sábado, 20 de março de 2021

[MD] GENERATIONS LOST (Dezembro de 1994) [#658]


Eu sei que normalmente eu começo o texto com a capa do jogo, mas antes de mostrar a capa de hoje eu queria ter uma conversa com vocês. Sabe, uma das coisas que mais me constrange sobre os anos 90 é sobre o quão abertamente homofóbicas as coisas eram. Não que o problema tenha sido resolvido hoje, mas nem de perto era a abominação que eram os anos 90 quando insinuar que alguém era homossexual como piada (ou seja, como se tivesse algo errado e vergonhoso nisso) era algo que rolava comumente na TV aberta.

Como eu disse, o problema não foi inteiramente sanado mas pelo menos ninguém minimamente civilizado faz mais essas coisas a níveis institucionais desse tamanho (eu disse civilizado, a Record e a Rede TV não contam). Agora o engraçado disso é que mais frequentemente sim do que não as capas americanas do jogo estavam tão preocupadas, tão preocupadas em não parecer "coisa de frutinha" que colocavam o machão mais machozo que eles conseguiam pensar pra mostrar que seu jogo era macho pra caralho. O que significava um homão da porra mostrando o peitoral malhado, com sua barba rústica por fazer e besuntado em suor viril.

Considerando o objetivo dos criadores de tais capas, tenho certeza que você é esperto o suficiente para perceber a ironia aqui. Mas bem, porque eu estou falando disso? Ora, porque Generation Lost tem a capa mais machona machante machovisca que eu já vi na minha vida. Tenho certeza que a intenção dos criadores era urrar "aqui não é jogo de bichinhas (argh), aqui é jogo de homem (duplo argh) porra!", mas veja essa capa e me diga para qual publico parece que esse jogo se destina:


Uau, o que é isso? Kubanacan, the game? Sem mentira, eu já vi capas de filmes pornôs gays mais discretas que isso. E se você acha que a capa é especial, espere até ver a propaganda desse jogo:


Minha parte favorita dessa propaganda é quando afirma que o jogo tem uma "trilha sonora atmosférica New Age". Então, este é um jogo sobre MUTANTES. Você sabe, como mutantes tipo Fallout. Esse jogo é sobre um cara que pode pular muito alto e socar muito forte. Ele é um mutante. Para que diabos ele precisa de uma trilha sonora New Age? E por que isso é sequer um ponto de venda?

Tenho certeza que existe um público para jogos de homões suados musculosos tão objetificados que ele sequer tem um rosto ao som de música New Age, mas conhecendo os anos 90 eu tenho bastante certeza que esse  não é o público pretendido por esse jogo. Bem, seja eu ainda considero isso uma vitória então vamos ver como se sai as aventuras do Marcos Pasquim em Kubanacan para Mega Drive!


Generation Lost é um jogo... estranho. A primeira vista você tem a impressão que vai jogar um puzzle plataformer como FLASHBACK: Quest for Identity ou BLACKTHORNE. Certamente ele tem todas as deixas visuais para isso: é um jogo lento de progressão espaçada, poucos inimigos na tela, muito tempo para você parar e pensar no que fazer.

É apenas esperado que em jogos assim você comece a andar em fases labirinticas e colecione itens ou pelo menos ative switches para abrir o caminho ou algo puzzle-like assim. E então você espera isso, vai esperando... e o jogo apenas continua mais ou menos linear, sem nenhum grande puzzle para resolver nem nada. 


É realmente só um jogo lento, e isso é muito pouco característico para um jogo de Mega Drive. Usualmente se espera que jogos ocidentais de Mega Drive sejam desenhados para crianças com o ciclo de atenção do BEAVIS AND BUTT-HEAD. Jogos gotta go fast bam bum kapow não pode pensar tem que ter atitude pew pew pew. Enfim, aquele estilo de jogo RADICAL DUDE que são bem a cara do Amiga Jr.

Generation Lost não é assim, é um jogo que vai com calma e por um motivo que eu posso compreender: seu boneco é muito grande na tela. O que era feito porque fica bonito e vendia bem no oidente. Mas também significa que você não tem uma boa visão do que tem a frente, então se você for muito rápido é claro que isso não vai dar certo. Normalmente como jogos Amiga-like lidam com isso?

Simples, não lidam. É salto de fé, inimigos surgindo rapidamente do nada e foda-se você. Simples assim.


Então do ponto de vista de game design essa é uma decisão sensata e inteligente. Ou você tem a camera enfiada dentro da bunda do protagonista ou você se move a dois milhões de quilometros por hora. Nunca os dois, NÃO TEM COMO, mas jogos de Mega Drive/Amiga como uma criança birrenta querem tudo porque querem porque querem porque querem. O resultado quase invariavelmente é SOFRIMENTO e DOR.

Ao escolher não fazer isso, Generation Lost não é SOFRIMENTO e DOR. O que é bom. Mas se estabelecemos o que ele não é, então o que ele é?

O jogo começa em uma floresta mal iluminada. O mais velho diz ao jovem Monobe a importância da missão em que ele deve embarcar. Ele deve sair para o mundo não apenas para restaurar o equilíbrio, mas também para se conectar com as tradições de longa data de sua tribo. Antes de partir, porém, o mais velho passa adiante um símbolo dessa tradição: um traje tecnologicamente avançado, transmitido por seus ancestrais, os Jani-tors.


Espera, o que? Jani-tors? Really? Isso é algum tipo de piada ou algo do tipo?

Bem, na verdade não. Pelo contrário, isso é todo o ponto da história aqui: incidentes posteriores, como o templo de Kahrpanter ou sua congregação adorando “The Box” (um conjunto de televisores piscando), deixam claro que o jogo não está usando esses termos a troco de piada. 

Olhando para o cenário, por exemplo, sempre se encontra um mundo quebrado além do ponto de reparo e indiferente à existência de Monobe: folhagem densa e selvagem reivindicando todas as superfícies que pode, superfícies de pedra em ruínas, uma cacofonia de fios quebrados. Generations Lost não procura humor em um mundo como este, mas sim lamenta a existência do que foi perdido e jamais poderá ser recuperado, usando uma paleta escura e silenciosa para representar os destroços de uma civilização quebrada. Guarde essa ideia, ela fará mais sentido ainda no final do texto.


Conforme a história, temos uma noção do que aconteceu aqui: séculos antes do início da história, a humanidade criou uma nave espacial para colonizar novos mundos entre as estrelas. Os sistemas da nave foram projetados para serem de baixa manutenção, para que a tripulação pudesse hibernar pelo maior tempo possível durante a viagem. Com efeito, era necessário interagir com os sistemas apenas uma ou duas vezes a cada geração. 

E como não podia deixar  de ser, essa decisão saiu pela culatra. A eficácia dos sistemas levou as pessoas a confiarem tanto que a tecnologia funcionaria para sempre que deixaram a manutenção de lado. Quando após algumas gerações o sistema começou a parar de funcionar, o conhecimento para manter os sistemas estava perdido entre os humanos. Eventualmente a tecnologia se perdeu e a humanidade regrediu a uma sociedade tribal, e a tecnologia do passado se tornou apenas lendas.

Daí a tribo dos Jani-tors, que originalmente eram os janitors da nave mas isso se perdeu a muito tempo e apenas o nome ficou. No começo do jogo o ancião apenas te pede pra investigar enchentes misterioras, tempestades elétricas e areas onde as pessoas flutuam sem explicação antes que isso se torne uma ameaça a sua tribo. Ele acha que os deuses estão furiosos ou algo assim, mas na verdade são efeitos colaterais do reator da nave que esta entrando em meltdown após tantos anos sem nenhuma manutenção.



Juntos, esses aspectos emprestam às Gerações Perdidas um peso dramático que não era visível antes. Quando você vê uma plataforma flutuando seu primeiro pensamento é "okay, isso é um videogame, plataformas voam porque é isso que elas fazem em um jogo de plataforma", mas eventualmente você começa a achar que aquela plataforma era na verdade parte de um sistema que algum dia serviu para alguma coisa nessa nave hoje tomada pelo mato.

O que esse sistema fazia exatamente, entretanto, é algo que se perdeu para sempre. Anos e anos de evolução tecnologica perdida assim, como lagrimas na chuva. É meio melancólico de uma forma esquisita, sabe?


Não é um grande segredo para ninguém que eu sou um grande fã de narrativa ambiental, porque é a aplicação suprema nos videogames da regra numero um da escrita: mostre, não conte. Ao invés de ter uma cutscene com personagens falando sobre o mundo maravilhoso onde a vida era fácil que se perdeu, o jogo mostra isso através do seu cenário, do seu level design, até mesmo dos poderes do seu personagem que ganha uma grande vantagem sobre os inimigos primitivos ao poder se pendurar no teto com lasers de energia emitidos por seu traje de Jani-Tor. 

Tanta ambição narrativa, entretanto, não é aleatória porque saibam vocês que esse foi o primeiro jogo dirigido por Bruce Straley. Talvez você não reconheça esse nome de imediato, mas com certeza conhece um jogo que ele fez muitos anos depois baseado justamente em narrativa ambiental e com o tema de ter uma aventura em um mundo que um dia foi belo e vivo, mas hoje se encontra quebrado além de qualquer reparo:


Curioso, essa semana mesmo eu falei sobre o primeiro jogo criado por Amy Hennig (MICHAEL JORDAN: Chaos in the Wind City)e hoje estou falando do primeiro jogo de Bruce Straley. Juntos eles dirigiram um jogo que eu acho subestimado, Uncharted. Uncharted é para a Naughty Dog o que Tangled é para a Disney. Todo mundo diz como Frozen (ou no caso, The Last of Us) mudou o patamar da empresa, mas frequentemente é esquecido que as ideias básicas que deram tão certo posterioremente foram primeiro implantadas em Tangled e Uncharted

Porém se vemos nesse jogo as sementes que um dia germinariam em um dos maiores jogos de todos os tempos pela mão de Bruce Straley, também vemos que esse é claramente seu primeiro trabalho como diretor. Enquanto as concepções artisticas e escolhas gerais são excelentes, a execução delas é... não estelar, vamos dizer assim.

Pra começar, lidar com o som do Mega Drive definitivamente não é para principiantes, e isso foi algo que Bruce aprendeu do modo dificil. Eis o problema aqui: a ideia do jogo é criar uma ambientação, uma atmosfera. Então o jogo não tem muito música e sim mais sons de selva. E os sons de selva nesse jogo, hã, é melhor eu mostrar do que dizer:


Huh, mais de uma hora com sons que variam entre arranhar prato com o garfo e tênis fazendo quickquick em uma quadra esportiva no tom mais agudo possível. Se um dia relançarem esse jogo com achievments, terminar ele sem seus ouvidos sangrando definitivamente deveria ser um.

A escolha de ter controles parecidos com um puzzle plataformer funcionam bem na maior parte do tempo já que os desenvolvedores tinham noção das limitações que as escolhas de design tomadas implicavam, isso não funciona perfeitamente o tempo todo e em vários momentos o jogo exige de você mais ação do que é possivel tirar dos controles. Especialmente no final a sensação de que o jogo está sendo injustamente dificil não é algo trivial.

A esquerda, Bruce Straley. A direita o outro co-diretor de TLoU e fã de girafinhas, Neil Druckmann

Também tem que ser observado que os puzzles não são exatamente brilhantes, especialmente os que envolvem armadilhas com espinhos que tem um hit detection meio zoado - alguns são impossiveis de resolver sem tomar dano porque os espinhos te acertam antes de você encostar neles.

O meu ponto é que Generation Lost não é um jogo particularmente incrível enquanto gameplay. Embora não faça nada terrivelmente, não é um jogo que não se destacaria por esse campo - tanto que as revistas da época o chamavam de "clone de Flashback".


A maior força de Generation Lost reside nas suas aspirações narrativas, mas então temos que lembrar que existe muito limite com o que você pode fazer de gráficos em um Mega Drive e, mais importante, que Bruce está pregando para o coro errado. O publico gamer do Mega Drive de 1994 eram basicamente o Beavis e o Butt-Head, e estavam interessados em jogos com essas aspirações ainda. Nos anos seguintes o Playstation ajudaria o processo que FINAL FANTASY 6 começou (e o próprio Final Fantasy 7 será um divisor de águas fundamental nesse processo), mas agora ainda não era a hora disso. Querer ter uma discussão sobre conceitos artisticos com meninos inseguros da quinta série querendo pagar de fodões não costuma ser muito produtivo.

De certa forma esse foi um jogo ambicioso demais para sua época, e seus desenvolvedores não tinham a experiencia nem os recursos tecnicos necessários para fazer o gameplay executar o conceito ao invés de compromete-lo. Não se preocupe Bruce, um dia no futuro você vai acertar. Não hoje, mas um dia.

MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 009