quarta-feira, 24 de agosto de 2022

[#956][Nov/95] FRANKENSTEIN: Through the Eyes of the Monster


Eu sempre considerei que o período entre 95 a 98 - a era clássica do Playstation - fosse uma das eras dos videogames que eu mais conhecia. Afinal eu passava a tarde nas locadoras jogando 1 real a hora (ou assistindo na maior parte do tempo, não é como se eu tivesse 1 real naquela época)  tinha acesso a uma grande miriade de jogos. Além disso eu acompanhava religiosamente a Ação Games, então eu estava por dentro de tudo, certo?

Ainda sim, volta e meia aparece nesse blog um jogo que ou nunca tinha remotamente imaginado, ou apenas não prestei a menor atenção na época. Como por exemplo um point'n click com atores (não muito diferente de Roberta Williams' PHANTASMAGORIA) estrelado por fucking Tim Curry. Tá, verdade que na época eu era uma criança ignorante e não fazia ideia de quem um dos maiores atores dos nossos tempos era, mas hoje que eu sou um adulto ignorante isso não passa batido por mim! Um jogo estrelado pelo Tim Curry, yay!

Então imagine, se puder, um mundo onde Tim Curry é uma versão cartunescamente maligna do Dr. Frankenstein do livro de Mary Shelley. Agora imagine que você acorda como seu monstro sem nome (sim, o monstro não se chama "Frankenstein", hot take aqui) trazido de volta a vida por nada senão pq o bom mau doutor queria ver se podia.


Se você conseguiu imaginar isso... então tenho que te avisar que imaginar essa premissa é mais divertida do que é realmente jogar esse jogo. Ele está muito mais perto de MYST do que de Roberta Williams' PHANTASMAGORIA, no sentido que tudo que você faz realmente durante o jogo é andar aleatoriamente e mexer em uns puzzles que não fazem muito sentido de existirem no cenário senão BECAUSE IT'S RANDOM PUZZLE TIME! Alguns dos puzzles sequer fazem sentido algum, tipo o labirinto que fica mudando de forma justa because.

Volta e meia o Dr. Franks aparece pra falar uma groselha pra vc (por algum motivo ele deixa vc andar livremente pelo castelo pq aparentemente ele perdeu o interesse ou algo assim, cool), e mesmo que seja uma groselha de qualidade Tim Curry, a verdade é que nosso queridão provavelmente gravou todas suas cenas em 15 minutos e todo o restante do jogo é vc vendo telas pre-renderizadas como no já citado MYST.

Esse também é um dos primeiros jogos que foram totalmente dublados (nesse blog é o primeiro) e a qualidade da dublagem é muito boa, lembra aqueles desenhos europeus que passavam na cultura

Mas o que realmente me irrita nesse jogo é a OBSESSÃO dos caras com labirintos. E esse jogo tem vários dele, apenas pra encher linguiça com o menor esforço possível. Verdadeiramente grande. 

Desde THE LEGEND OF KYRANDIA: BOOK ONE - FABLE AND FIENDS eu tenho um trauma pavoroso de labirintos em point'n clicks e este jogo é UM GRANDE LABIRINTO DEPOIS DO OUTRO. O castelo é um labirinto de seis níveis com corredores, escadas e passagens escondidas em abundância. Depois, tem o labirinto das sebes. E eu mencionei o enorme labirinto do túnel da mina? Labirinto labirinto labirinto labirinto labirinto. Jesus no pogobol, aff.

Mas então, esse é um point'n click medíocre que desperdiça o Tim Curry. O que poderia ser o tema desse review, mas quer saber? Foda-se esse jogo, esse é o meu blog e eu vou falar da versão de Frankenstein ÉPICA do Tim Curry pq foda-se.

Sim, a partir de agora essa virou uma review de Rock Horror Picture Show pq eu posso!



Sabe o que é engraçado? A gente costuma pensar na Europa ocidental do século XX como um lugar civilizado no qual as pessoas não são trogloditas tacanhos... frequentemente esquecendo que os europeus são pessoas antes de qualquer coisa.

Isso significa, por exemplo, que até o ano 2000 (sim, DOIS MIL) no Reino Unido era crime qualquer tipo de comportamento homossexual em publico. Cacete maluco, ANO DOIS MIL, é inacreditável uma porra dessas. Estamos falando de um lugar onde uma das mentes mais brilhantes da história da humanidade e que praticamente venceu metade da segunda guerra sozinho se suicidou por causa do "tratamento" para curar a sua homossexualidade.

Pois é. Agora image 49 anos atrás.

Em 1973 as portas de um elevador em uma mansão sinistra em uma noite tempestuosa se abrem e Tim Curry sai marchando de lingerie, colar e pérolas e maquiagem pesada. Quando muito, lhe seria permitido ser o alivio comico da cena, certo?



Mas não. O doutor Frank N'Furter não é a piada ali, o casal careta representando os bons costumes da família tradicional blablabla é que é a piada. Uau, eu vejo como certas pessoas ficariam ofendidas em 2022, mas em 1973 é apenas surpreendente que ninguem tenha terminado isso preso.

O fato é que em um sombrio teatro no andar de cima do West End de Londres em junho de 1973, aconteceu algo incrível.


Um pequeno musical bobo, que ninguém jamais pensou que se tornaria um fenômeno mundial, estreou em uma casa muito pequena. Escrito como uma carta de amor para a fabulosa coleção de filmes e musicais de ficção científica B dos anos 1940, "The Rocky Horror Show" atingiu uma nota de ressonância com os fãs de todas as grandes coisas vida. Sério, a música de abertura é uma coleção de referencias de marejar os olhos de qualquer marujo.



O musical tornou-se um filme dois anos depois, e continua a ser o filme em cartaz a mais tempo na história do cinema.

Para ter uma ideia de como a coisa funciona, em 2016 a Fox tentou fazer um remake de Rocky Horror Show e o diretor teve que simplesmente colocar as mãos na cintura e dizer "Gente, o que vocês querem não tem como fazer em 2016. Talvez daqui uns trinta anos, vamos fazer uma versão mais família por hora pq senão a familia tradicional americana vai me moer na porrada!"

Mas o que o musical tem de tão transgressor assim? Não são suas cenas chocantes, não existe nada visualmente vulgar ou violento em RHS. O que realmente incomoda o "cidadão de bem" é o seu conceito. Que é um conceito bastante simples, na verdade, e que deveria ser uma verdade básica da vida em 2022: você ser quem você quiser, amar quem você quiser, se expressar como você quiser.

E qual o grande ponto que causa tanto mal estar assim na família tradicional caixaprego?


Um fenômeno que explica bem os tempos em que vivemos é algo que acontece na comunidade otaku ocidental de que sentir atração "traps" (personagens masculinos que parecem meninas) não pode ser considerado como "gay". Vê, o problema aqui não é sentir atração por um homem (mesmo que a jiriconda da personagem seja parte inseparável do que a torna desejável) e sim o rótulo. É a o rótulo que realmente importa.

Nossa espécie é profundamente insegura com o seu lugar no mundo (o que faz sentido quando você pensa que fisicamente o ser humano não tem nenhuma vantagem sobre qualquer outra coisa na natureza), e se sente assustadoramente ameaçada quando qualquer forma de identidade sua é posta em questão (e as pessoas se identificam com qualquer coisa, desde marcas de videogame até clubes de futebol - isso é o quão inseguros nós somos).

Por isso quando um homenzão da porra como o Tim Curry se veste totalmente diva e ele não é a piada ali, o panico está instalado no coração das pessoas burras. Se não existem regras claras, então o que elas são? Como elas se definem na existencia se não existem verdades absolutas?

Mas saca só: não existem verdades absolutas. Todos os valores são relativos e na maior parte do tempo, inventados arbitrariamente ou por motivos históricos que não fazem mais sentido. E quando alguém te lembra disso, incomoda bastante.

Como por exemplo, todos os seres humanos (salvo casos clinicos bem raros) são bissexuais em algum grau. No fundo todo mundo sabe disso, sem exceção (exceto, novamente, por casos clinicos de imbecilidade bem documentados) mas não falam isso da boca pra fora pelo que eu chamo de "Paradoxo da Netflix".

PARADOXO DA NETFLIX

É o seguinte: da boca pra fora, todo mundo é super cult. "A Lista de Schindler? Clássico, está nos meus favoritos, eu vejo sempre que posso", é o que todo mundo diz. Só que lá onde não tem ninguém olhando, a Netflix sabe que "A Lista de Schindler" está mofando a eras na sua lista enquanto você assiste o 28o filme do Adam Sandler (embora uma vez a cada alinhamento de planetas ele tenha um filme bom de verdade, tipo Reine sobre Mim ou Uncut Gems)

Existe uma diferença gritante quem nós somos e quem nós queremos que os outros nos percebam, por uma infinidade de razões. Vou apenas supor que eu não preciso explicar porque as pessoas se sentem intimamente seguras achando que fazem parte de um grupo, porque a outra opção é lembrar que nenhuma das "verdades" que nos sustentam não são verdades porra nenhuma.

A vasta maioria das pessoas não tem maturidade emocional (ou intelectual, o que é mais ou menos a mesma coisa) para lidar com isso.

Por isso quando o doutor Frank N'Furter lembra que mesmo o macho alfa super seguro de plantão pode passar a noite com outro homem e isso é apenas a coisa mais natural do mundo, todo inferno quebra solto. Justamente por ser verdade.

HOT PATOOTIE BLESS MY SOUL, I REALLY LOVE ROCK'N ROLL 



Não é por coincidência que o gênero musical predominante do musical é o Glam Rock. Veja, o Rock'n Roll nasceu como um gênero subversivo - quebrando regras e estabelecendo novos conceitos como nunca havia sido permitido na história da música antes.

O que funcionou por um tempo. Eventualmente, o rock'n roll acabou se consolidando como gênero musical e estabelecendo suas próprias regras e "verdades" enraízadas demais. Ou seja, o rock acabou se tornando aquilo próprio que ele buscava subverter.

O Glam Rock é uma vertente do rock que volta as suas raízes ideologicas e mete o dedo na ferida, subvertendo valores e divando loucamente apenas porque é muito legal apenas ser quem você é e se divertir pacas no processo. Pense em David Bowie, Ney Matogrosso e Lady Gaga (embora ela seja mais pop do que rock, eu suponho, mas esse não é o ponto aqui).

Rocky Horror Show é tudo sobre o glam rock, afinal. Com efeito existe uma cena onde o doutor Frank mata um rockeiro "tradicional" a machadadas e anuncia "não se preocupem, foi uma morte misericordiosa". O velho Rock'n roll está morto, vida longa ao Glam Rock!

É HORA DE DOBRAR O TEMPO NOVAMENTE



Falando em música, nenhuma mensagem ideologica ou social funcionaria em um musical se ele não fosse, bem, um músical muito bom. E com efeito, as músicas de RHS são alguma coisa especiais sempre mesclando um feeling de ficção cientifica trash, libertinagem e níveis infinitos de awesomicidade.

Embora sejam diferentes entre si, as músicas seguem esse conceito, o que acaba nos brindando com perolas atemporais como essa:




ou isso:

O dona mãe da Buffy, hein?

Parece engraçado colocar dessa forma, mas em essencia Rocky Horror Show é um musical sobre a essencia do credo dos assassinos: "Nada é real, tudo é permitido". O que, em detalhes quer dizer que "nada é real" é perceber que as fundações da sociedade são frágeis e que devemos ser os pastores de nossa própria civilização. Dizer que "tudo é permitido", é entender que não existem regras DE VERDADE  na vida, nós somos os arquitetos de nossas ações, e que devemos viver com suas consequências, sejam gloriosas ou trágicas.

Não por acaso o filme termina com o doutor sendo punido por seus conterrâneos transexuais (isso é, os outros nativos do planeta Transexual na galaxia Transylvania... apenas não pergunte) por ter ido longe demais.

De fato, a caótica jornada de uma adolescente sexualmente reprimida e de um macho alfa padrão em uma noite em uma mansão onde as regras da sociedade não mais se aplicam foi longe demais. E o mundo é um lugar melhor por causa disso

TL; DR

Via de regra musicais tem desenvolvimento de personagens e roteiro inferiores a uma narrativa tradicional, por isso eu realmente espero que eles compensem no seu conceito e mensagem - da mesma forma que uma música é mais pobre em argumento do que uma prosa e precisa compensar em outras areas (e por isso Lalaland é tão decepcionante como musical, já que o seu conceito é apenas basicamente uma auto-congratulação corporativa). 

Rocky Horror Show sabe exatamente quem é e o que quer dizer, e por isso mesmo foi um filme maravilhosamente muito a frente do seu tempo. Infelizmente, ainda falta um cadinho até nós chegarmos a que tempo é esse.

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
Edição 108 (Outubro de 1996)