sexta-feira, 30 de outubro de 2020

[SUPER NINTENDO] RANMA 1/2: Chougi Rambu Hen (Abril de 1994)[#539]



Então chegamos ao terceiro jogo de Ranma 1/2 para Super Nintendo, e definitivamente é o melhor dos três: os golpes saem mais suavemente, os personagens tem ataques especiais e modos de combate diferentes conforme a forma que eles estão, os gráficos são os maiores e mais bonitos e a dificuldade está na medida certa.

Sendo o melhor jogo da série, é claro que esse foi o único que nunca foi lançado fora do Japão porque tomate cru é vitamina. Como de costume, sacumé...


Porém sendo o terceiro jogo de Ranma, e um que não foi lançado traduzido, não tem muito que eu possa falar  que eu já não tenha dito ainda. Então sabe o que eu fiz para esse post? Assisti alguns OVAs de Ranma 1/2 para ver sobre o que realmente é essa série e eu gostaria de tecer alguns comentários a respeito do que eu peguei a respeito.

Bem, a primeira coisa a ser dita a respeito de Ranma 1/2 é que é um manga diferente porque é um manga shonen escrito por uma mulher, algo que não é tão comum assim ainda hoje. Verdade que hoje isso é menos tabu porque aquele que é geralmente considerado o melhor shonen de todos os tempos, Fullmetal Alchemist (não é minha opinião, embora eu entenda o ponto) foi escrito por uma mulher, mas nos anos 80 isso era realmente sem precedentes.

Essa foi a terceira série escrita por Rumiko Takahashi, e até então a mais bem sucedida delas (embora hoje InuYasha seja mais popular) e de maior duração. E eu quero dizer que durou pra caralho mesmo: o mangá foi publicado de setembro de 1987 a março de 1996.


Ranma 1/2 é sobre Ranma Saotome, um menino que foi treinado no estilo "Qualquer Coisa tá Valendo" de artes marciais por seu pai, Genma, desde criança. Durante uma expedição de treinamento às amaldiçoadas fontes de Jusenkyo, Ranma cai na Fonte da Garota Afogada e agora, sempre que é molhado com água fria, ele se transforma em uma garota enquanto a água quente o transforma de volta em um menino. Ao longo da série, Ranma encontra vários outros personagens que se transformam em todos os tipos de criaturas. O pai de Ranma, por exemplo, se transforma em um panda. Seu melhor amigo/arquirrival Ryoga se transforma em um leitão preto e uma de suas muitas noivas, a amazona chinesa chamada Shampoo, se transforma em um gato.

Como dá pra ver, Ranma 1/2 é um hibrido entre anime de harém e manga shonen, e um bastante criativo nesse aspecto. Com efeito, essa é uma das maiores qualidades de Rumiko Takahashi: a maior força de Takahashi está na criação de situações absurdas com personagens igualmente surreais. 

Por exemplo, o primeiro manga de sucesso dela foi Urusei Yatsura, que é uma comédia romântica com muito fan service sobre um adolescente pervertido e sua roomate, uma alienígena gostosa e adorável que o eletrocuta sempre que ele sai da linha ... e todas as outras bizarrices alienígenas que vêm pra Terra atrás dela. 


Ranma ½ não é diferente nesse aspecto. Temos o herói titular que é durão, impetuoso, machista e morre de medo de gatos. Nabiki, uma das irmãs mais velhas da protagonista feminina Akane, é uma oportunista que vai explorar qualquer oportunidade para ganhar dinheiro rápido. Ryouga, o principal rival de Ranma, é um lutador formidável com uma força física incrível ... e absolutamente nenhum senso de direção. O cara se perdeu por três dias tentando encontrar um terreno baldio atrás da sua própria casa. 

E é disso que estou falando. Ranma ½ tem um conjunto bastante grande de personagens estranhos e memoráveis, e eu nem estou entrando no fato de que metade deles se transforma em outras criaturas quando se molha.

Da mesma forma, a premissa é curiosa para um manga shonen. Dois velhos amigos querem casar seus filhos para garantir o futuro de seu dojo. O único problema é que seus filhos, Ranma e Akane, meio que se odeiam, enquanto cada um atrai quase todos os membros do sexo oposto que encontra. Isso é duplamente conflituoso porque sempre que o protagonista se transforma em uma garota (o que acontece frequentemente) a situação muda e metade de inimigos ficam apaixonados por ela, enquanto metade das garotas que era apaixonadas pelo Ranma querem meter a porrada na Ranma menina. Não é preciso ser gênio pra ver que dá pra tirar boa comédia daí.


Além disso a parte das lutas é bastante criativa, já que temos uma variedade de ambos artes marciais fictícias inspiradas na vida cotidiana. Por exemplo, existe todo um estilo de artes marciais baseado em delivery de lamen. Tem uma arte marcial baseada em cerimonia do chá, uma baseada em cheerleading, e... jantares formais franceses. É sério isso. E isso faz o charme do show. Você não pode ter Ranma sem as artes marciais bizarras, da mesma forma que você não pode ter sem os personagens... peculiares. 

Só que por mais genial Takahashi seja na criação de personagens e premissas interessantes, seu pacing narrrativo é ... menos do que bom. Cada uma de suas obras tem quase o dobro da duração que deveria ter! 

No seu melhor, Ranma ½ é colorido, estranho e engraçado. No seu pior, é dolorosamente repetitivo. Um arco de história de Ranma funciona mais ou menos assim: algum novo desafiante ou interesse amoroso aparece (usualmente ambos), alguém fica pistola, um novo estilo de artes marciais é introduzido, ele é aprendido ou derrotado e tem algumas piadas de fan service sobre os peitos da Ranma. Isso é tudo, pessoal. Esse é o show completo. 


E isso acontece principalmente devido à aversão quase fundamentalista da autora a desenvolvimento de personagem (e é uma coisa da Takahashi mesmo, porque em Inu Yasha é pior ainda).

Takahashi é a rainha do status quo. Seus personagens realmente não crescem e evoluem como consequencias das suas experiências e interações. Sim, eles aprendem alguns golpes aqui e ali, mas são essencialmente as mesmas pessoas no início da série que são no final. O conceito de "desenvolvimento do personagem" que a Takahashi tem não é progredir e enriquecer os personagens que ela tem, é apenas introduzir mais personagens. O que depois de alguns anos de série deixa a coisa toda ridícula pra caralho.

Takahashi tem toda essa grande história montada ali, esperando para ser explorada para a comédia, ação e romance, e ela continua patinando no mesmo lugar, história após história. Ela continua colocando seus personagens nessas situações que os testam (tanto em combate quanto em relacionamentos), a situação é resolvida e então, quando tudo acaba, eles voltam a ser como eram antes. 


Ok, ótimo, o crescimento humano real raramente é uma linha reta. As pessoas cometem os mesmos erros indefinidamente, retrocedem e fodem com tudo. Pessoas são assim, ok. Eu entendo, de verdade, mas alguém só pode cometer o mesmo erro tantas vezes antes de você começar a resolve-los ou evita-los.

Sabe aquele amigo que você só vê de vez em quando porque, apesar do fato de que há coisas que você genuinamente gosta nele, a merda dele é demais para lidar frequentemente? Esse é o problema com os personagens de Ranma ½. Depois de um tempo, vê-los andar em círculos comportamentais é muito frustrante de assistir. 

Quantas vezes você pode realmente assistir Ranma dizer algo insensível e/ou meio maldoso, apenas para ver a Akane perder o controle e ter um ataque de furioso sobre isso? Quero dizer, na primeira dúzia ou mais de vezes, com certeza. Mas depois de um tempo, eles não se conheceriam bem o suficiente para fazer as coisas de um jeito diferente? Ou que isso tivesse consequencias no relacionamento deles?


Mas esse é a falha no trabalho da Takahashi, Ranma ½ em particular. Em última análise, é muito superficial na exploração de seus próprios temas e conflitos. Os cenários raramente são representados em todo o seu potencial narrativo, e possibilidades fascinantes são simplesmente ignoradas.

O que nos leva a questão do grande elefante branco na sala.


Como a experiência de Ranma de viver tanto como menino quanto como menina toda hora afeta sua percepção de gênero, papéis de gênero, como ele(a) vê sua própria identidade de gênero e sexualidade? Então, Akane se sentiria atraída por Ranma em sua forma de garota? Se não, isso seria um problema em um relacionamento entre eles? Ranma iria querer experimentar sexo como mulher, seja com parceiros femininos ou masculinos? E o que aconteceria se Ranma-chan engravidasse? 

Para todas essas perguntas, a resposta oficial de Rumiko Takahashi é: "Eu não penso sobre essas coisas, e nem você deveria."

Hã... não. Eu não posso concordar com essa resposta. Porque eu penso nessas coisas, e eu acho que a série seria mais rica se pensasse também. Eu entendo que o Japão é o Japão e que via de regra ele é muito mais conservador do que os americanos em temas mais sensíveis (o que já é bastante coisa, puta merda), mas ainda sim eu realmente gostaria que a série fosse lá. Uma história realmente boa faz você pensar, e Ranma 1/2 levanta todo tipo de questão realmente interessante.


Takahashi disse em mais de uma entrevista que quando ela criou Ranma ½, ela fez sem qualquer tipo de agenda social ou política e que sua única intenção era escrever uma boa história que fosse engraçada e divertida. Eu entendo isso. Eu respeito que o autor não queria falar sobre isso tanto quanto a Nintendo não quer colocar o dedo na ferida e dizer que Pokémon é uma coisa bem errada em seu conceito quando você pensa sobre isso. Eu entendo, de verdade.

Certo moça, você não quer fazer a história sobre isso. Mas se você vai fazer dez anos de história, ela tem que ser SOBRE ALGUMA COISA. Pessoalmente eu preferia que adereçasse essas questões, mas ok vc não quer fazer um Steven Universe japonês. Tá okay, mas então o que você quer fazer?

Aparentemente, nada em particular. Ranma é basicamente uma coleção de fillers que não levam a lugar nenhum em especial tanto quanto esse é o MESMÍSSIMO problema que Inu Yasha tem. Quer dizer, ela essencialmente escreveu a mesma história repetidamente, tipo, cinquenta vezes com personagens e golpes diferentes. Quanto tempo piadas sobre a Ranma não tendo vergonha de mostrar os peitos podem realmente funcionar?  Bem menos que dez anos, eu te garanto.


Mas então o que poderia ser feito de diferente? Uma solução para o desperdício de uma ideia é outra pessoa lidar com a mesma ideia de sua própria maneira, mas a premissa de Ranma ½ é tão específica e tão única que é impossível alguém tentar "fazer algo parecido" sem que seja chupinhar completamente o original. Esqueça as implicações criativas, de um ponto de propriedade intelectual seria um desastre completo. Não é como O Senhor dos Anéis vs. As Crônicas de Gelo e Fogo ou Battlestar Galactica vs Star Trek. 

Não há nenhuma maneira de fazer "algo tipo Ranma ½" sem que seja Ranma ½ e, portanto, qualquer potencial para desenvolver ideias e histórias enraizadas nessa premissa, a história de um idiota homofóbico, sexista e cabeça quente que de repente passa metade de seu tempo como um menina, estão presas exclusivamente a uma autora que não quer falar sobre isso

Este show tinha o potencial não apenas de ser engraçado, mas também de fazer as grandes questões da política sexual, gênero e sexualidade. Como ser uma garota sujeita a todas as merdas que elas suportam alterar  a perspectiva de Ranma? 

Se no show a transformação é usada como piada que Ranma agora faz coisas tradicionalmente femininas, como comer um sorvete parfait (sério, Japão?), isso não poderia ser extendido para justificar os sentimentos sexuais por garotos, desde que ele esteja em sua forma feminina? E quanto tempo antes que ele comece a confundir as linhas? 

Todas essas perguntas poderiam ser respondidas, e não precisa ser pesado ou panfletário. Tem como fazer isso de uma forma divertida e leve, de levar a conversa sobre sexo e gênero enquanto nos entretém com histórias de artes marciais malucas e um bizarro harém de pretendentes, ambos homens e mulheres.

Mas Takahashi não pensa sobre essas coisas, e nem acha que você deveria. Merda de touro. Perdoe-me, Rumiko. Eu entendo que você tem um grande talento para ter ideias, mas eu não sinto que você saiba realmente o que fazer com elas. Ou que sequer queira fazer alguma coisa com elas além de pagar os boletos do mês e isso é verdadeiramente uma pena. Uma obra de dez anos não pode sobreviver apenas de mal-entendidos e peitinhos balançando. O que é algo que eu nunca achei que diria.

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