torna o combate desse jogo tão bom? Velocidade sob controle, basicamente. Como é um ponto bastante debatido aqui, o Super Nintendo não é exatamente bom em fazer jogos muito ageis (e os melhores jogos fazem uso disso a seu favor para ter uma ação que é mais sobre ritmo do que apertar botões enlouquecidamente, como o já citado Zelda e MEGA MAN X). Nesse aspecto, IoG tem realmente um equilibro bastante bom entre ser um jogo dinamico mas em nenhum momento chegando a ser caótico (exceto nas dungeons finais, isso é).

O resultado é que bater nos inimigos com sua flauta de madeira pode não ser exatamente sanitário para algo que você leva a boca, mas definitivamente é satisfatório. Mais do que satisfatório, você é frequentemente recompensado por isso já que matar todos inimigos em uma sala aumenta seu ataque, defesa ou barra de energia. Não é incrível quando um jogo te recompensa pela exploração de formas palpaveis ao seu gameplay, né SONIC & KNUCKLES?


Não apenas bater nas coisas é satisfatório e recompensador, como o level design das dungeons é bastante inteligente. Fazer puzzles num jogo de ação que não sejam apenas um inconveniente para o jogador de tão fáceis mas ao mesmo tempo que não exijam habilidades psiquicas espaço-temporais para você conseguir ler a mente do designer na hora que ele bolou esse puzzle. Illusion of Gaia tem um design muito bom nisso, há uma progressão lógica dentro da dungeon (salvo algumas exceções) e você sente que está evoluindo sem ser um caminho praticamente linear de tão fácil.

Adicione a isso um grau de variedade no gameplay com nosso herói assumindo até três formas diferentes com seus próprios movesets e poderes, e que alternar entre essas formas é parte das solução dos puzzles (dado as habilidades únicas de cada uma) e temos algo realmente interessante aqui.

Adicione a isso que na sua majoridade o jogo não é ridiculamente dificil (existem poucos itens de cura per se, mas os save points recuperam todo HP e o não é dificil conseguir vidas extras) e temos um jogo de ação solidamente acima do bom. Como eu disse, eu realmente entendo todos os elogios a esse jogo.

É uma rotina, hã, peculiar

Só que Illusion of Gaia não é um jogo de ação. É um Action RPG, é aqui que o problema começa. Veja, a coisa sobre IoG como RPG é que ele... porque se você parar pra pensar na história, ela... do ponto de vista dos personagens, pode-se dizer que... gente, vou ser sincero com vocês: eu não faço ideia como continuar esse texto.

Porque sério se eu dissesse que esse jogo foi escrito por um bando de crianças em idade pré-escolar num sugar rush danado isso ainda não começaria a explicar esse jogo. O modus operandi desse jogo é chegar numa locação, puxar a coisa mais aleatória que eles conseguiram pensar sem contexto nenhum e então depois de fazer uma cena que algum adolescente achou muito legal (mas não é realmente) nunca mais tocar no assunto. Enxague e repita.

Isso te incomoda, hein? Você está incomodado com isso? Isso está te deixando louco? Não?

Seu personagem se chama Will e mora com os avós desde que o seu pai desapareceu explorando a Torre de Babel. Todos dizem que seu pai morreu na exploração, mas Will acredita que ele está vivo sonha em encontrar o pai um dia. Até aqui tudo bem, o jogo começa okay, é um preludio okay para uma aventura. Aí sabe o que acontece depois?

O rei da região manda chamar Will porque ele quer o anel mágico do vento que ele acha que Will tem (esse item nunca tinha sido citado antes), como Will não tem anel nenhum ele joga Will na masmorra, Will foge com ajuda da princesa que está numa vibe full Jasmine e quer ver o mundo quando volta para sua vila a casa dos seus avós foi destruída procurando o tal anel mágico do vento que jamais, nunca, em momento algum será citado novamente na história, então a flauta de Will começa a falar como o pai dele (em nenhum momento é dito que essa flauta tem algo de especial, até onde consta o jogo é só uma flauta que agora canalisa espiritos pq sim) e o pai dele manda ele recolher seis tesouros para abrir a Torre de Babel e salva-lo. Ah, e Will tem poderes psiquicos que sairam do nada e por motivo nenhum agora se transforma na forma de Freedan, o fortão Dark Warrior.

Que despedida bonita, será que algum dia eles se encontrarão mesmo que leve milhares de anos?


Ah, okay, levou 5 exatamente minutos.

Cê achou que eu tava brincando quando eu disse que esse jogo foi escrito por crianças num sugar rush, né? Eu tenho certeza absoluta que a pauta original desse jogo tem algo escrito como "e então acontece isso, e depois isso e então Will sai voando então pew pew pew depois pshhhhhsbaaaaaah e então Seth vira um monstro, ah, agora tem um Seth na história eu inventei agora, mas não aparece então você só ouve falar e é muito triste que seu amigo Seth virou um monstro então eles viajam para outra cidade e nunca mais vamos falar do Seth, porque na cidade tem hã um ring de escravidão porque escravidão é algo terrível mas as pessoas também são terríveis e agora tem a moral que toda cidade tem um lado negro mas eu não quero mais falar disso então eles viajaram pra outro lugar e..."

PUTA. QUE. O. PARIU. Eu não to zoando, eu não to exagerando, esse jogo É ESCRITO ASSIM MESMO! Mas que caralhas, alguém tira a cocaína dessas crianças antes que alguém morra escrevendo esse jogo!

Aqui alguns grandes dialogos em Illusion of Gaia:

Will: Nós fomos para a Cidade das Águas, Watermia. Uma bela cidade com casas construídas em jangadas. O povo da cidade gentilmente nos hospedou na casa do jovem Luke. Esta é a casa de Luke. Ele é um jovem pescador adorável.

Homem: Esta é uma casa de jogos de azar. Uma criança teria que ser muito pobre para vir a este lugar.

DO QUE VOCÊS ESTÃO FALANDO, DIABO? COMO ASSIM AGORA TEM UM LUKE? E O QUE CRIANÇ... vê com o tipo de coisa que eu tenho que lidar aqui?

Minha mal escrita terrível favorita no jogo é na parte que um membro do grupo (ah é, já chego aí) do nada tem amnésia (você fala com ele e ele parece normal, mas depois ele estava com amnésia esse tempo todo). Para cura-lo você entra em uma mina cheia de escravos. Depois de libertar todos os escravos, o último acontecia de saber uma canção que cura a amnésia e te ensina (que terrivelmente conveniente!). Então, depois de curá-lo, outra pessoa diz aleatoriamente:

Amigo: Agora que tenho minhas memórias de volta lembrei que tem um inventor excêntrico na floresta à frente, vamos? Acho que o nome dele é Neil.

Aí Will também lembra que estava com amnésia (é sério isso) e diz: Você disse Neil !!! Esse é o mesmo nome do meu primo perdido ! Meu primo Neil, o inventor, voou no céu em uma coisa chamada avião!

Narrador: Então, Will e seu grupo foram à casa do inventor.

Jesus Fucking Christ. Sério, esse é o jogo mais mal escrito que eu já vi na minha vida, alias é uma das coisas mais toscas que eu já li PONTO, nem fanfic é tão desconexo assim. O enredo frágil é mais uma desculpa para você viajar a lugares reais da Terra, como a Grande Muralha da China e Angkor Wat, para lutar contra o mal e coletar estátuas místicas. Por que estamos coletando estátuas místicas? Vamos deixar o jogo explicar, bem, na verdade, a flauta falante te explicar:

Talking Flute: Pick up the stone your enemy left. The power of the Crystal is contained there. That power will prove to be your ally.... You must make a pilgrimage to the ruins of the world to find the Mystic Statues. The closer you get to the Crystal, the stronger the evil power will be... Will... No time... Quickly... First to the Incan ruins...

Lendo isso sem contexto nenhum faz você entender tanto quanto eu, e eu terminei o jogo! Tem também algum tipo de assassino por aí que é mencionado nos primeiros 30 minutos do jogo, mas quase não foi mencionado e nem mesmo foi visto até o final do jogo. Eu já tinha me esquecido totalmente dele e estava coçando minha cabeça quando ele é apresentado como chefão final numa cena muito longa onde ele faz sua grande entrada ... e algumas linhas de diálogo depois é queimado vivo por algum deus ex machina.

Oh noes, nossos heróis estão cercados por tubarões numa jangada! Como eles sairão dessa?

Vocês tem que estar de sacanagem comigo... Sério que uma premiada novelista japonesa (Mariko Ohara) escreveu isso? Dinheiro mais fácil que ela já fez na vida...


Mas aí você pode estar pensando "okay, mas isso deve ser só a tradução, tenho certeza que o original em japones faz sentido". Até pode ser, mas eu duvido. Não é apenas o texto, toda a estrutura do jogo é montada de uma forma que o texto não parece tão fora de propósito assim. Por exemplo, a partir de determinado ponto Will tem uma "party" de amigos e eles falam coisas como "nós lutamos" como se fosse um jRPG de grupo mesmo.

Só esqueceram de avisar ao escritor que esse jogo não é um jRPG e você não tem uma party, então tem esse contexto bizarro onde você tem um grupo que tem muito cara de ser grupo de RPG, mas na hora da masmorra é só você e você mesmo. O jogo dá umas desculpas mais furadas do mundo para tentar ocultar a falha que é ter uma estrutura toda preparada que não casa com a mecanica do que efetivamente você faz no jogo.

A melhor explicação que eu tenho é que alguém teve um AVC enquanto escrevia isso

Eu sei que parece que eu estou nitpicking com algo que não é importante, mas nesse caso é. Primeiro porque o jogo é bem longo, e não ter uma história (ou ter essa abominação aí) torna ele cansativo já que as mecanicas só conseguem levar o jogo até determinada duração (né, Horizon Zero Dawn?). Mas esse nem é o maior problema, na verdade.

E sim que eu não reclamaria tanto sobre a história e os personagens (ou falta de) se isso não fosse um grande foco do jogo. Existem cenas muito longas de diálogos e sequências faladas que parecem durar para sempre. A certa altura, você está flutuando em uma jangada por três semanas no jogo e há pequenos trechos de conversas todos os dias em que nada conectado com nada é dito (embora aprendemos que passar tres semanas sem banho ou água doce é a melhor forma de alguém se apaixonar por vc). A coisa toda dura uma meia hora é tão chato quanto parece. Ele também tem a ousadia de apresentar um final de 20 minutos com uma cena pós-crédito. SECRET OF MANA tinha uma história toda escangalhada pelos problemas na produção do jogo, mas pelo menos sabia quando sair do caminho.

Gente, qual a necessidade disso?

Por fim, o sistema de gerenciamento de itens é uma atrocidade. Você tem que equipar chaves e itens de restauração de vida para usá-los um por um (então para encher sua barra de vida usando 3 itens de cura repita o processo três vezes), e o processo de navegar e selecionar itens é uma dor enorme. Durante a batalha sem ter nada equipado o jogo para e você recebe uma mensagem de que não tem um item selecionado. Obrigado, jogo!

Illusion of Gaia é, em sua essencia, um bom jogo. Melhor do que bom até, se você pudesse ignorar a história e algumas mecânicas de jogo estranhas, tem um jogo de ação mais que decente por trás de tudo. Mas infelizmente você não tem como ignorar toda pilha de bosta que soterra esse jogo, gostar desse jogo não é algo que esteja dentro das minhas capacidades.

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES 
Edição 070 



MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 008