quarta-feira, 24 de maio de 2023

[#1113][Set/97] BREATH OF FIRE 3


Eu vou abrir o texto de hoje dizendo algo que deveria ser óbvio vindo de alguém que está na sua review número 1113: eu amo videogames. Bem, duh, ninguém tem um dos maiores blogs amadores do mundo sobre reviews de jogos sem amar muito tudo isso, isso é um ponto pacífico.

Mas pq eu estou abordando esse ponto? Por um motivo que as vezes pode não ficar tão claro assim: eu amo videogames, e eu gosto de gostar de jogos. O que isso significa é que quando eu reclamo de um jogo, quando eu acho ele uma experiencia sofrível e miserável, bem, isso não é algo que realmente me dá prazer ou me faz feliz.

Quando eu critico negativamente um jogo não é pq eu quero ser o próximo AVGN ou pq eu tenho prazer em ser mesquinho, ou ainda pq eu quero pagar de "sou melhor que todos vocês e olhe como eu analiso friamente algo precioso para suas memórias de infancias, mwahahahaha". Eu não sou um crítico somelier de games que quer pagar de fodão achando tudo ruim e miserável exceto por um jogo que vocês provavelmente nunca ouviram falar pq vcs não são cool como eu. Não é isso, eu juro. 

Pra eu desossar um jogo na review, é pq puta que me pariu tunga la catunga tunga hey toma limonada pra acordar de madrugada, como esse jogo me destruiu. Eu quero gostar de todos os jogos que eu jogo, eu quero me apaixonar por suas histórias, quero me divertir com o seu loop de gameplay, eu sempre, sem nenhuma exceção em mil cento e treze jogos até hoje, começo com uma expectativa positiva a respeito do jogo - mesmo quando ele não merece, como ARC THE LAD 2 que é a excelente continuação de um dos jogos mais esquecíveis da história da humanidade (o primeiro ARC THE LAD), ou DARK RIFT que é um jogo surpreendentemente funcional quando consideramos que é a sequencia de um dos piores - provavelmente o pior - jogo de luta de todos os tempos, CRITICOM.

Tá, mas pq eu estou fazendo essa introdução toda pra falar do jogo de hoje? Bem, apenas pq Bafo de Fogo 3 é - obviamente - o sucessor de BREATH OF FIRE 2, e minha nossa senhora do malemolenga, como eu odeio BREATH OF FIRE 2. Não, odiar sequer começa a descrever tudo que esse jogo merece, pq ele é o pior RPG que eu já joguei na vida.

Serião mesmo.

Eu passei mais de cinco mil palavras explicando pq aquele jogo é um aborto tóxico em todos os sentidos possíveis e não vou entrar em detalhes especificos aqui, vide ler a analise de BREATH OF FIRE 2, mas o ponto de tudo isso é que suponho que vocês podem imaginar que eu não estava realmente ansioso para jogar o terceiro instalamento dessa franquia.

Quer dizer, quais as chances da Capcom perceber que fez uma bosta do tamanho do mundo (mentira, a Terra nem é tão grande assim), jogar tudo fora e recomeçar do zero? Extremamente baixas, eu te digo. Zero absoluto baixas, sendo realista.

... exceto que esse foi um dia as estrelas se alinharam e absolutamente tudo certo. Você sabe, um daqueles dias que só acontecem uma vez a cada geração, quando as estrelas estão certas e Doutor vem para ajudar, um milagre aconteceu. Um fodendo e verdadeiro milagre.


Minha nossa senhora o impossível aconteceu. Milagre. Senhores, senhoras e senhorio felinos não reconhecerás, venho por meio deste comunicar-vos que Breath of Fire 3, bafão de fogo da massa, é uma fodenda obra prima. Nao, mais do que isso, é um fucking obra de arte.
É o tipo de jogo que faz tudo isso valer a pena e eu não estou exagerando aqui. É por jogos como Breath of Fire 3 que eu jogo videogames, e é isso que veremos a seguir. Mas vamos começar pelo começo...

Em primeiro lugar, antes de qualquer coisa, eu tenho que abrir dizendo que a Capcom consertou TODOS os problemas que eu apontei no jogo anterior. Mas TODOS mesmo, eles fizeram um checklist e foram ajeitando essa porra um por um.

Pra começar que a tradução desse jogo é, acredite ou não, não apenas inteligivel como bem escrita. Sério, BREATH OF FIRE 2 não é apenas mal traduzido, ele literalmente tem palavras que não se conectam umas com as outras. Eu não estou de zoeira, ele não foi traduzido por uma pessoa que tem ao menos a segunda série em inglês, pq nenhum ser humano pode encher um jogo de frases como ESSA e achar que está bom:


Vocês entendem o tamanho do problema aqui? BoF3 por outro lado, como eu disse, não é apenas bem traduzido como o texto tem uma prosa realmente bela, repleto de momentos como esse:

Rei: I get the feeling that God wants to be left alone...

Então a tradução é boa, hurrah! A segunda coisa que esse jogo faz certo é que o grinding foi todo consertado. Sem mentira, eu contei, vc precisa de aproximadamente QUATROCENTAS lutas para comprar o equipamento da cidade inicial em BREATH OF FIRE 2, isso é de uma insanidade que eu não posso sequer começar a descrever.

BoF3 é um RPG bem mais razoável nesse sentido. Você ainda precisa de um pouco de grinding para ter dinheiro para os equipamentos mais caros, mas não é nada particularmente insano. O que me lembra do terceiro ponto, encontros aleatórios a cada 4 segundos, que é outra coisa desgraçada da cabeça que BREATH OF FIRE 2 faz e impede você de ir a qualquer lugar sem parar para uma luta a cada 4 FUCKING SEGUNDOS.

Aqui a Capcom não apenas resolveu o problema dentro das dungeons (a taxa de encontro é bastante aceitável para um jogo da sua época), como foi além e bolou uma ideia completamente nova para o overworld map: diferente de qualquer jRPG que eu já tenha jogado na vida (exceto por talvez algo similar em Bravely Default), BoF3 permite você escolher se quer lutar no mapa. Isso é... brilhante, na verdade.

Esta noite no menu temos cabeças decepadas ao molho de pixel art


Funciona assim: a priori você não entra em combates quando está no mapa do mundo. MAS se você quiser, a cada certo número de passos o jogo apresenta um "!" na tela que se você apertar X entra num minimapa com encontros aleatórios. Isso é a coisa mais fantástica ever, pq as vezes vc quer lutar para subir de nível, dinheiro ou farmar um item especifico, mas as vezes você só quer mesmo ir de um lugar ao outro sem ficar sendo interrompido! 

E o jogo deixar você ter controle sobre isso é uma das ideias mais lindas que eu já vi qualquer jRPG ter na vida, vai ser até dificil jogar algo SEM isso daqui pra frente pq eu gostei muito muito muito mesmo dessa ideia.

De qualquer forma, eu poderia fazer uma revisão completa de tudo que eu reclamei em BREATH OF FIRE 2 e apontar como a Capcom não apenas percebeu os problemas como efetivamente fez algo bom disso, mas a esse ponto vocês já pegaram a ideia da coisa. 


Ah, e sim, todo sistema de transformação em dragão FINALMENTE funciona direito aqui, depois de ser absurdamente quebrado no BoF1 e ser a coisa mais inútil ever em BoF2 (gastar toda sua mana pra dar um ataque, yay), finalmente eles atingiram o equilibrio e o subsistema do dragão é equilibrado, customizavel e divertido: você pode ter dragões diferentes dependendo de quais genes você seleciona, e você precisa de dragões diferentes de acordo com os ataques do inimigo e o custo de MP que você pode pagar por turno para manter a forma de dragão e usar os ataques.

Então se você tem um inimigo com ataques de fogo, por exemplo, vc pode virar um dragão de gelo para atacar a vulnerabilidade ele, um dragão de fogo para neutralizar o dano, ou jogar vários outros genes  (que são colecionaveis, então depende do que você já encontrou no jogo) variaveis no meio para ter outros resultados - se vc puder pagar pelo MP, o que sempre dá uma variedade ao sistema. Existem 11 formas de dragão possíveis apenas para Ryu, sem contar as fusões com os coleguinhas, então falta de opções definitivamente não é um problema aqui.


E isso se aplica a todas as mecanicas clássicas de Breath of Fire: gerenciamento da sua própria cidade, que é algo que BoF sempre faz? Aqui a Capcom deu um tapa de qualidade e o gerenciamento da vila das fadas não apenas é um minigame legal por si só como dar recompensas realmente uteis para o jogo. Pescaria? Outro tapa de qualidade, o minigame é legal e agora é REALMENTE util já que pescar te dá pontos (peixes raros dão mais pontos, obviamente) que podem ser trocados por itens realmente bons.

Ou seja, meu ponto é que a Capcom pegou tudo que fazia Breath of Fire único como RPG, todas as suas trademarks, e pensou "hã, como eu posso fazer isso ser útil E divertido para o jogador?". O que é uma coisa que parece óbvia e que parece que toda empresa deveria fazer isso sempre... mas acontece menos frequentemente do que você poderia esperar.


Então se parasse aí, Breath of Fire 3 já seria um jogo bastante suficiente. Ele não apenas conserta todas as cagadas (e que são muitas) do jogo anterior, como dá um tapa de qualidade em todos os pontos que conectam os esses jogos como uma franquia. Isso por si só, como eu disse, já faria desse um RPG totalmente okay e funcional.

Porém eu não disse que BoF3 é um jogo okay e funcional. Eu disse que BoF3 é uma fodenda obra de arte, e é sobre essa parte que veremos agora. Pq a Capcom não apenas fez o jogo funcionar (ao contrário do... tá, vocês já entenderam o quanto eu verdadeiramente odeio BREATH OF FIRE 2), como foi um passo além. Um passo que nem todos os RPGs vão que é a coisa de não apenas querer contar uma história como efetivamente querer simbolizar um tema. Eu não usei a palavra arte levianamente, eu te garanto.

Então, vamos lá: por volta dessa época, os RPGs japoneses eram estruturados de uma forma bastante similar. Na primeira metade do jogo ele te apresenta o mapa do mundo, fazendo você ir de vila em vila para conhecer o mundo inteiro, na segunda metade ele te dá algum tipo de forma de transporte que desbloqueia você ir a qualquer lugar do mapa e supostamente desenvolve mais a sua história.



O problema é que frequentemente isso é feito da forma mais generica e esquecível possível. Não é raro 85% do RPG ser "colete X coisas e depois que você coletar a história se desenvolve na sua hora final". Tipo você precisa coletar os 8 espiritos guardiões para abrir a Tumba de Atumalaca, ou ter as 6 gemas frufru para impedir que o deus das calças saruel desperte... vc sabe como a coisa funciona.

Enquanto essa formula pode gerar jogos genuinamente grandiosos como Final Fantasy X ou LUNAR: The Silver Star Story, na grande maioria das vezes você tem apenas uma sequencia de dungeons sem muita razão ou rima, sem desenvolvimento de história ou de personagens. É apenas filler pra bater um numero alto de horas com baixo esforço, simplesmente.

"A raposa e as uvas" - Esopo, 1997

E isso quando o jogo não apenas te enfia quest de coletar itens por razão nenhuma senão pra encher linguiça. De uma puta volta pra pegar a pokeflauta pq tem um Snorlax bloqueando a estrada e vc não pode (por motivo nenhum) apenas passar pelo lado, colete itens para pegar itens para pegar itens que vão cumprir uma missão aleatória que não tem outro objetivo que senão comer tempo - o que essencialmente descreve todo gameplay de ...

LA VAI ELE FALAR MAL DE BREATH OF FIRE 2 DE NOVO...


OH, TÁ ESSA EU NÃO ESPERAVA...

E de BREATH OF FIRE 2. Há! Mas sério, eu odeio essa abordagem de RPG, é apenas matação de tempo sem nenhum desenvolvimento real de nada e fillers não são vilipendiados em todas as midias que existem. E RPGs não são exceção, saiba você.

TÁ, MAS QUE DE OUTRA FORMA UM RPG PODE APRESENTAR O SEU MUNDO AO JOGADOR PARA NA SEGUNDA METADE TRABALHAR ELE COMO UM TODO?

Então, tem outro jeito... só que dá trabalho. É um metodo conhecido tecnicamente como "SENTA A PORRA DA BUNDA NA CADEIRA E ESCREVE A MERDA DA HISTÓRIA". Espero não ter perdido a atenção de todos aqui usando jargões tão tecnicos. Mas sério, a outra forma de fazer o grupo de heróis atravessar o mundo é dando um motivo para eles, narrativamente. Eles precisam ir até a próxima cidade por um motivo X, então acontece algo que os força a ir para a próxima e uma coisa DENTRO DA NARRATIVA vai ligando uma cidade na outra e assim formando a road trip da primeira metade do jogo.

Só que, como eu disse, isso dá trabalho. Você tem que desenvolver motivações dos personagens, tem que escrever um mundo, a porra toda. É muito mais fácil apenas meter que você precisa coletar 8 espiritos guardiões malenmolengas e deu. Porém quando um jogo faz isso, quando eles realmente se dão ao trabalho... meua migo, a coisa é linda.

... costuma ajudar, né?

Esse é um dos motivos (mas nem de perto o único) pelos quais eu acho o primeiro ARC THE LAD absurdamente desinspirado enquanto o ARC THE LAD 2 é um jogo completamente novo com uma vida própria. E é exatamente isso que BoF3 faz de tão especial na sua primeira metade: o mundo é apresentado a você narrativamente.

Nossa história aqui é que Breath of Fire III abre em uma mina com a descoberta do corpo de um filhote de dragão preso em um cristal subterrâneo. Isso é algo relevante pq nesse mundo dragões estão extintos há muito tempo, já que BoF III ocorre séculos após os eventos dos dois primeiros jogos. O que, apesar dos problemas que eu tenho com os jogos anteriores, é uma das facetas mais interessantes da série pq  certos personagens, raças e conceitos mudam e evoluem em um mundo coeso ao longo de milênios. PHANTASY STAR é outra série que faz isso, o que eu sempre acho bem bacana.

Enfim… os mineiros acidentalmente acordam o bebê dragão, que estava em estado de hibernação. Para mostrar sua gratidão, o dragão começa a rasgar a cara e incenerar os mineiros antes que eles tenham a chance de correr suas vidas em desespero. E quando eu digo incinerar, eu estou falando de uma forma pixelartemente visceral: 

Esse cara não tá legal, alguém dá uma água pra ele...

Anyway, perseguido pelos mineiros (que arremessam pão de queijo nele) o bebê dragão escapa da montanha - e por "escapar" eu digo rolou a porra toda morro abaixo, ficando inconsciente mas assumindo uma forma humana.  -Escapando da montanha, o dragão é finalmente capturado e preso a um trem, mas em trânsito ele escapa novamente e cai inconsciente na floresta próxima.

Rei, um jovem ladrão que vive na floresta, encontra o menino nu e indefeso, prestes a ser devorado por lobos e o resgata. Ryu (que é como Rei chama o menino sem memória) cresce com seus novos amigos (Rei já havia adotado outro órfão perdido, um menino da idade de Ryu chamado Teepo) e juntos eles sobrevivem como uma gangue de ladrõezinhos pq é um mundo dificil e um bando de órfãos tem que sobreviver como pode.

O jogo dedica um tempo consideravel das suas horas iniciais a estabelecer a vida dura, mas de certa forma idilica, que Ryu tem com seus amigos até que um dia a tragédia acontece... até pq se fosse só pra ele viver de boa pra sempre não tinha história, né? Um dia a gangue de Rei rouba de alguém poderoso, só que ao invés de receber só uma represália eles realmente não tinham ideia de com quem estavam mexendo.


Caçadores de recompensa são contratados para ir atrás dos meninos, que efetivamente o fazem não apenas caçando Ryu e amigos como queimando a casa deles na floresta. Na confusão, duas coisas importantes aconteceu: Ryu é separado de Rei e Teepo, e quando é encurralado pelos caçadores de recompensa (muito mais poderosos que ele), ele reverte a sua forma de dragão para sobreviver.

Isso dá inicio a jornada de Ryu, que começa a ser caçado como um espécime raro que ele é ao mesmo tempo que ele tenta encontrar o paradeiro de Rei e Teepo. Isso leva a uma série de desventuras fazem você rolar pelo mundo, conhecendo todas as cidades, procurando pistas e fugindo dos problemas que o seu segredo lhe trás.

Não é realmente interessante em um jogo que você é um fucking dragão... isso ser relevante para a história? Especialmente quando eu preciso ressaltar que era muito comum os RPGs usarem a premissa de "temos um conceito inicial que não será citado novamente até a hora final do jogo", como acontece em... tá, vcs sabem que jogo eu ia falar...


De toda maneira, enquanto está fugindo e procurando por seus antigos amigos, Ryu faz novos amigos e vai descobrindo mais sobre o que ele é: os dragões foram extintos a muitos séculos atrás no que é chamado de "Guerra dos Dragões". Embora, mais pra frente ele descobre, "guerra" não é bem o termo e sim que os dragões foram caçados até a extinção por guardiões supostamente recebendo ordens de Deus. Então os dragões foram mais expurgados pela inquisição do que houve uma "guerra" realmente.

E é nesse ponto, em que isso é revelado, que algo realmente interessante acontece: ao saber mais e mais sobre o passado do seu povo, Ryu desperta sua forma verdadeira de dragão... antes do seu corpo estar pronto para isso, o que resulta em que ele fique em coma por uns dez, quinze anos. O jogo não especifica exatamente, mas é algo nessa faixa... e como eu sei disso?

Bem, pq quando Ryu desperta novamente agora ele não é mais uma criança e sim está com o corpo de um adulto, e o mundo lá fora mudou bastante nessa decada. Essa é a parte interessante do que o jogo faz: ele te apresenta o mundo na primeira metade com Ryu sendo uma criança, e agora que estamos na parte do RPG que ele usa os elementos já estabelecidos para desenvolver a sua narrativa... é um mundo no qual se passou pelo menos uma decada do mundo que o conhecemos.


Esse salto de tempo é uma sacada genial por parte da Capcom, pq mantem as coisas sempre interessantes: você não visita as mesmas cidades que visitou quando era criança, visita elas uma decada depois. Isso quer dizer que as crianças que você conheceu agora são adultos, as organizações no poder assumiram completamente o controle ou ruíram, mas o que importa é que as coisas mudaram.

E nesse novo mundo, Ryu e seus amigos (uma vez que você os reuna, já que eles seguiram suas vidas depois que Ryu desapareceu e esse é outro momento muito interessante) agora vão atrás de um objetivo maior. Eu quero dizer literalmente maior: encontrar Deus. Não em um sentido metaforico metafisico, e sim literalmente encontrar Deus e perguntar pra ele pq ele ordenou o genocídio dos dragões.

O grupo roda o mundo de cima a baixo procurando por Deus, apenas para descobrir algumas coisas interessantes sobre o próprio mundo: ele é estranhamente... pequeno. Em nenhum momento BoF3 te dá um mapa do globo e existe uma razão para isso, porque depois de viajar a borda do mundo conhecido e mais além, através de desertos e montanhas e cidades antigas com ruas repletas de ruínas de tecnologia esquecida, o grupo alcança Deus.


A esse ponto, suponho que você já sabe o que esperar de um RPG japonês, certo? Quer dizer, "Deus" na verdade é um ser maligno que chacinou os dragões por motivos vilanescos (queria o poder deles ou algo assim) e então pagou de Deus para ser adorado, é assim que funciona e é isso que esperamos de uma história assim, é esse o grande plot twist, certo?

Então... about that...

Que pixel art delicinha, véi

Em um VERDADEIRO plot twist como poucas vezes na minha vida eu vi, quando você encontra Deus... bem, ela coloca as coisas de uma forma que você já vinha reparando a um bom tempo ao longo do jogo inteiro, mas realmente clica forte quando ela coloca as coisas pra você. A parada é a seguinte: o mundo que os personagens vivem é um mundo pacífico. É um mundo essencialmente bom.

Ao longo da sua jornada você se deparou com alguns problemas, claro, como crime, pobreza e coisas assim, mas o que esse RPG NÃO tem é uma ameaça global maligna do mal que odeia o bem. Não existe um império do mal dominando o mundo, não existe um vilão megalomaniaco que vai acabar com tudo, nada do tipo. Você resolve umas tretinhas aqui e acolá para conseguir seguir viagem, mas nada é realmente uma ameaça mundial que vc esperaria de um RPG.

Isso pode não ser algo que você note na hora, mas agora que Deus falou, é, sim realmente é um mundo bem de boas na verdade e todos os problemas são coisas bem locais. Mas... pq as coisas são assim? Bem, é aqui que as coisas ficam complicadas: o mundo é um lugar seguro e estável pq Deus fez com que fosse assim.

Also: Deus é uma cocotinha

Nenhuma nova grande tecnologia foi desenvolvida nos ultimos milhares de anos pq Deus usou seus recursos, seus guardiões e suas máquinas para garantir que fosse assim. Nenhum grande novo poder surgiu para perturbar o equilibrio do mundo pq Deus podou suas asas tão logo eles surgiam e foi isso que aconteceu com os dragões.

Deus explica que enquanto isso não fez ela particularmente feliz, ela ficou sem escolhas dado o quão poderosos os dragões eram. Por mais que isso machucasse seu coração, era perigoso demais permitir que tal poder continuasse existindo no mundo pq ela viu o que aconteceu das outras vezes que o poder correu sem controle: 90% do mundo é um deserto inabitável, o continente em que os personagens vivem é um pedaço de terra relativamente pequeno pq foi tudo que Deus conseguiu salvar como resultado da desertificação crescente. Então, é, deixar alguém com o poder que os dragões tinham era um risco que ela não poderia correr, pelo bem do mundo.

E esse é o grande plot twist do jogo: Deus na verdade não é um ser maligno, sequer é um inimigo contra o qual você precisa lutar realmente. Com efeito, Deus está mantendo o mundo seguro e estável - ainda que ao custo de tranca-lo em um status quo perpetuo que dura milenios. Mas qual a outra opção?


Isso nos leva a questão de Ryu, o último dos dragões, e duas opções que lhe são apresentadas no fim do jogo. Deus não tem nenhum desejo realmente de lutar com você, então ela oferece a opção de tirar os seus poderes e você viver para sempre em um estado de ignorancia no Jardim do Eden (literalmente é o nome da dungeon) OU você tem a opção de dizer foda-se essa merda, manter os seus poderes de dragão e lutar contra Deus. O que significa que se você a derrotar não vai ter mais ninguém para "cuidar das coisas" e o mundo estará entregue a própria sorte.

Não existe uma resposta simples aqui. Viver em um estado catatonico de fantasia para sempre (o que é o conceito cristão do Eden, afinal) ou arriscar o destino do mundo aos mortais que o habitam? Nenhuma resposta é a ideal, ou sequer boa dependendo de como você olha, mas são as escolhas que o jogo te apresenta e cabe apenas a você decidir como ele termina.


Em termos mecanicos, a primeira escolha resulta em um final anticlimático em que você não luta contra o chefe... mas é meio que o ponto, o tom anticlimático de apenas abrir mão da sua personalidade para viver na "perfeição" do Eden casa perfeitamente. OU você tem uma luta terrivelmente dificil contra Deus, mas pode vencer já que esse é todo o ponto que a preocupava sobre o poder dos dragões.

Ou seja, o jogo não apenas não ignora o fato que você é um dragão em sua narrativa, como ele reconhece que você ganha níveis e poder - o que é algo que raramente RPGs fazem, dissociando completamente a narrativa da mecanica. É bastante comum em RPGs você ter poder para causar 999999 de dano em uma rodada, mas o jogo te tratar como uma pessoa comum sem poder algum especial na sua narrativa. Em BoF3, entretanto, o fato que você pode causar 99999 de dano e derrotar qualquer coisa que o jogo colocar na sua frente é todo o ponto sobre o qual Deus se preocupa em primeiro lugar, e isso é uma sacada metanarrativa brilhante - quando não única, raros jogos misturam mecanica e narrativa com esse grau de deliberação.


Ou então, lembra que eu falei que o overworld não tem encontros aleatórios? Isso não é apenas pela questão mecanica, pq ele casa redondinho com a narrativa que o jogo quer passar para o jogador, já que todo o ponto de Deus do mundo ser pacífico e bom iria por água abaixo se as áreas entre as cidades fossem repletas de monstros e animais selvagens. O fato que você pode andar com segurança de um lugar para outro é algo diferente - e único - nesse mundo, que é meio que todo o ponto que Deus levantou.

Narrativa casada com o gameplay. Eu não tava brincando quando disse que BoF3 é arte.


E a escrita dos personagens nesse jogo não fica muito atrás não. Fortemente inspirado por FINAL FANTASY 7, todo o cast se sai muito bem. É bastante comum em RPGs japoneses o protagonista ser muito passivo e ter pouca agencia na história (ele mais resolve os problemas que aparecem e meio que é isso), mas aqui Ryu, apesar de ainda ser um protagonista mudo, tem toda narrativa focada nele e no fato dele ser o último dos dragões. Não é muito comum em um jRPG que o protagonista tenha não apenas agencia na história como sentimentos (o que se deve muito ao incrível trabalho de pixel art que o jogo possui) e o quão ele amadurece durante os acontecimentos da narrativa, ao invés de ser apenas um boneco mudo controlável.

Porém todos os personagens que compõe o grupo são interessantes e, mais importante, tem razões e conflitos pessoais para estar ali. Garr, por exemplo, é um Guardião que tenta matar Ryu ainda criança (já que é o trabalho dos Guardiões seguir as ordens de Deus e chacinar os dragões), porém ao ser derrotado por ele e ainda sim ter a sua vida poupada tem inicio uma profunda crise de fé. Se Ryu é um dragão e não é mau... então quantos dragões bons ele matou? E pq Deus ordenou matar os dragões indiscriminadamente, sejam eles bons ou maus? 

Ou então Nina, a princesa de Wyndia, que supostamente foge do castelo para ajudar Ryu na sua jornada porém ela tem uma certa dificuldade em admitir para si mesma é que ela não está fazendo isso por altruismo e sim pq é uma desculpa para fugir da responsabilidade de realeza que a oprime desde a infancia. 


E Peco é uma cebola de bigode. Ele não tem uma grande motivação realmente ou conflitos pessoais, mas ele é uma fodenda cebola de bigode e eu posso respeitar isso. E quando você pega ele, ele está no nível 1 (enquanto a party está por volta do 10-15) o que é uma coisa extremamente boa pq é o único personagem que você pode colocar sob um mestre (NPCs que são desbloqueaveis através de quests ou outros requisitos e que dão bonus de stats e habilidades toda vez que você sob de nível depois de ter "adotado" aquele personagem como mestre) desde o primeiro nível 1 - o que faz dele o personagem potencialmente mais forte do jogo.

Antes de encerrar, tá mais que na hora, já estamos pra lá de 5000 palavras, eu gostaria apenas de pincelar algo sobre o level design. As dungeons são, em geral, bem variadas e eu gostei bastante da coisa de que você tem que manipular a camera para encontrar itens escondidos, mas a coisa pela qual esse jogo certamente é mais lembrado é a dungeon mais original que eu já vi em mais de trinta anos jogando videogames. Estou falando, é claro, do Deserto da Morte (que alias um dos personagens até faz um comentário que esse é um nome que transborda otimismo...).


Essa dungeon fica no final do jogo e seu não tem nada eufemismo. A coisa aqui é que o jogador tem que percorrer uma distância enorme apenas guiado pelas estrelas a noite e descansando durante o dia (o jogo considera que a cada 16 passos se passa meia hora, então tem uma mecanica de tempo aqiu). 

A coisa é que você tem uma quantidade limitada de agua (onde o personagem desidrata após tantos passos sem beber, o que significa ter o HP drenado permanentemente enquanto estiver nessa dungeon) e, mais importante, é que literalmente vc tem que atravessar o deserto apenas guiado pelas estrelas.


Não fosse isso suficiente, após cada batalha aleatória o jogo recomeça girando alguns graus, o que pode fazer você perder o rumo em um momento de distração, e não raramente faz muitos literalmente ficarem perdidos nessa parte. Porém mesmo que você esteja seguindo o caminho certo, são vários dias de caminhada no deserto sem nenhum reforço positivo de que você está de fato no caminho certo - na verdade você tem apenas instruções bem vagas de para onde ir. Isso te enche de duvidas se você está MESMO fazendo a coisa certa, e o medo de se perder somado a agua ir acabando é uma experiencia bastante única de atravessar um deserto em um videogame!

De todas as coisas pelas quais eu poderia elogiar um jogo, ter o melhor deserto definitivamente não é algo que eu esperaria dizer...


Outro ponto muito legal dessa parte se dá por conta da interação com a party nos acampamentos (que precisam ser feitos durante o dia para você só viajar a noite, onde a agua é gasta mais rápido). No primeiro dia de descanso, todos estão bem animados com a jornada e tudo o mais, mas conforme mais dias vão se passando o diálogo de todos começa a mudar, mostrando o cansaço dos personagens, que chegam até a questionar se aquela decisão de atravessar o deserto foi realmente a melhor escolha (aumentando ainda mais as duvidas de que vc jogador já tem sobre estar no caminho certo). 

Nos ultimos dias de jornada a sua party esta que é só pó da rabiola, alguns personagens literalmente esparramados no chão sem forças. Cacete, que coisa bem bolada é essa seção do jogo.


Mas enfim, isso tudo sendo dito e feito... como eu encerro esse texto agora? O que mais há para ser dito a respeito de Bafo de Fogo 3? O que eu posso dizer que quando eu defendo que videogames podem ser sim uma forma de arte (embora não tem nada errado também em ser só um brinquedo, taí SUPER MARIO 64 que não me deixa mentir), é de jogos assim que eu estou falando.

Quando o jogo casa sua narrativa com elementos do gameplay durante toda a execução do jogo, ele cria uma experiencia única que funciona dessa forma apenas dessa forma nessa mídia. Breath Of Fire 3 foi desenhado especificamente para funcionar como um RPG de 60 horas e em qualquer outra midia seus temas seriam menor explorados, a execução da sua proposta artistica (o ponto que a obra quer passar) depende de ser um jogo.

E esses cameo, man

E ajuda muito que ele, enquanto jogo, seja um RPG todo redondinho, com mecanicas suculentas para afundar os dentes e que não apenas conserta todas as coisas que eu odiei em BREATH OF FIRE 2 como propõe novos paradigmas que seriam válidos até os dias de hoje.

Se dá pra elogiar um jogo mais que isso, eu desconheço palavras para tal. Porém no caso de você as conhecer, considere que eu as disse.

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
Edição 122 (Dezembro de 1997)


Edição 129 (Julho de 1998)


MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 032 (Novembro de 1996)


Edição 045 (Dezembro de 1997)


Edição 52 (Julho de 1998)


Edição 053 (Agosto de 1998)


MATÉRIA NA GAMERS
Edição 011 (Setembro de 1996)


Edição 024 (Novembro de 1997)


Edição 031 (Junho de 1998)