terça-feira, 8 de setembro de 2020

[ANTIGA GAMERS 003] YU YU HAKUSHO 2: Kakutou no Sho (SNES, 1994)[#485]


Ok, o jogo de hoje é um bem interessante que eu não realmente esperava falar sobre ele aqui porque a Ação Games meio que caga pra jogos nunca lançados fora do Japão. Felizmente a Gamers é composta mais por nerds com os meus gostos e apreciam mais RPGs e animezices... ao preço de falar as mesmas atrocidades que eu falava quando tinha a idade deles. Tudo tem um preço, hã?

De qualquer forma, Yu Yu Hakusho é um jogo de luta baseado em um anime que é bastante especial para mim e eu gostaria de dedicar um tempo para falar dele.


Então, vamos começar do começo: quando se fala de manga shounen hoje em dia, nós passamos a esperar algumas coisas deles. Nós esperamos que haja um tema, que haja um cenário relevante (e não apenas os personagens lutando em santuários gregos de tamanho infinito por dentro), que tenha um protagonista com personalidade. Nós esperamos que os grandes mangas de luta hoje sejam mais coisas do que sobre as lutas, e de fato os melhores do genero atualmente são.

Pense em Naruto, pense em Fullmetal Alchemist, pense em One Punch Man. São mangas/animes mais do que sobre as lutinhas, e é isso que os torna verdadeiramente memoráveis. Mas... não foi sempre assim, foi?


Não, não foi. Antes disso os mangas shounen eram apenas uma sequencia de lutinhas emendadas umas nas outras com personagens com a personalidade de uma caixa de papelão molhado - as vezes um tanto engraçadalhos, mas meio que é só isso. Não havia um tema, não havia um objetivo na história, era só os poderzinhos da semana contra o inimigo do dia. Pense em Saint Seiya, pense em Dragon Ball Z, pense em Joj... nah, o Araki é um genio, ele não conta. Mas enfim, quando muito era uma coisa bem brega sobre "poder da amizade", mas nada muito profundo também.

Então a pergunta que realmente interessa é: quando isso mudou? Um dia os mangakas simplesmente acordaram e decidiram "meh, vamos fazer de outro jeito agora"? Não, claro que não. Houve uma fase intermediária, uma transição dos mangas dos anos 80 para os mangas dos anos 90 em que os mangas ainda eram  uma sequencia de lutinhas... mas haviam ideias de propor um tema, haviam tentativas de definir os personagens para além da classe de poder dele.

Houveram as primeiras tentativas de fazer personagens de verdade. E dessa fase de transição talvez nenhum manga (e posteriormente anime) tenha sido mais iconico e mais bem sucedido do que Yu Yu Hakusho. Mas... o que é Yu Yu Hakusho?

Nossa história começa com nosso jovem deliquente chamado Yusuke Uramesh, que é uma das piores companhias que o sistema educacional japonês pode produzir: ele se mete em brigas o tempo todo, mata aula, levanta a saia das meninas, enfim é o tipico mau elemento japonês. Esse é o nosso protagonista.

É interessante observar que o manga dedica um tempo a explicar porque Yusuke é do jeito que ele é: ele é criado por uma mãe solteira alcoolatra, cujos dois maiores passatempos são encher a cara e meter a porrada nele. Isso, definitivamente, não é o nosso tipico protagonista de anime shounen que normalmente é um garoto bobalhão que ganha poderes inimaginaveis e derrota o mal because justiça.

A história realmente começa no dia em que Yusuke, que nunca tinha feito uma única coisa de boa em toda sua vida, vê um garotinho atravessando a rua atrás de uma bola prestes a ser atropelado por um carro. Sem pensar duas vezes ele se joga para salvar o menino e comete o primeiro ato altruísticamente bom da sua vida. E morre por causa disso.

O que causa um enorme problema para o mundo espiritual, porque nem mesmo Deus previu que ele agora ia fazer algo bom e se sacrificar dessa forma. Eles literalmente não tem o que fazer com o espirito dele porque toda papelada para manda-lo tanto para o céu quanto para o inferno não estava pronta, não era previsto aquilo ter acontecido agora, e agora vai ter que fazer um relatório novo pra julgar ele por causa da forma altruísta que ele morreu e argh, esse menino não pensa na burocracia que os outros vão ter que enfrentar antes de morrer? Puta trampo mano, menino sem consideração pelos outros!

Assim sendo o mundo espiritual, que é meio que gerido por brasileiros na real, decide "dar um jeitinho" para resolver a situação de Yusuke: ele pode ressucitar se ele aceitar trabalhar como um "detetive espiritual". Ou seja, um humano que trabalha para o mundo espiritual e resolve tretas de coisas sobrenaturais fazendo putaria no mundo humano quando não deveriam - bastante como Supernatural, só que com golpes de anime shounen no lugar de balas de sal.

É um começo diferente para um anime de luta, verdade, mas o que REALMENTE torna Yu Yu Hakusho diferente?

Bem, é logo no começo ainda como um fantasma tentando recuperar o seu corpo que Yusuke aprende uma valiosa lição sobre o que a vida significa, sobre conexões e como os humanos se sentem quando essas conexões são cortadas prematuramente. Ele vê sua mãe negligente bebendo desconsolada pela perda de um amor que ela nunca soube expressar, seu maior inimigo Kuwabara inconsolável com a perda de seu arqui-inimigo e rival favorito e sua amiga de infancia Keiko por quem ele nunca deu nenhum valor por ser uma aluna certinha devastada.

Até mesmo o diretor do da escola que pegava tanto no pé dele está genuinamente sofrendo com a perda de um aluno que ele falhou em pode ajudar. Yusuke nunca havia dado grande valor a sua vida até aquele ponto (ironicamente, até morrer), em parte porque ele sempre achou que ninguém dava nenhum valor pra ele.

Não se fazem mais Shinigamis como antigamente...

Mas não importa importa o quanto você pode se odiar ou achar que você não tem valor, ao seu redor você irrevogavelmente tocou pessoas que você nunca esperava e se você desaparecer vai deixar para trás um buraco que simplesmente não pode ser preenchido. 

E é justamente isso que Yu Yu Hakusho faz de diferente do que os shounens faziam até então, a série gasta um tempo tempo para se aprofundar nos personagens, criando uma trupe de personagens complexos para te guiar através da narrativa, suas relações uns com os outros, o mundo ao seu redor e o seu lugar nele.

Um exemplo que talvez melhor ilustre isso é o grande vilão da primeira fase do anime: Toguro. Toguro era um humano que vendeu sua alma para ter juventudo e poder ilimitados, e de fato ele conseguiu isso. Ele é infinitamente poderoso e intimidador, porque afinal ele é um vilão de anime shonen. Mas isso não é tudo que ele é, Toguro também é... vazio.

Ele genuinamente não lembra porque ele abandonou sua humanidade para ficar forte, e se lembra foi por uma coisa que hoje não faz mais diferença. Ok, ele ficou forte pra caralho como tantos vilões de anime querem, mas... e daí? O que acontece depois disso? Qual é o plano? Você apenas vive sendo forte pra sempre? Qual é o sentido disso?

O próprio Toguro não sabe responder, ele apenas luta porque isso é tudo que restou pra ele... e isso é bem deprimente na real.


Pode não ser tão complexo na execução, ainda sim é um anime basicamente sobre lutas e sobre torneios de lutas, mas são perguntas que mangas shonen definitivamente não se faziam naquela época. Tipo o Freeza é mau porque é mau e ele quer ficar forte porque quer ficar forte e só isso. Não existe nenhum tipo de personagem aí, é apenas uma demonstração de poderes.

Durante toda segunda fase do anime, conforme Yusuke vai ficando mais e mais forte, ele também percebe que vai deixando seus amigos mais fracos para trás porque eles não estão mais no nível dele (assim como Goku passa a cagar para o elenco de secundários de Dragon Ball), e ele não pode deixar de notar de como ele está progressivamente se tornando... cada vez mais parecido com o Toguro.


Novamente, é um arco de personagem impressionantemente complexo para um manga desse tipo dessa época, não eram assim que as coisas eram feitas. Na verdade muito do que é considerado apenas esperado em um shonen foi feito pela primeira vez corretamente em Yu Yu Hakusho.

Por exemplo, é bastante recorrente a figura do aliado marrento do herói que começa como vilão, como o Vegetta ou o Ikki de Fenix. YYH também faz isso, porém aqui Yoshiro Togashi fez o melhor que pode para transformar Hiei em um personagem de verdade, lhe dando uma motivação para ele ser do jeito que é, traços de personalidade e mesmo defeitos - eu particularmente gosto de como ele se esforça para parecer mais foda do que ele realmente é. O Hiei é praticamente o avô do Sasuke em termos narrativos, só que eu prefiro o baixinho invocado.

Outra coisa que chama muito atenção em Yu Yu Hakusho é algo que você não esperaria: os valores de produção. O anime é muito bem animado, usa poucos frames repetidos e mesmo os personagens humanos trocam de roupa frequentemente, como se eles fossem... gasp... pessoas. 


TÁ, MAS O QUE TEM DE TÃO IMPRESSIONANTE NISSO? É UM ANIME BEM PRODUZIDO, O QUE TEM DEMAIS?

O que tem de mais é que é um anime da Pierrot. Sim, a mesma que fez a adaptação tenebrosa de Naruto com fillers infinitos, animações preguiçosas e que tinha episódios de 20 minutos que 12 eram apenas reprise do episódio anterior... sabe fazer uma adaptação bem bonita quando tá com vontade. Impressionante, não?

Isso não quer dizer que o anime é perfeito, entretanto. Isso porque no fim do dia ainda é um anime dos anos 90, e isso mostra. Existem várias piadas sexistas e homofóbicas... porque é assim que os anos 90 rolavam, mas isso é bem cringe de assistir hoje. Mesmo hoje o próprio Yoshihiro Togashi é um cara bem mais legal, ele tem um protagonita transexual no seu manga atual (Hunter x Hunter), mas ainda sim... anos 90 é tenso, né?


Por outro lado, existe algo particularmente interessante sobre esse anime: a dublagem dele. Isso porque quando o anime chegou no Brasil o estúdio de dublagem viu que as falas dos personagens tinham um tom mais streetwise - afinal o próprio protagonista é um delinquente - e que não combinava com uma tradução formal ao pé da letra, já que muito do tom do anime se perderia. Então eles decidiram arriscar e fazer uma adaptação de verdade, Yusuke passou de um delinquente japonês para um malandro brasileiro... e o resultado ficou ótimo.


Passou exatamente a ideia que o original queria passar e por muitos anos foi - e ainda é - citada como a melhor adaptação de dublagem ja feita no Brasil. Tanto que é a grande inspiração para a dublagem de One Punch Man. É realmente uma dublagem muito boa e feita por vários dubladores que eram dubladores de filmes, então era realmente impressionante ver vozes conhecidas como o dublador do Stalonne ou o dublador do Aladdin em um anime.... Só pena que a dublagem, assim como o anime, também é um produto dos anos 90, o que significa toda boa e velha insegurança conservadora dos anos 90.

Por exemplo, o Kurama (o mesmo do folclore japonês, o mundo espiritual é  formado por vários personagens do folclore japonês) tem um estilo bishonen e frequentemente é confundido com uma garota (com efeito a ideia original do Togashi é que ele e o Hiei fossem um casal gay, mas anos 90...). Então o que a dublagem fez? Colocou a voz mais grossa que puderam pelo bem da família tradicional brasileira - igual aconteceu com o Shun de Andromeda.

Puta merda, anos 90 era, uma merda mesmo...


Outra coisa relevante que eu tenho a dizer sobre esse anime é que esse foi o primeiro grande anime shonen que eu acompanhei. Quer dizer, eu já tinha assistido Cavaleiros do Zodíaco e Sailor Moon (que na versão animada é shonen, vai entender), mas eu não sabia que eram animes. No máximo "desenhos animados japoneses". Essa coisa de saber o que é anime, de me identificar como otaku (sim, eu já tive essa fase), de ir em evento de anime pra assistir FLCL em uma sala sem ar condicionado numa época que não existiam mulheres nessas coisas... 

Hm, colocando assim não parece uma era tão glamurosa assim... mas enfim, Yu Yu Hakusho foi o primeiro anime que eu acompanhei sabendo que era anime, escrevi fanfic sem saber que isso tinha nome e que outras pessoas faziam também, enfim aquela coisa de querer pertencer a uma tribo quando você é adolescente. Dias loucos antes da internet, eu te digo.

Ah, Anime Do. Nossa fonte sagrada de pagar para receber spoilers (sim, isso era uma coisa que existia na época). Da mesma editora que publica a Gamers, me pergunto o quão terrível seria hoje em dia ler isso...


Yu Yu Hakusho é um anime que definitivamente não envelheceu bem em vários aspectos, mas também não tem como negar a sua importancia assim como a qualidade do que é feito. As lutas são boas, os personagens nunca haviam sido desenvolvidos assim até então, a animação é excelente e não tem filler. Yu Yu Hakusho é um anime bastante decente hoje, e excepcional no seu tempo. Praticamente o avô de Naruto. 

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