Em 1995, a Squaresoft estava com fogo na bacurinha: em fevereiro de 1995 lançou FRONT MISSION, em março de 95 teve CHRONO TRIGGER, em setembro de 95 TRIALS OF MANA e então em novembro esse Romancing SaGa 3. E só pra vc deixar de ser trouxa, em março de 96 já meteram um SUPER MARIO RPG: Legend of the Seven Stars, apenas pq sim. Todos jogos enormes, e nenhum deles é um jogo ruim! Pelo contrário, alguns desses são o ápice da videogamice RPGistica!
Sim, claro que eu sei que os jogos não foram feitos exatamente pelas mesmas pessoas, mas a Square também não tinha recursos ou pessoal infinito, de modo que realmente muita gente passou mais de ano morando embaixo das suas mesas no escritório e imaginando se era real ou não que eles tinham uma família esperando em casa... supondo que eles tivessem uma casa.
Essa é a primeira vez que eu vejo em um RPG uma adolescente dizer que vai sair de casa em uma aventura e o seu responsavel dizer "o caralho que tu vai, mocinha!" |
Seja como for, o catálogo de RPGs aparentemente sem fim da Squaresoft possui um número impressionante de "outras" franquias ofertas que - por alguma razão ou outra – nunca realmente pegou no Ocidente... ou mesmo veio pra cá. A série SaGa, por exemplo, foi uma dessas franquias. Seu primeiro jogo foi inicialmente lançado no ocidente para o Game Boy como "Final Fantasy Legends", sem muito sucesso ao ponto que o segundo e o terceiro jogo sequer foram tentados por aqui. Romancing SaGa 3, que é o jogo que nos importa aqui, só veio a ter textos oficialmente traduzidos para o inglês apenas em 2019 num remaster para os consoles da geração passada (PS4, Switch, PC e XBO) e eu não faço ideia do pq a Super Game Power encarna nesses RPGs japoneses que não serão traduzidos por pelo menos duas decadas, mas tamos ae né.
Voltando ao assunto, chamar a série SaGa de "um tipo de Final Fantasy" pode fazer sentido de um ponto de vista de marketing, mas isso não é realmente correto. Romancing SaGa não é Final Fantasy, ela é a sua própria coisa. E que coisa é essa, exatamente? Então... essa é a parte complicada de responder.
Os sprites dos chefes estão entre as coisas mais bonitas que a Square já fez no SNES, isso vindo de uma empresa que tirava tudo que podia do console |
A premissa do jogo é interessante: a cada trezentos anos acontece um evento cósmico aterrorizante chamado “Eclipse da Morte”, durante o qual toda a vida recém-nascida na Terra durante aquele ano inteiro morre, exceto por uma única criança. Este único sobrevivente recebe poderes sobrenaturais, e a primeira criança do Destino os usou para criar uma era de terror e malignidade, libertando os tinhosos do Abismo.
300 anos depois, durante o segundo Eclipse da Morte, apenas uma única criança nascida naquele ano sobreviveu, e ela também ganhou poderes sobrenaturais... que os usou para deter o primeiro capiroto e seus demonios.
A narrativa de Romancing SaGa 3 começa 20 anos após o terceiro eclipse, e a identidade da próxima criança sobrevivente ainda é desconhecida. Será ele/a uma força do bem, terá inicio uma nova era de terror ou essa entidade apenas quer montar uma barraquinha de churros? Dentre as premissas que eu já joguei de RPGs japoneses, essa é definitivamente uma das mais interessantes, na verdade acho que é a mais interessante na real.
E enquanto a premissa é fascinante por si só, a forma que ela é apresentada merece um biscoitinho extra: você escolhe um entre 8 personagens, e cada um tem sua própria agenda com seus próprios interesses. Não é que nem TRIALS OF MANA que existe uma grande quest épica para salvar o mundo da devastação e unir os povos de nossa nação, a estrutura do jogo é muito mais ao estilo de Octopath Traveler em que cada um na sua com sua própria história.
Espera, como assim o personagem é desequipado de suas armas quando é capturado? Isso é contra a convenção dos jRPGs! |
De certa forma, Romancing SaGa 3 é meio que o elo perdido entre TRIALS OF MANA e Octopath, pq a história é em camadas que entrelaça a jornada dos personagem de maneiras interessantes. Os personagens que não forem o protagonista que vc escolher vão ser NPCs que vão cuidar dos seus próprios interesses e eles podem ou não entrar na sua party caso seus interesses se alinhem.
Essa abordagem não linear das coisas instila Romancing SaGa 3 com uma quantidade impressionante de rejogabilidade, pois você não poderá experimentar todas as nuances da história completa até que tenha jogado com todos.
"Pq eu fui perguntar..." |
ENTRETANTO, contudo, todavia, porém... essa descrição soa melhor do que funciona em jRPG do Super Nintendo de 1995. Jogos de mundo aberto ainda não eram uma coisa, não havia toda experiencia que existe hoje de como soltar o jogador no mundo e dizer "o mundo é esse, faz tuas coisas ae" e Romancing SaGa 3 claramente é um jogo bem experimental nesse sentido.
O resultado disso é que a narrativa é desfocada e difícil de seguir. Cutscenes geralmente terminam sem que ninguém dê a menor indicação de onde você deve ir em seguida, o que leva a várias longas horas tateando no escuro de cidade em cidade até que você finalmente encontre um NPC que possa apontar a direção certa. Parte disso é intencional: parece que os desenvolvedores queriam que você se ocupasse com o número impressionante de sidequests, mas definitivamente funcionaria melhor uma narrativa mais focada em alguns pontos.
AH QUALÉ! |
O que eu quero dizer com isso é que RS3 é basicamente uma versão prototipo dos jogos de mundo aberto modernos. Pense em uma versão jRPG para Super Nintendo de Skyrim e você pode começar a entender que tipo de jogo RS3 é... só que sem os marcadores de tela. Isso significa que toda vila que você for vários NPCs vão te dar sidequests, e apenas uma descrição vaga de onde cumpri-las (as vezes nem isso, tem quests do tipo "meu amado desapareceu, se esbarrar com ele pelo mundo avisa eu").
Não que isso não seja divertido, jogadores de videogame adoram ter suas próprias agendas e fazerem as coisas no seu próprio ritmo, explorar lugares e ver o que tem pra fazer lá ou que quests cumprir. O problema... na verdade são dois problemas.
Três problemas, se contar o que quer que seja essa desgraça |
Primeiro, o conflito principal fique em segundo plano e, de muitas maneiras, se torne apenas mais uma missão secundária a ser concluída sempre que você sentir vontade. A história principal na verdade não é particularmente mais épica do que as sidequests, e enquanto isso pode não ser muito um problema para muita gente (com efeito, eu adoro Rogue Galaxy que tem uma estrutura bem parecida), a segunda parte é: como você não recebe indicação de nada na tela, a única forma de saber se você tem nível o suficiente para ir em uma area ou completar uma quest é tentando.
O que não parece tão ruim... até você passar meia hora numa dungeon apenas para descobrir que não tem a menor chance de vencer o chefe. Ou passar uma hora tateando em que areas do mapa mundo você consegue andar sem ser espancado como uma TV com mal contato. Não é tão divertido assim e existe um motivo pelo qual os jogos hoje não fazem mais as coisas desse jeito - porém como eu disse, RS3 é um embrião de jogos de mundo aberto e eles não sabiam ainda o que funcionava e o que não. E muita coisa não funciona aqui.
Porém o sistema de open world não é a única coisa que esse jogo experimenta, a Square aproveitou que estava lançando um jogo a cada dois meses mesmo e testou várias ideias nessa franquia menos popular pra ver o que colava. O sistema de evolução, por exemplo é bem único - não necessariamente bom mas único.
Veja, ninguém em seu grupo tem níveis ou ganha pontos de experiência após uma batalha. Em vez disso, um ou dois membros do seu grupo que ainda estão conscientes no final de uma luta podem ganhar aleatoriamente aumentos de atributos.
Existem essencialmente 4 atribuos nesse jogo: HP, MP, SP (que é o mesmo que MP, só que para ataques fisicos ao invés de magia) e o nível da arma. Desses, o único que você tem algum controle é o nível da arma: o personagem sempre tem chance aletória de subir a skill da arma que você usou no combate.
O problema é que quando eu digo subir um atributo, espere a versão mais muquirana possível disso: você tem uma chance aleatória de um membro da party, no máximo 2, subirem seu SP de 21 para 22. Ou subir seu HP de 123 para 124. agora considere que são 5 membros na party e... é, é uma chance bem aleatória e demorada de você evoluir. Pelo menos, em defesa do jogo, nenhuma batalha terminou sem que alguém recebesse um aumento de HP ou SP pelo menos. Ainda sim, se prepare para MUITO grinding e não é realmente surpreendente que ninguém nunca mais usou esse sistema... mas suponho que se tinha uma hora pra testar se funcionava, essa hora era agora.
E se os atributos dependem da aleatoriedade, espere então para chegarmos na parte de skills. Existem 5 tipos de armas, e cada personagem pode upar qualquer arma que você der para ele, com níveis mais altos dando mais dano e chance maior de aprender um movimento novo. Enfase no "chance".
Quando dá essa lampadinha na cabeça é que teve a inspiração |
Assim como os atributos aleatórios, Romancing SaGa 3 emprega um sistema chamado “Inspiração” que limita aprender ataques e skills de uma arma por trás de mais aleatoriedade. Toda vez que você ordena que um personagem ataque, há uma pequena chance de que ele se inspire e execute um movimento totalmente novo que será adicionado permanentemente ao seu arsenal. Usar esse novo movimento com bastante frequência fará com que ele seja dominado, o que permite que qualquer outro personagem desse tipo de arma o aprenda.
Como eu disse, eu não culpo os desenvolvedores por tentar algo, mas a coisa toda depender de tanta aleatoriedade diminui a experiencia como um todo. Embora lutar contra inimigos mais fortes pareça desencadear Inspiração com mais frequência do que outros (embora pode ser apenas impressão minha, não é como se o jogo te explicasse alguma coisa), o fato de você não saber o que vai acontecer ou quando diminui muito o seu poder de ingerencia sobre os resultados.
A arte já era bonita, mas ficou show no remaster de 2019 |
O resultado disso é que ao contrário de um RPG tradicional, os inimigos não ficam mais fáceis de matar à medida que as horas passam. Para piorar, nos desafios mais elevados algumas composições de equipe, certas skills e níveis de atributo se tornam quase obrigatórias... e você só vai saber isso quando estiver com 40 horas de jogo o tipo errado de armas e skills upadas. Justamente no ponto que é tarde demais para mudar isso, tudo que vc pode fazer é recrutar outros personagens e upar eles tudo que vc upou as 40 horas... torcendo pras skills que vc precisa virem na aleatoriedade... sendo que vc não sabe que precisa delas, só vai descobrir quando for tarde demais.
AAAAAAAHHHHHH MA PUTA QUE ME PARIU JOGO, NÃO É DIVERTIDO JOGAR 40 HORAS FORA COMO SE NÃO FOSSE NADA, TÁ BOM?
E esse acaba sendo o maior problema de Romancing SaGa 3: especificamente como informações importantes são intencionalmente ocultadas do jogador antes que o jogo inevitavelmente nos puna por não saber de algo que ele nunca nos disse.
Um dos chefes é uma colonia de ratos borrachudos |
Por exemplo, para muitas sidequests elas apenas são triggeradas se o seu protagonista tiver um valor mínimo de HP. Só que o jogo nunca te diz isso, nem quando isso está sendo verificado, ou do quanto vc precisaria ter de HP pra um NPC começar o evento da sidequest. Então tem várias cidades que você passou e "não tinha nada lá", apenas para na verdade vc não ter o HP adequado. E não é como se o jogo te desse dinheiro nas lutas aleatórias, então vc depende das sidequests para se equipar - logo perder elas dói muito.
Olha caras, eu entendo. Romancing SaGa 3 é de uma época que você comprava um jogo e passava anos abraçado com ele pq jogos eram muito, muito, muito caros e as opções de entretenimento podiam ser contadas nos dedos. Logo, eu entendo que o jogo espera que você gaste 500 horas nele pra aprender as coisas. Eu entendo pq foi feito desse jeito, mas não quer dizer que eu goste disso.
Um jogo te deixar trancado pq vc não tomou as decisões certas horas atrás me incomoda muito em um point'n click de 6 horas, num jRPG de 50 horas então... é dificil, cara. É muito dificil.
Romancing SaGa não tem romance realmente, mas tem arte renascentista |
O resultado final é que ao mesmo tempo é fácil e difícil gostar de Romancing SaGa 3, porque é um título que dá pra amar pelas coisas que ele tenta fazer - e que com efeito se tornariam pilares básicos de como videogames funcionam hoje em dia - mas odiar pela forma como eles são feitas.
Romancing SaGa 3 é um jogo muito afrente do seu tempo, mas isso não necessariamente quer dizer uma coisa boa.
MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 025
Ediçã 021 (Agosto de 1997)