domingo, 14 de agosto de 2022

[#949][Fev/96] DUNGEONS & DRAGONS: Shadow Over Mystara


"Masmorras e Dragões: Sombra sobre Mystara" é o terceiro beat'm up da Capcom inspirado em D&D (sendo que é apenas o segundo licenciado, no primeiro KING OF DRAGONS a Capcom não tinha a licença ainda)... o que me leva a uma questão realmente interessante: nós não falamos muito sobre o cenário de RPGs japoneses.

DO QUE TU TÁ FALANDO, CARA, RPGS JAPONESES SÃO UMA DAS COISAS MAIS CONHECIDAS DOS VIDEOGAMES!

Não, não jogos de videogame japoneses do estilo RPG, estou falando de RPG mesmo: uma mesa, fichas, dados, hangear com os dudes, the old stuff. Isso me fez pensar sobre como eram as comunidades de mesa no Japão e que tipo de jogos eles jogam. Kami-sama, eu não fazia ideia do quão fundo essa toca de coelho ia.


Eu entro nisso nunca tendo realmente jogado um RPG japonês per se, apenas tendo ouvido falar sobre eles e lido a respeito. Observe que quando digo RPG japonês, estou falando de um jogo originado no Japão, desenvolvido por desenvolvedores japoneses e posteriormente traduzido no ocidente, como o o recém-lançado Shinobigami que é um dos "RPGs de anime" mais populares do momento. E pesquisando mais sobre esses jogos, devo dizer que as diferenças de design para como fazemos as coisas no ocidente por si só são impressionantes.

Mas esse post exatamente sobre isso, e sim dez fatos curiosos que eu aprendi pesquiando sobre a cena dos RPGs no Japão.

1. "Tabletalk", não 'Tabletop'

Não tenho certeza do motivo, mas os RPGs de papel e caneta são chamados de "Tabletalk" RPG e não " Tabletop" como e diz em inglês. Aparentemente, o motivo é que os RPGs que mais pegaram no Japão e focam mais no teatro da mente (tanto que Call of Cthullu é o RPG mais popular do Japão) e menos em miniaturas e suas origens de wargame como é o caso de D&D.


2. Call of Cthulhu é o RPG mais popular no Japão

Como eu citei, esse é um dos que mais surpreende porque o RPG mais popular do Japão não é nenhum dos principais do ocidente (D&D ou World of Darkness, nesse caso) e sim O Chamado do Getúlio. O mais curioso ainda é que nos anos 90 D&D era de fato o RPG mais popular (tanto que estão aí os jogos da Capcom), mas a partir dos anos 2000 explodiu a popularidade dos Replays: grupos gravam seus jogos e os colocam na internet como uma história.

Pense na popularidade do Critical Role (o maior canal da Twitch é um grupo de dubladores profissionais que se reúne para jogar RPG e transmite as partidas, e que alias recentemente ganhou uma animação pela Amazon), mas no Japão.

Adicionalmente, japoneses adoram histórias de terror (e o horror japonês é de uma fama mundial) e natureza particular dos monstros lovecraftianos permitem ilustrações de manga que vendem por si só pela arte.

3. Livros de RPG japoneses são essencialmente mangas

Ao contrário do que acontece no ocidente, os livros de RPG não são livros no sentido fisico da palavra e sim mangas. Tanto em tamanho como no tipo de papel e forma de encadernação utilizadas. O que faz sentido, usar os padrões que já são usados pela gigantesca industria dos mangas barateia os custos, a logistica e a venda nas bancas.


E não é apenas na estrutura, mas no conteúdo também: um tipico livro de RPG japonês tem uma introdução com as regras do jogo, mas o grosso mesmo do conteúdo são sessões descritas ou mesmo desenhadas na forma de manga. Com efeito, não é raro você comprar todo mês o livro do seu sistema favorito pq vc quer acompanhar a campanha de um grupo em particular que está jogando e esse é o grande ponto de venda do material.

Parece um manga, mas é um livro de RPG

4. Replays são a maior razão da popularidade dos RPG

Conforme eu falei anteriormente, os "replays" são registros do que aconteceu em uma sessão ou campanha. O exemplo mais conhecido é Record of Lodoss War, que é um replay real de uma campanha de Dungeons & Dragons e que ainda nos anos 80 virou manga, anime, vidogames e livros. 

Outro exemplo muito popular no Japão é Red Dragon, que é mais ou menos o Critical Role japonês: alguns roteiristas e autores de peso se juntaram para jogar RPG e nasceu esse sistema. Estou falando de gente tipo Gen Uroboshi (Madoka Magica, Fate/Zero), Kinoko Nasu (que escreveu a maior parte das visual novels da série FATE/) e Ryogo Narita (Durara!). Em 2015 o sucesso de Red Dragon foi adaptado como anime, chamado de "Chaos Dragon", mas infelizmente ele é pavorosamente ruim.

R'Lyeh Antique, o manga

E Call of Cthullu sendo o RPG mais popular do Japão, não podemos deixar de falar também do seu Replay mais popular que é a série R'Lyeh Antique - que obviamente também virou uma série de mangas e light novels

5. RPGs de mesa são MUITO MAIS baratos

Quanto custa sua cópia impressa de Dungeons & Dragons ou Pathfinder? 200 reais? 300? Ou em dolar, mais de $50? E se eu te disser que no Japão, devido ao foco em livros usando os moldes da industria dos mangas, muitos tabletops custam também aproximadamente o preço de um mangá? 

Combine isso com a popularidade das novelizações de Replay pelo mesmo preço, e você tem um mercado onde pode ir a uma loja de jogos e pegar facilmente a última edição daquela mesa que você ama sem fazer um amassado em sua carteira. Muitos dos tabletops mais populares no Japão seguem isso, embora hajam versões "livro" mesmo com capa dura e as porra toda que a gente conhece - embora essas edições sejam especiais, o grosso da popularidade vem da mangalização dos RPGs mesmo.


6. Falta de PDFs

Como o Japão tem um foco pesado em livros de mesa razoavelmente baratos e acessíveis, a consequencia é que o mercado de livros em PDF não faz tanto sentido assim. Com efeito, é bem frequente jogos mais antigos sequer terem um PDF e encontrar copias fisicas depende dar sorte com sebos dado que eles foram descontinuados nas prateleiras de lançamentos.

A Book-Off é a maior rede de sebos do Japão

Esse problema só é agravado pelo fato de que a maioria das grandes editoras no Japão tem (com razão) medo da pirataria digital. Isso realmente dificulta a tradução de RPGs originalmente japoneses para falantes de inglês, porque depende de um japonês comprar o livro fisico, scannear o livro todo, upar o conteúdo e então alguém pegar e traduzir a coisa toda. Não é muito prático, pra dizer o minimo.


Embora certamente existam alguns editores por aí que se abriram para a distribuição digital nos últimos anos, e ainda que alguns dos sistemas mais populares tenham recebido um lançamento ocidental (sendo o melhor exemplo o sistema Shinobigami), não é nem perto do quão comum isso é do lado de cá do globo.

7. One-shots reinam supremos because Japan

O Japão tem uma cultura muito forte centrada no trabalho. Por causa disso, o tempo livre é bastante limitado e se por aqui ter um grupo para se reunir regularmente já é dificil, imagina lá. Isso criou uma cultura de gameplay focada em one-shots, onde os jogadores geralmente trazem seus próprios personagens de todo o lugar para trabalhar juntos. Enquanto "campanhas" são muito comuns por aqui, no Japão você normalmente encontrará uma partida de Call of Cthulhu com um elenco composto por detetives noir, um espadachim transportado do século 17 e uma garotas mágica na mesma party.

Muitos sistemas até têm mecânicas focadas em aumentar o nível do jogador e não do personagem especifico, o que permite que os personagens morram mais livremente - o que totalmente fecha com a vibe de terror, afinal, e é mais um ponto para a popularidade do Chamado do Tchutchuco e jogos de terror assim.


8. Os 3 Grandes Jogos

Além do já citado Call of Cthulhu, existem três grandes jogos de fantasia, todos disputando o distante 2º lugar. Enquanto Pathfinder 1e e Dungeons & Dragons 5e não são surpresa para ninguém – especialmente considerando sua onipresença em todo o mundo – o Japão também tem Sword World RPG, que é o sistema originado de Record of Lodoss War. Apesar de ter nascido como uma campanha de D&D, RoLW gerou seu sistema próprio e é esse que atualmente está na 2.5e empatado com os demais.

É dificil imaginar um mundo onde D&D sua em bicas para pegar sequer o segundo lugar, mas tal é o cenário japonês de RPGs.


9. UNLIMITED PAUAAAAAAAA

Do punhado de livros que pude ver, parece que muitos RPGs como Tenra Bansho Zero, Double Cross, Shinobigami - assim como o que eu li a respeito que as adaptações de Log Horizon e Konosuba são – há um foco pesado em escolhas abertas de poder/habilidade. 

Quase todos os talentos ou poderes que seu personagem possui são escolhidos de uma lista enorme de poderes, lembrando um pouco a lógica de construção de personagens de GURPS em que você mais monta o personagem selecionando opções do que recebe uma classe pronta para evoluir subindo de nível. 

Mesmo os sistemas baseados em classes tem listas grandes o suficiente para que você possa montar praticamente qualquer coisa. Combine isso com muitos sistemas de mesa com uma grande lista de poderes universais ou mecânicas multiclasse ou de mudança de classe muito abertas, e você terá um personagem que, em última análise, é limitado apenas pelo que você escolhe poder fazer.


10. Construção autoral e jogabilidade baseada em cenas

Uma coisa curiosa que eu reparei em todos esses anos na indústria vital é que embora jogadores de RPG sejam essencialmente nerds (bem, dã), e haja uma intersecção bem grande entre nerds e anime... mencionar animes em uma mesa de RPG é um grande não-não. Suponho que seja pouco surpreendente que no Japão, ter uma estrutura de cenas mais anime-like é bem mais esperado.

Porém a grande diferença nem é que as cenas são bem mais soltas do que se costuma gostar por aqui, e sim que a estrutura toda da coisa é mais focadas nas cenas em si do que em construir uma grande narrativa geral - o que faz sentido dada a natureza one-shot dos jogos.

Double Cross, Tenra Bansho Zero e Shinobigami têm um foco bem grande dos jogos sendo abordados em “Atos”, “Fases” ou “Cenas”, que apresentam apenas 1 ou 2 jogadores em cada cena. Há até um grande número de poderes em seus vários jogos que só funcionam em cenas específicas, como a “Introdução”, onde cada jogador tem um movimento especial para revelar dramaticamente seu personagem para o grupo. 


Essas fases, em particular, tendem a ter, na melhor das hipóteses, pequenos conflitos e confrontos, e o objetivo delas é construir o ambiente para a “Fase Clímax”, que normalmente é uma grande luta envolvendo todos os jogadores contra o antagonista dessa aventura.

Esse tipo de foco nas cenas me lembra muito episódios tipo "monstro da semana" e o ritmo todo da coisa é bastante rápido, novamente, pq no Japão ninguém tem muito tempo pra nada realmente. As sessões costumam durar um par de horas, em casos mais extremos aventuras em grande escala podem ser exploradas e jogadas em apenas 1-2 sessões.


Este é um momento tão bom quanto qualquer outro para abordar que não vi muitos jogos focados em narrativas sendo muito populares no Japão. Jogos que tendem a se concentrar fortemente em colocar o desenvolvimento narrativo a frente não são a regra. Os RPGs do Japão têm pouco ou nenhum foco em qualquer mecânica narrativa, frequentemente os jogos se concentrarem inteiramente no combate ou no que seu personagem pode realmente fazer. É o mundo perfeito para powergamers, mas não tanto para quem gosta mais do RP do que G realmente.

Não posso deixar de imaginar que o D&D 4e deve realmente ter tido muito mais sucesso no Japão do que no ocidente.

Eu tenho que dizer que não é muito o meu estilo - eu realmente prefiro um bom e velho dramalhão mexicano que faça um combate ter significado do que 5 encontros aleatórios - mas eu realmente consigo ver como esse cenário se formou devido as condições únicas do cotidiano japonês.


E... hã, ah sim, eu suponho que tenha que dizer algo sobre o jogo de hoje em si, mas eu meio que já disse, não? É a terceira continuação de KING OF DRAGONS, com um foco ainda maior no sistema de classes: não apenas - cada personagem é diferente do outro não apenas em movimentação e e dano, mas cada um pode abrir um menu para usar armas especiais (no caso dos combatentes melee) ou selecionar magias (no caso dos casters).

Quando você pega um item no chão, ao contrário do que normalmente acontece nos beat'm ups, ele vai para o seu menu. Aí, por exemplo, o guerreiro pode abrir o menu para selecionar o marretão e usa-lo por alguns momentos. Ou o mago lançar magias (que são magias diferentes do clérigo ou da feiticeira).

Claro, pode ser argumentado que não é muito prático navegar o menu enquanto o pau come, mas dada que a outra opção seria travar o jogo para todo mundo como em SECRET OF MANA... é, foi melhor não ir por esse caminho.



Adicione a isso ao bom e velho padrão Capcom de qualidade para beat'm ups e tem muito pouco o que se criticar aqui. Eu diria que senti falta da armadura subir de nível como em KNIGHTS OF THE ROUND (outro jogo mais antigo da Capcom) e mudar graficamente, mas não é o fim do mundo também. Eu diria que de ruim ruim mesmo é só que seu personagem tem apenas uma barra de vida por ficha e o jogo não tem pena de acarcar no seu bolso - na época era cortesia minima ter pelo menos duas vidas por ficha.

De qualquer forma, As Sombras sobre Mystara são essencialmente a Capcom no topo do seu jogo e seu jogo era fazer bons beat'm ups. Com efeito, se eu não me engano esse é um dos últimos beat'm ups feitos pela Capcom pq a popularidade do genero estava decaíndo rapidamente... o que é fácil entender a razão, não é o genero com mais variedade do mundo. 

A Capcom tentou dar o máximo de cor que pode (alguns inimigos tem mecanicas unicas, como por  exemplo o Beholder que absorve magia se ele estiver olhando pra vc - como o monstro no RPG, ou a ladina que pode abrir baús que mais ninguem consegue), e dentro do que dava pra tirar de um beat'm up tradicional não fica muito mais Capconesco que isso realmente.

MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 030 (Setembro de 1996)