Eu já comentei antes, mas embora eu tenha colecionado a Ação Games nesse período eu raramente lembro de algum texto daquela época. Vendo agora as matérias, é fácil entender o porque: não é nada realmente digno de nota, os textos são muito coisa que vc encontraria na contracapa de uma caixa. Isso sendo dito, tem uma frase em particular da Ação Games: "Bad Mojo é um nojo!". Frase maneira, né?
Bem, então finalmente chegou o dia de falar do famigerado jogo do Barata Simulator! ... espera, o que?!
Então, videogames são ferramentas maravilhosas capazes de nos proporcionar as mais diferentes experiencias. Jogar esportes que vc não teria como jogar (tipo futebol americano), viver aventuras exóticas, jogar como seus personagens favoritos, ter amigos e relacionamentos saudaveis, coisas assim impossiveis na vida real. Então a coisa mais louca e fora da realidade pode ser real em jogos... mas as vezes a coisa é meio louca e fora da realidade mesmo para os padrões dos videogames.
Tipo o dia em que alguém pensou "sabe o que mais? A gente totalmente devia fazer um jogo baseado em A Metamorfose do Kafka". Eu não sei dizer quantos galões de drogas foram consumidos pela Pulse Entertainment, mas sei dizer que esse é o espirito da coisa aqui.
Roger Samms (sacaram a referencia? Samsa, Samms) por razões vira literalmente uma barata e com isso agora precisa fazer a jornada para recuperar o seu corpo e nesse caminho aprende varias coisas sobre a sua própria vida. Sim, não é uma adaptação literal, mas como eu disse é inspirado. Mas sério, depois disso o que eles vão fazer? "O Principe - The Video Game" ? "Orgulho e Preconceito FPS"? Bem, seja como for, temos esse jogo... QUE É O MAIOR BARATO!
EU SABIA QUE VC NÃO IA SE AGUENTAR...
Até que eu resisti bastante, né? Mas enfim, vamos parar de palhaçada e falar do jogo em si.
Nossa história aqui é que o entomologista Roger Samms era um fodido que vivia no apartamento mais nojento do mundo (mais sobre isso daqui a pouco) até o dia em que seu departamento recebeu uma grande doação para avançar nas pesquisas sobre um novo tipo de inseticida. Rogerião da Massa então reagiu a isso de uma forma que é bastante familiar aos brasileiros:
Rogerio (que é interpretado como um ripoff do Jim Carey pq estamos em 1995) dá de mão na grana e tá picando a mula, só que na noite que isso tá acontecendo ele toca em um amuleto esquisito que ele tinha da sua mãe e a tal da feitiçaria ruim do título faz a mente dele ser transportada para uma barata. Pq não, né?
Seja como for, tentando voltar para o seu corpo você aprenderá através das coisas que você encontra no prédio e das visões que vc recebe ... pq vc é uma barata psiquica aparentemente... uma série de sequências de vídeo e narrativa ambiental que conta a vida de Roger, como ele conseguiu seu dinheiro e quem eram seus pais.
O que eu achei uma solução particularmente elegante e pouco comum para a época, pq ao invés de cutscenes vc aprende sobre a vida de Roger tipo caminhando em um fax que ele recebeu, ou pisando na secretária eletronica. Adicionalmente, as pistas sobre a vida de Roger e como ele meteu nessa situação são importantes não apenas por causa da narrativa, mas também para resolver os quebra-cabeças ao longo do caminho.
Alguém poderia argumentar que as coisas que são descobertas sobre a vida de Roger são beeeem cheesy e conveniente, mas então eu preciso lembrar que estamos falando de um jogo com esse nível de atuação e efeitos especiais:
Então cheesy está bem no espirito da coisa.
Mas chega de enrolar e vamos falar do gameplay em si... que não tem muito o que falar realmente já que o jogo é a mãe de todos os Walking Simulators: você movimenta sua barata pela tela e é isso. Não tem nenhum outro botão além dos direcionais, vc literalmente só anda. No máximo empurra algumas coisas, mas meio que é isso.
O que poderia ser a receita para o desastre, não fosse o fato que os caras da Pulse Entertainment foram super cuidadosos a respeito de como sua barata interage com o cenário. Em um jogo menos atencioso, apenas pareceria que seu bonequinho está flutuando diante de um chroma-key, porém aqui não: a movimentação do personagem e os sprites de animação foram feitos para casar perfeitamente com o cenário e vc realmente tem a sensação de estar andando em mesas, armarios, balcões da pia, cozinhas...
... o que nos leva ao real ponto forte do jogo: o cenário é o background mais bem produzido que eu já vi em um jogo até hoje. O prédio onde Roger mora é um lugar asqueroso repleto de ratos, baratas, fluídos viscosos espalhados por toda parte (a maioria eu nem sei identificar e prefiro que continue assim) e toda sorte lixo doméstico que você pode imaginar. É um puta de um chiqueiro asqueroso, mas a coisa é que não é um chiqueiro cartunesco em que você encontrar 78 pares de botas repetidas pq alguma coisa tem que preencher o cenário, é um chiqueiro realista onde vc anda sobre uma marmita semicomida que deve estar largada ali a semanas, e empurra uma caixa de giletes enferrujadas para matar uma ratazana que tomou conta do canto da sala.
Acredite ou não, sua barata é a coisa menos repugnante desse jogo. Eu argumentaria, inclusive, que esse é um jogo de terror. Não exatamente no sentido tradicional, com jumpscares e essas coisas, mas um tipo de horror mais profundo que penetra em sua alma e o aterroriza em sua própria vida muito depois de o jogo terminar.
Isso porque você não faz ideia do quão realisticamente asqueroso esse apartamento é. É doentio. Assim que eu terminei esse jogo eu lavei toda louça, limpei o banheiro até o branco me cegar, aspirei e passei pano na casa toda. Sério, eu não estou inventando isso.
Quase tão horrível quanto a imundice literal do apartamento, é a implicação desse cenário: essa é a história sobre a depressão na qual os dois homens (Roger e seu landlord) caíram é algo que pode acontecer com qualquer um. Com efeito, aconteceu comigo e eu passei uns bons anos vivendo desse jeito. Não recomendo, acredite.
Roger, vc aprende no jogo, era um estudante verdadeiramente apaixonado e esperançoso que queria fazer a diferença. Mas agora, ele se tornou pouco mais que uma barata. Apesar de sua genuína crença em si mesmo, ele é incapaz de conseguir realizar seus sonhos. Trabalhando obsessivamente nisso, ele negligencia tudo em sua vida para corrigir sua falha, levando ao seu quarto asqueroso.
A história de Eddie também é horrível. Outrora o homem mais feliz do mundo com uma esposa que amava muito, sua vida deu uma guinada drástica para pior quando sua esposa morreu inesperadamente no parto. Um homem tão satisfeito com a vida teve tudo tirado dele. Ele passou a fumar e beber. Ele não limpa mais a casa dele. Seu bar, a única coisa que lhe resta, está fechando. Ele tenta o suicídio, apenas para quebrar a chorar.
É de partir o coração. É absolutamente esmagador ver esses dois homens, cheios de esperança e ambição, se transformarem nessas baratas da sociedade querendo nada mais do que escapar desta vida como ela se montou. Isso é o horror em sua forma mais pura. Porque você sabe que esse destino pode acontecer com qualquer um. A qualquer momento, tudo pelo que você trabalhou, tudo pelo que você vive pode ser tirado do dia pra noite e vc ficar sem nada, nem mesmo a motivação para cuidar de si mesmo.
Parece estranho dizer isso de um jogo em que você empurra objetos como uma barata, mas a verdade é que a condição humana é explorada em sua extensão neste jogo. Dói ver as latas de tinta não usadas espalhadas por todo prédio, porque vc sabe que Eddie provavelmente as comprou para tentar mudar sua existência doentia, para pintar por cima de tudo o que havia de errado em sua vida. Mas ele não consegue mais encontrar a motivação para fazer isso. Elas ficam lá largadas, sem uso.
Na cozinha, você vê uma tentativa abandonada de fazer um gumbo de peixe-gato, a receita que você descobre que a esposa de Eddie costumava cozinhar em seu bar. Mas ele não consegue terminar. Porque nunca vai fazer jus à memória. É horrível em todos os níveis, e é aterrorizante saber que isso está a um dia ruim de acontecer com você.
Como uma barata, você vê as coisas por uma perspectiva muito diferente da de um humano. À medida que você luta para sobreviver contra os perigos intermináveis que enfrenta, você começa a pensar mais profundamente sobre o que significa essa existência. Você vê outras baratas se afogando em veneno. Um peixe em uma tábua de cortar, quase morto e ofegante. Um rato em uma armadilha, sangrando e os olhos começando a embaçar, ainda encontra forças para comê-lo se você andar muito perto. Não somos tão diferentes desses animais. Porque assim como eles, estamos todos lutando apenas para viver mais um dia. E é difícil. É muito difícil.
Mas no final das contas, Bad Mojo ainda guarda um raio de esperança. Porque se continuarmos indo contra todas as probabilidades, podemos conseguir. Podemos ser felizes novamente. E assim, embora este jogo ainda me assuste e me deixe extremamente enojado, eu o tomo como um sinal para seguir em frente com a vida. Mesmo em seus momentos mais sombrios, se você continuar, vai ter algo para você.
Nunca, nunca desista. Se eu consegui e se uma barata conseguiu, você também consegue.
MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
Edição 103 (Maio de 1996)