segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

[PC] BENEATH A STEEL SKY (Março de 1994)[#605]



Toda nova mídia que nasce sofre um grande período de preconceito do público já acostumado com como as coisas eram antigamente, dado que o ser humano detesta mudanças (o que evolutivamente faz sentido, na natureza qualquer coisa diferente que acontece provavelmente é só uma nova forma de te matar). Hoje é relativamente aceito que os videogames são capazes de contar grandes histórias quando se propõe a isso, mas durante muito tempo essa ideia pareceu absurda (ainda parece se você for um colunista da Folha de São Paulo). Antes dele o cinema enfrentou o mesmo preconceito por ser uma "bobajada para os burrões que tinham preguiça de ler, a verdadeira cultura" e algum dia até mesmo escrever coisas no papel deve ter sido visto atravessado porque "todo mundo sabia" que contar histórias de verdade era apenas tradição oral. Alias pensando bem, em algum ponto até mesmo falar deve ter sido mal visto porque é assim que o ser humano rola.

Isso é verdade para todas as formas de mídia, e definitivamente para os quadrinhos não foi exceção. Nos anos 80 quadrinhos eram apenas uma bobagenzinha para preencher tirinhas de jornal de domingo ou para tirar dinheiro de crianças (seres incapazes de apreciar cultura "de verdade"), "todo mundo sabia disso". Ainda mais porque durante os anos 60 e 70 o governo americano deu aquela boa e velha canetada de governo "para proteger as nossas crianças" e a censura comeu solta, fazendo com que os quadrinhos tivessem que ser mais... retardados. 

Sabe aquele Aquaman bobalhão que "só tem o poder de falar com os peixes" que todo mundo acha que sabe? Aqueles desenhos bocabertas como Superamigos? O Batman bobalhão que inspirou a série do Adam West?


O que, como geralmente acontece, levou a uma geração de artistas que cresceu com aquela midia querendo se expressar artisticamente através dela. Mais ou menos como a revolução da "usar a ficção cientifica para fazer crítica social" dos anos 60, do qual DUNE é o maior representante ou como FINAL FANTASY 6 mudou as regras sobre o que dava certo fazer em um videogame. Para os quadrinho essa era de "renascença" ocorreu nos anos 80 e algumas obras seminais foram feitas nesse sentido de fazer quadrinhos enquanto forma de arte, como o "O Cavaleiro das Trevas" e "A Queda de Murdock" (que criou o que até hoje é a visão "oficial" do Batman e do Demolidor) de Frank Miller, e "A Piada Mortal" de Alan Moore.

Porém, nenhum desses quadrinhos é mais conceituado que "Watchmen" de Alan Moore e Dave Gibbons.



Agora, Watchmen é um quadrinho interessante porque para quem não está familiarizado com o contexto pode pensar "hã, não tem nada demais aqui, é um quadrinho bom mas não vejo porque é isso tudo". Só que aí é que entra o contexto da época: Watchmen foi a grande obra (talvez não a primeira, mas definitivamente a maior) que propos a questão "Como seria se vigilantes fantasiados existissem no nosso mundo? Quais seriam as consequencias?"

Veja, não em um mundo fictício em que existissem Metropolis ou Gotham Citys da DC, e nem a realidade fantasiosa da Marvel em que as pessoas se acostumaram a ver os Vingadores explodindo prédios toda semana lutando com supervilões. Não, o nosso mundo mesmo, onde houve a guerra do Vietnã, onde estava acontecendo a guerra fria (em 1985), como seria? 

"Quem vigia os vigilantes?"

Watchmen liderou uma nova forma de pensar quadrinhos, mais adulta, séria, posando questões morais... o que não foi tão bem compreendido assim por pessoas com menos bom senso e talento que Alan Moore, o que resultou na "era trevosa darkiiiiiiii du mauuuu" dos anos 90 com o Homem Aranha de uniforme negro, Superman morrendo, Batman cadeirante e sem contar os novos "anti-heróis cheios de atitude que são meio malvadões também" como Spawn ou o Venom. Porém esses são casos que não entenderam a proposta de Watchmen e até hoje Alan Moore não tem uma boa relação com quadrinhos pois a sua critica foi deturpada e comercializada até sair pelos ouvidos.

Alias Zack Snyder é um grande fã de Watchmen tanto que ele dirigiu o filme adaptando quadrinho por quadrinho o tanto pode, mas eu não realmente acho que ele entendeu sobre o que Watchmen é. Ou que o Zack Snyder entenda a proposta de qualquer, na vida.


Essa paródia nos Simpsons conseguiu retratar bastante bem a relação de Alan Moore com os quadrinhos, o Bart nessa cena é praticamente o Zack Snyder

Como não podia deixar de ser, adaptar uma obra tão grande quanto Watchmen para os videogames seria o caminho natural... porém um não tão fácil assim, já que como estabelecido Alan Moore não é realmente um grande fã de adaptações das suas obras. O estúdio britânico Revolution Software propos aos seus conterraneos Alan Moore e Dave Gibbons a ideia de fazer um point'n click de Watchmen... ao qual obviamente não foi pra frente pelos motivos já citados.

Porém Dave Gibbons gostou da ideia de trabalhar com essa coisa nova, esses tais de "videogames"  e concordou em trabalhar com a Revolution em um projeto original. Assim Gibbons escreveu o argumento geral e ilustrou todas as telas do point'n click que viria a ser esse "Beneath the Steel Sky".



Passado na Austrália após algum evento apocalíptico não especificado, é a história de uma criança chamada Foster que junto com sua mãe estava fugindo de uma metrópole distópica chamada Union City. A fuga, entretanto, acabou em um acidente no Outback australiano onde sua mãe morreu e ele foi criado por um grupo de aborígenes. No início do jogo, uma força de segurança com botas de cano alto  e uniforme nazista-like chega em sua aldeia procurando especificamente por ele, mata sua família adotiva e o leva de volta para Union City como prisioneiro - e ele não tem ideia do porquê.

Agora ele precisa encontrar uma forma de fugir da cidade controlado pelo onipresente sistema de computador LINC e quem sabe descobrir o segredo da sua origem no meio do caminho.

Com uma premissa tão sombria e esse título evocativo, você poderia pensar que Beneath a Steel Sky é algum tipo de história de ficção científica séria e pesada. Em alguns aspectos é, mas sua execução majoritariamente tem o tom de uma sitcom dos anos 70. Inspirado pelo sucesso dos jogos mais divertidos da LucasArts, como MANIAC MANSION: Day of Tentacle e THE SECRET OF MONKEY ISLAND, a Revolution pegou uma premissa que soa bastante com algo como "1984 cyberpunk" e decidiu misturar ela com o senso de humor a moda dos jogos da Lucas Arts meio que a força. E, honestamente, eu não acho que funcionou. 



A música alegre, o humor pastelão e as piadas bobas não combinam com o cenário sombrio distópico opressor. Veja, eu não sou contra misturar dois tons completamente opostos e de fato você tem algumas obras realmente boas nesse sentido, como o RPG de mesa (ou de livro, como a Ação Games chama) Paranóia que é um tipo de 1984 que abraça o absurdo da situação e o eleva a enésima potencia para propositos comicos. 

Paranoia: onde a felicidade é compulsória e o Computador Amigavel é seu amigo

BaSS não é isso, entretanto. Seria bem legal se fosse, mas não é. É mais claramente uma obra que era para ser séria e  pesada, e então na última hora enfiaram o humor dos point'n click da Lucas Arts porque... era isso que estava dando certo para esse genero na época. E honestamente a Revolution não é muito boa nessa coisa de humor também.

O que é uma pena, porque quando não está tentando ser engraçadalho, o cenário proposto por Dave Gibbons é bastante interessante. Union City inverte o tropo da ficção distópica de um cenário urbano onde os pobres vivem nas favelas e os ricos se elevam acima deles no luxo. Aqui, as classes baixas vivem e trabalham nos níveis superiores entre a fumaça das fábricas, enquanto os ricos vivem nos níveis inferiores limpos e seguros (para não falar com mais espaço). 



Grande parte da história de Union City é contada por seus habitantes. Nos niveis mais elevados da cidade estão os trabalhadores comuns, que não se importam realmente com quem você é ou se você está sendo procurado por algo, contanto que você não mexa nas coisas deles ou interfira com as cotas de produção que eles tem que entregar (o que sendo este um point'n click, é naturalmente algo que você precisa fazer). 

Em areas mais proximas da superficie você encontrará funcionários menos peão de obra, como o supervisor de fábrica grosseiro chamado Gilbert Lamb, que trota por aí com um casaco de pele extravagante ("feito com os últimos dez castores do mundo!", ele se gaba) enquanto seus humildes trabalhadores sequer tem trajes adequados antirradiação para trabalhar na usina nuclear. 

Ele também sabe pouco, e se importa menos ainda, com o que sua fábrica realmente faz, mas tem orgulho do status que seu cargo proporciona. É uma pequena sátira divertida da cultura corporativa, e que passa nas entrelinhas uma boa ideia de como Union City funciona na realidade. 



Seu objetivo inicial é dar o fora da cidade e para isso Foster precisa chegar ao nível mais baixo, mas sua progressão é dificuldade pela rígida estrutura social da cidade. Para usar os elevadores, os cidadãos devem alcançar um determinado status - uma forma do governo totalitário encarregado de manter os pobres e os ricos segregados. Não é por acaso que, quando o jogo estava sendo feito pelo estúdio inglês, a Grã-Bretanha estava passando por um governo de extrema direita sob o comando de Margareth Thatcher, e meio que todo o ponto da direita é estabelecer castas superiores e inferiores de cidadãos.

É um jogo com uma crítica política bem aguda, de acordo com a época em que foi feito. Mas o jogo não faz realmente muita coisa com essa proposta, focando principalmente na situação imediata de Foster e sua tentativa de fuga da cidade que a partir da metade do jogo passa a ser uma busca pela verdade sobre quem ele é porque aconteceram com ele as coisas que aconteceram. 



Para um jogo escrito por um artista como Dave Gibbons, soa mais como uma oportunidade perdida, porque a ficção distópica costuma ser uma ótima maneira de dizer algo significativo sobre nossa própria sociedade (ou a sociedade da época, no caso). É verdade que há alguns momentos de reflexão no jogo que abordam essas questões, como quando você participa de um julgamento que o juiz trata como um game show porque o acusado é "apenas" um cidadão de classe D, e ele é condenado a prisão perpetua mesmo sem ter provas, testemunhas nem nada, mas "como ele é um cidadão de classe baixa, deve ser culpado". E no momento seguinte você estará resolvendo um quebra-cabeça elaborado para jogar um cachorro em uma piscina. O humor soa realmente como uma ideia de ultima hora, como se eles tivessem escrito um conto de ficção científica sério e sério, então jogaram Day of the Tentacle e pensaram “Droga, é melhor deixarmos isso mais leve com algumas piadas”.

Existe alguns registros que de fato, houve alguma tensão na Revolution sobre o tom do jogo, o que explica sua inconsistência. Uma parte queria que o diálogo fosse divertido e mais tongue'n cheek, outra queria que fosse mais sério. Eles tentaram chegar a um acordo e encontrar um meio-termo entre o humor dos jogos da LucasArts e as aventuras “ridiculamente sérias” de Sierra. Um bom exemplo dessa cisão no estúdio é que atores da Royal Shakespeare Company foram contratados para gravar o diálogo, mas o estúdio mudou de ideia e regravaram tudo com dubladores tradicionais. A atuação é decente, mas o tom cômico-cínico da dublagem tenta muito imitar Secret of Monkey Island e, mais uma vez, parece deslocado no cenário.



Tonalidade a parte, ao menos a parte mecanica do jogo está muito arrumadinha. A principal vantagem aqui sobre os jogos da concorrencia é que o menu de ações (talk, use, give, take, etc) que era comum nos point'n click da Lucas Arts foi bastante simplificado. Agora o botão esquerdo do mouse dá uma descrição da coisa que você clica, e o direito faz a interação adequada aquele clique. Definitivamente muito melhor e eu fico feliz que esse estilo implementado aqui se tornou o padrão para o genero daqui para frente.

Na questão dos puzzles, BaSS é um jogo linear com soluções lógicas (embora não imediatamente óbvias), mas mesmo as coisas que voce não consegue deduzir por conta própria quando você descobre como faz pensa "ah, okay, isso faz sentido... kinda". Felizmente não é a putaria randomica de SAM & MAX HIT THE ROAD, então é um bom jogo com uma boa duração na questão puramente técnica. 


Para resolver os puzzles você usa itens colecionaveis, mas mais importante que isso usa seu sidekick robo Joey - cuja personalidade existe em uma placa de circuito e, no decorrer do jogo, pode ser conectada a uma série de carcaças diferentes. Isso fornece ao seu amigo (com quem Robert tem a maior parte dos dialogos, tal qual em Sam e Max) uma gama de habilidades diferentes para ajudar no seu progresso, seja destrancando portas, explorando áreas fechadas ou mesmo derrotando inimigos. Point'n clic clássico.

Menos clássico são as sequências de cyberespaço LINC do jogo. Para avançar, Robert tem que entrar na realidade virtual LINC (não sem antes instalar uma porta de acesso USB na sua cabeça, bem ao estilo cyberpunk), na qual os documentos, memória e dados são representados abstratamente. Na teoria, esta é uma ideia interessante. Na prática, a teoria é outra. 


Você tem sessões sobre vagar por um mundo azul berrante de dar água nos olhos, como um homem nu roxo e amorfo, enquanto um midi agudo de seis notas toca repetidamente. Se isso não é a definição de um pesadelo, eu não sei mais o que seria.

Quanto a dificuldade do jogo, em algumas ocasiões é possível morrer. Porém o jogo é generoso com autosaves e não há sequências de ação ou quebra-cabeças cronometrados, então cada uma das sequências de morte em potencial tem uma solução lógica para o quebra-cabeça. Menos mal.


No geral, Beneath a Steel Sky é um point'n click mediano que é mais desapontante do que ruim. Você fica frustrado pelo que ele poderia ter sido, mas o que ele é realmente ainda sim é bastante funcional. O que, para um jogo distópico cyberpunk escrito e ilustrado por um dos quadrinhistas mais revolucionários de todos os tempos, "bastante funcional" é meio que pouco.

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
Edição 067