quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

[SUPER NINTENDO] SUPER GODZILLA (Julho de 1994)[#600]

 

Como eu disse no texto sobre DUNE: The Battle for Arrakis, a coisa que eu mais aprecio a respeito da ficção é essa habilidade de usar uma situação fantasiosa falar sobre temas complicados da natureza humana através de metaforas ou mesmo diretamente, que de outra forma seriam muito espinhosos para se falar sobre.

Por exemplo, você pode reparar que os japoneses raramente falam sobre a segunda guerra mundial. É muito raro, pra não dizer quase inexistente, você encontrar mangas, animes, filmes ou livros japoneses sobre esse evento na história da humanidade. E suponho que todo mundo consiga imaginar as razões.


Hã, sim, claro, isso também, mas não somente isso. Os crimes contra a raça humana cometidos pelo exército imperial japonês durante a invasão da China, Coréia e Polinésia são coisas que não apenas os japoneses se envergonham até hoje, como a relação do Japão com seus vizinhos é bem menos do que... ideal... chegando a quase um século do acontecimento. Basta apenas dizer que tudo que os nazistas fizeram, os japoneses fizeram duas vezes pior na Ásia naquela época. O que inclui coisas que os nazistas não tiveram falta de decencia humana o suficiente para fazer, foi feio nesse nível a coisa.

Então, não é realmente surpreendente que os japoneses se sintam uma mistura de dor incomensurável e vergonha ao lembrar dessa época. Isso não quer dizer, entretanto, que não existam filmes japoneses falando sobre isso. Com efeito, o filme japonês mais famoso de todos os tempos - aquele pelo qual o Japão é imediatamente lembrado, um filme de 1954 que mesmo que você nunca tenha visto com certeza está completamente famililarizado com conceito:


A ocupação americana do Japão terminou em 1952, mas naquele mesmo ano, o primeiro teste de uma bomba termonuclear em escala real ocorreu em uma ilha no Oceano Pacífico - a uma distância que provavelmente ainda era muito próxima para os cidadãos japoneses. Ainda com as cicatrizes físicas e mentais de duas bombas atômicas lançadas sobre suas cidades em 1945, esta bomba H de 10 megatons era 1000 vezes mais poderosa do que Hiroshima. Dois anos depois, uma bomba H de 15 megatoneladas foi lançada no Atol de Bikini (um total de 23 explosões foram realizadas nesta área), e a area de efeito da bomba excedeu o que havia sido calculado inicialmente o que acabou expondo militares e habitantes das Ilhas Marshall a altos níveis de radiação.

Uma traineira de pesca japonesa chamada Daigo Fukuryū Maru (Lucky Dragon nº5) foi atingida pela radiação, causando a síndrome de radiação aguda e matando a tripulação do barco de envenenamento por radição alguns meses após a explosão. Não por coincidencia, a primeira cena de Godzilla de 1954 é justamente uma grande explosão de luz no meio do oceano e uma traineira de pesca sendo destruída por algo que não é totalmente compreensível.

Estou em dúvida a respeito de qual capa eu gosto mais, enquanto a capa japonesa aqui mostra the real deal, a capa americana mostra o Godzilla se enroscando com o King Gidorah e isso sempre é muito legal

Diferente de outros filmes de monstros famosos na época, como o próprio King Kong, Godzilla não quer nada em particular. Ele não quer dominar o mundo, ele não quer sequestrar nenhuma mocinha, nada. Godzilla é apenas fúria e destruição e sobre as pessoas comum se desesperando com algo que elas não são culpadas e nem podem deter. Tal como a guerra.

Todo mundo sabe hoje que o ataque mais iconico do Godzilla é a rajada de radiação que ele dispara, mas o que menos gente sabe é que no filme de 1954 é diferente. Godzilla não dispara lasers pewpewpew e sim lança chamas, e isso não é incidental. Em 10 de março de 1945 Tóquio foi alvo de um bombardeio incendiário americano onde mais 100 mil pessoas morreram queimadas e mais de um milhão ficaram desabrigadas (de uma regiã que viviam um milhão e meio de pessoas, então dois terços da população da capital) - perdeu absolutamente tudo que tinha na vida. Curiosamente, essa é a “cena da vitória” no filme Pearl Harbor do Michael Bay, sempre me pareceu de um mal gosto do caralho (pra dizer o minimo) colocar esse momento como “tomem essa, seus babacas”.

Isso é a coisa mais japonesa ever

Godzilla, de 1954, tem cenas bem fortes que remetem a esse momento com pessoas andando catatonicas pelas ruas queimadas, entre corpos, porque perderam tudo para o fogo do monstro - seja sua casa, seja suas famíias. Godzilla representa a guerra, e tal como a guerra, ele não particularmente se importa com quem fica no seu caminho.

E após isso, novamente, o filme mostra as consequências da guerra na vida real intercalando as cenas de Godzilla incendiando Tóquio com cenas das vítimas de queimadura sendo tratadas no hospital enquanto uma canção é cantada por crianças diante da visão da destruição:



Oh peace, oh light 
Hasten back to us 
May we live without destruction 
May we look to tomorrow with hope 
May peace and light return to us 
Our hearts are filled with prayer 
This we pray Hear our song 
And have pity on us 
May we live without destruction 
May we look to tomorrow with hope

A guerra é o verdadeiro rei dos monstros.

 O filme ainda tem um final bastante inspirado na vida real. Após todas as armas tentadas pelo exército não serem capazes de parar o monstro, o cientista Serizawa (mais ou menos o protagonista humano do filme, ele é mais filmado como um documentário do que como um filme tradicional) desenvolve uma bomba chamada “destruídora de oxigenio” que como o nome sugere, acaba com o ar em um raio de centenas de quilometros e extingue qualquer forma de vida que precise respirar - o que inclui o Godzilla, espera-se. No fim a bomba é usada e Godzilla é derrotado, mas ao custo de milhares de vidas.

"Bombs vs. bombs. Missiles vs. missiles. And now a new superweapon to throw upon us all. As a scientist, no, as a human being, I cannot allow that to happen." -Dr. Serizawa

 O que é uma referencia a como as coisas aconteceram no Japão. As duas bombas atomicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki foram dois dos piores momentos da história da humanidade, centenas de milhares de pessoas vaporizadas imediatamente e outros trantos milhões adoecendo de radiação ao longo dos anos é um horror indescrítivel... mas a única coisa mais horrorosa do que isso seria a guerra se arrastar por mais anos e anos e anos. Estima-se que se uma guerra “tradicional” tivesse continuado, pelo menos três vezes mais pessoas teriam morrido. As vezes você precisa ser um monstro para deter outro maior ainda.

All hail the queen of monsters!

No fim, Serizawa se sacrifica para ativar a bomba, levando consigo a formula junto com o peso do ato horrível que ele cometeu.

Como dá pra ver, Godzilla de 1954 é um filme surpreendentemente pesado e uma alegoria para os horrores da guerra. O que também se refletiu em uma bilheteria de quase dez vezes o custo de produção. Diante de tamanho sucesso, obviamente que era inevitavel que se fizessem mais filmes dele, mas... bem, felizmente não existiram mais guerras desse tamanho para serem reproduzidas, então os próximos filmes do Godzilla ... não tem aspirações tão artisticas, vamos colocar assim.


Bem, o que vocês esperavam realmente? Enfim, a série passou por uma mudança radical de perspectiva e desde então tivemos o bom e velho kaijuzão da massa metendo a piaba em outros kaijus que todos conhecemos e amamos.

Com efeito o sucesso foi tão grande que deu origem a um genero inteiro de filmes, que hoje é conhecido como TOKUSATSU. 35 filmes de live action depois (32 filmes japoneses, dois americanos e um acidente de trem descarrilhado que foi o filme de 1998 que definitivamente tem um monte de peixe), e mais um a caminho... Godzilla vs Kong, dirigido pelo cara do Death Note da Netflix... segura na mão de Deus...  e sem contar nas animações, animes, séries de TV... Godzilla é definitivamente o rei dos monstros.


Então você acharia que uma série que ficou conhecida por monstros gigantes metendo a porrada em outros monstros gigantes seria adaptada para o Super Nintendo como um jogo de luta, talvez um beat'm up, certo? 


Isso... não é um bom sinal. A grande maioria das rreviews é extremamente negativa ao jogo, tendo uma sessão inteira dedicada a ele pelo AVGN e mesmo do SNES drunk que sempre tenta ser positivo com os jogos. 

Normalmente esse é um sinal que temos um problemas em mãos, e isso é verdadeiro até que você percebe que a maioria das reviews negativas foca no aspecto "do que eu esperava que o jogo fosse e eu queria que o jogo fosse de luta ou algo assim". Isso não me parece a forma correta de analisar um jogo, esse jogo é muito criticado pelo que as  pessoas esperavam que um jogo do Godzilla fosse e não pelo que ele efetivamente é.

E o que ele efetivamente é?

Definitivamente o conceito de filme do Godzilla mudou ao longo dos anos...

Bem, o primeiro jogo do Rei dos Monstros no Super Nintendo eles tentaram... algo diferente, vamos colocar assim. E por "diferente" eu quero dizer que eu acho que não tem um gênero realmente para encaixar esse jogo, ele não é como qualquer outra coisa que eu já vi na vida. E quando você tenta entender o que o jogo pelo que ele é... Super Godzilla é um jogo curioso, vamos dizer assim.


Nossa história começa numa terça-feira de 199X, o fatídico ano quando uma transmissão alienígena diz que chegou para abalar e abalou a patricinha. E pra mostrar que eles não estão de putaria, mandam logo o King Gidorah como cartão de visitas porque é assim que os aliens rolam.

Ou seja, uma terça-feira tipica no Japão.


Tão típica, de fato, que a Agência de Defesa japonesa já tinha um plano para uma situação dessas. Nesse momento Godzilla estava tirando um cochilo no fundo do mar, como faz habitualmente após sua pisoteada de cidades de domingo, então o plano deles era instalar um chip de controle mental no Godzilla e usa-lo como arma para derrotar os invasores alienígenas.


A operação é um sucesso e agora a Agência tem algumas horas para controlar Godzilla e salvar a Terra da invasão dos aliens. O que, se vocês querem saber, me parece um plano desnecessariamente complexo. Quer dizer, lutar contra monstros invasores é o que o Godzilla faz por default, tudo que você realmente precisavam fazer era acordar ele e apontar na direção do monstro, não é realmente física quantica isso.

Você poderia argumentar que o Japão tem o problema do que fazer com o Godzilla quando não tem nenhum monstro para ele lutar, mas a verdade é que esse plano de controle mental também não resolve isso já que tudo que vocês conseguiram fazer foi deixar ele bem puto quando isso acabar - e vai acabar, já que o timer que o jogo tem nas fases é justificado pela história dele.

Normalmente o Godzilla não se importa muito com os humanos, no máximo ele tem esse hábito inconveniente de construir cidades no caminho onde ele quer passar - nada que ele não resolva facilmente - mas agora vocês vão conseguir fazer ele pessoalmente ter um problema com vocês. Parabéns a todos os envolvidos.

Cena pós-créditos de Super Godzilla

Eu também gostaria de notar como o Japão não percebeu o dragão gigante de 3 cabeças atacando a cidade até que os aliens informassem que eles estavam sob ataque. É por isso que os monstros sempre te invadem Japão, te liga pico de luz!

Dito isso, vamos explicar como o jogo de verdade funciona:


Essa é a tela padrão do jogo. A metade de cima é uma ilustração muito legal do que está acontecendo, mas é apenas pra bonito. O jogo mesmo é só a metade de baixo da tela. O jogo em si mesmo é basicamente andar no mapa, você dá comandos com o direcional para mover o Godzilla e... isso que você faz, basicamente.

O marcador "enemy" ali diminui conforme você se move na direção certa então você usa isso como radar para encontrar o chefe de cada fase. Vou postar aqui o mapa da primeira fase, mas tenha em mente que você não tem essa informação e precisa olhar o radar para saber se esta indo na direção certa.


Os pontinhos amarelos são itens e os pontos azuis recarregam sua energia. Super simples, não? 

Bem, sim. Só que a partir da segunda fase as coisas começam a complicar. Em primeiro lugar, o tempo todo você fica sendo interrompido por batalhas aleatórias com alienzinhos que embora não sejam uma ameaça direta ao Godzilla, ficam tomando seu tempo e tirando taquinhos da sua vida. Para parar essa aporrinhação você precisa encontrar a nave mãe alienigina e descer a porrada nela.

Outra variação do gameplay é que o tempo de controle que você tem sob o Godzilla não é infinito, então você tem que fazer algumas escolhas sobre cortar caminho. Porque aqui é o fucking Godzilla, então é óbvio que você pode cortar caminho pelos prédios ou mesmo montanhas - ao preço de perder um pouco de energia no processo.


Então o jogo, 90% dele, é basicamente isso. Gerenciar seus recursos enquanto caminha pelo mapa, tendo que fazer escolhas estratégicas para superar os obstáculos do mapa (tem uma fase que você precisa derrubar torres de alta tensão para eliminar barreiras de energia, por exemplo). O que parece um jogo em simples... e é mesmo, mas não é necessariamente ruim. Na verdade é basicamente o mesmo conceito de TOEJAM & EARL e esse é um jogo que eu gosto bastante.

Porque as vezes você só quer hangear com seu velho pal Godzilla, derrubar uns prédios, descobrir como chegar onde você quer chegar e está tudo bem com isso.

Na verdade se esse jogo fosse só isso seria bem melhor, porque o que puxa ele pra baixo são os outros 10% dele e justamente  que é onde a "ação" está. As lutas nesse jogo são bem estranhas, e enquanto isso não é um problema per se, logo você já vai ver qual é o problema exatamente.


O combate funciona assim: você tem apenas um botão que dá soco, quando você acerta um soco no inimigo começa a rodar essa roleta com os tipos de ataque que o Godzilla tem e cada ataque funciona diferente com inimigos diferentes. Por exemplo, o Mecha-Godzilla (da imagem aí) é imune a rajada laser, então você tem que dar rabadas e caudadas.

Quais ataques aparecem na roleta depende do quão cheia está a sua barra azul, e para fazer ela aumentar você tem que caminhar na direção do inimigo. Os ataques mais fortes só aparecem com ela cheia ou algo perto disso. Pra fazer a roleta dos ataque rolar é o contrário: caso você precise de outro ataque, você tem que ir pra trás pra figurinha ir mudando. Tanto pra encher a barra quanto pra fazer a roleta dos ataques mudar, se acabar o espaço então você tem que dar ré e avançar de novo, o que resulta nesse visual estranho que o Godzilla fica "dançando" pra frente e pra trás. 

O real problema desse sistema, entretanto, é que o adversário funciona da mesma maneira e não absolutamente nada que você possa fazer para impedir os ataques dele senão atacar primeiro. Por isso toda luta é uma corrida para dar o primeiro golpe que você conseguir, porque dar um golpe fraco ainda sim é melhor do que tomar um golpe.

Pelo menos as cutscenes dos golpes são legais

Como dá pra ver, suas opções defensivas são... limitadas, para usar um termo generoso. O principal problema é que os inimigos não precisam "acertar o soco", eles apenas atiram o ataque especial quando eles sentem vontade, os ataques causam de 40-150 de dano (você tem 600 de vida com a barra cheia) e podem ser executados em intervalos de tempo aleatórios - o que significa que as vezes o intervalo é nenhum.

O que faz desse um jogo muito, muito, mas MUITO dificil porque as lutas dependem bastante de sorte já que o comportamento dos inimigos é aleatório. Para minimizar isso você pode usar itens que recuperam vida, aumentam o ataque ou até mesmo dão invulnerabilidade temporária, mas a verdade que é que você pode ter apenas 4 itens e eles não faz muito milagre não.

A parte das batalhas ser tão dificil diminui muito o quanto eu gostei desse jogo, embora ainda não faça ele ser essa desgraça toda que pintam não.

Eu realmente não consigo ficar irritado com um  jogo em que o Godzilla dá uma cabeçada na barriga do King Gidorah, o filme de 2019 teria sido bem mais legal se tivesse essa cena (ou teve e eu não vi, filme escuro da porra aquele)

Quer dizer, se eu tivesse que classificar esse jogo eu o colocaria sim no espectro ruim dos jogos, mas houveram momentos em que eu realmente gostei desse jogo. A pixelarte é genuinamente legal e a coisa de andar pelo mapa administrando recursos e derrubando coisas no seu caminho é agradavel. É uma pena mesmo a mecânica de combate incrivelmente mal projetada (tornada pior ainda pelo tutorial ser dado num engrish terrível) e o nível de dificuldade ser absurdo, porque seria um jogo bem gostosinho de outra maneira.

Mas  hey, se você vai reclamar do jogo pelo menos agora reclame pelos motivos certos, né? Eu não quero mais ouvir esse bullshit de "é ruim porque eu queria que fosse um jogo de luta ou algo assim". Todo jogo tem algo de ruim por seus próprios méritos sem que você precise inventar os seus, essa é a grande lição aqui.

Não, espera... 

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
Edição 067