segunda-feira, 6 de março de 2023

[#1063][Mar/97] THE CITY OF LOST CHILDREN


Ao longo de todos estes anos nessa industria vital, eu meio que já vi todo tipo de jogo licenciado que vc possa imaginar. Jogos baseados em filmes que eram o grande lançamento do verão como CUTTHROAT ISLAND, em RPGs como ADVANCED DUNGEONS & DRAGONS: Iron & Blood: Warriors of Ravenloft, em desenhos animados de 70 anos atrás (como PINOCCHIO), em mascotes corporativas como COOL SPOT, em desenhos animados da época como WIDGET e até mesmo baseados em desenhos nunca lançados como X-MEN para arcade. Eu joguei até mesmo um jogo de uma linha de brinquedos baseada em manequins de teste de colisão. Sério, THE INCREDIBLE CRASH DUMMIES existe, o que vocês querem que eu faça?

Enfim, o que vc imaginar eu já joguei. E até pior que isso. Porém, o que eu nunca vi em todos esses anos nessa indústria vital foi... um jogo como esse. Quer dizer, sério, de todas as coisas do mundo que poderiam virar um videogame, uma das últimas que eu apostaria seria A Cidade das Crianças perdidas!

Para a capa europeia do jogo, de alguma forma eles colocaram a Miete na capa mas o Ron Pearlman é apenas um desenho pq... eles não tem os direitos ou algo do tipo?


É UM JOGO BASEADO EM UM FILME, O QUE É QUE TEM? EXISTEM CENTENAS DESSES.

De facto, existem. Porém normalmente quando são jogos baseados em filmes, costumam ser tie-ins tentando fazer uma grana fácil de algo que as pessoas vão jogar pelo nome associado, mesmo quando o filme não é exatamente bom - vide THE CROW: City of Angels

O que é diferente de tudo aqui, entretanto, é que esse é um jogo baseado não no grande lançamento do verão com um estúdio querendo lucrar todas as patavinas em produtos licenciados em cima, e sim... bem, o melhor que eu posso descrever esse filme é como um filme de arte conceitual europeu. E mais do que isso, um filme lançado dois anos antes do jogo (em 1995) e flopou nas bilheterias pq... bem, as pessoas não realmente vão aos milhões assistir filmes de arte conceituais europeus.


Então vc tem um filme esquisito pra caceta, que deu prejuízo, que pouca gente sequer conhece... e faz um jogo disso. Okay, claro, pq não, né? Porém não fique surpreso se o que vc obtiver aqui será um jogo esquisito pra caceta, que deu prejuízo e que pouca gente sequer conhece. Louco, hã? 

Embora, sendo totalmente honesto, eu não posso dizer que esse é um jogo que ninguém conhece dado que ele ficou até certa forma famoso por uma única razão infame: o save dele APAGA TODO O SEU MEMORY CARD. Sério, esse é um jogo de PS1 que ocupa 15 blocos de memória, ou seja tudo, e se vc salvar o jogo ele apaga tudo que vc tiver salvo. Não é um motivo para o jogo ser conhecido do qual eu me orgulharia, mas ao menos tem isso.



Porém suponho que deveriamos começar do começo... e falar do filme. Ou o mais perto disso que eu puder faze-lo, pq esse é um filme REALMENTE estranho.

PARA, NÃO PODE SER TÃO ESQUSITO ASSIM...

Bem, eis o que eu te direi, Jorge: vc não pode realmente falar de crítica de cinema sem falar de Roger Ebert, discutivelmente o mais famoso crítico ever e meio que o paragon no qual todos os criticos de cinema profissionais se inspiram ainda hoje, dez anos após a sua morte. Bem, não é preciso dizer que Rogerinho assistiu mais filmes na vida do que eu assisti hentais da Renamon, e que obviamente é muito mais qualificado do que eu para entender cinema. Isso posto, eis o que ele disse sobre o filme, abre aspas:

I would be lying if I said I understood the plot. Indeed, much of what I've just told you was reconstructed from the press kit and other sources. Watching the film, I perceived no strong narrative pull to carry me through, and instead was constantly being invited to stay in the moment, to experience one visual after another, to look past the characters and their concerns and relish the set design by Jean Rabasse and the bizarre costuming, in which Jean-Paul Gaultier has truly outdone himself, and that takes some doing.
Então se nem o crítico dos críticos realmente conseguiu entender o filme, que esperança há para nós pobres mortais?


A história, até onde eu consigo dizer, vai mais ou menos assim: antes de morrer (até pq depois de morrer seria dificil) um cientista solitário criou para si uma família artificial: uma esposa geneticamente desenhada (mas que não saiu como planejado e ela acabou sendo uma anã), um cerebro em um aquario para ele conversar, seis clones narcolepticos (não tão brilhantes) de si mesmo, e um filho perfeito que seria o homem mais inteligente que jamais viveu. Esse homem, entretanto, não é perfeito porque ele não tem a capacidade de sonhar.

O que ele faz então? Compra crianças do mercado negro para roubar os sonhos dela, porém tudo que ele consegue são pesadelos, de modo que ele continua sua busca pelo sonho ideal. E de quem ele compra? De um culto da “visão pura e verdadeira” que tem como prática cegar os seus membros e aumentar seus outros sentidos através de tecnologia (eu acho), eles pegam crianças de rua e as que não forem puras o suficiente para entrar para o culto são vendidas para o mercado negro de crianças de rua... eu acho.


Nossos heróis aqui então são o strongman (daqueles de circo mesmo) e não tão intelectualmente brilhante chamado One, que teve seu irmãozinho sequestrado pelo culto, e a menina Miele que... hã, eu não posso dizer que tenho certeza que entendi qual é a dela, mas ela é uma órfã do orfanato gerido por duas gemeasa siamesas que usam as crianças de rua como uma guilda de ladrões... então ela acaba envolvida com isso de alguma forma... talvez.

Olha, não é realmente fácil dizer pq toda a coisa é construída como uma mistura de sonho febril e episódio de Jojo, então no meio tem também um cientista que mora em um submarino e um assassino que usa pulgas treinadas para injetar um veneno que faz as pessoas se atacarem quando ouvem um realejo...

AGORA VC ESTÁ APENAS COLOCANDO PALAVRAS ALEATORIAMENTE

Te juro que não, o filme tem isso mesmo. A Cidade das Crianças Perdidas é meio que como um conto estranho que nem sempre funciona. Parece e se parece muito com os primeiros filmes do Tim Burton, só que sem a parte que vc entende totalmente o enredo nem sempre é claro. A execução do filme é tão estranha quanto a descrição e o “mundo” do filme tem pouca explicação (nem precisa mesmo), é simplesmente uma cidade de fantasia carregada de personagens bizarros.

JAPAN STAPH! Quero dizer, França calma ae...

O que você definitivamente vai tirar de The City of Lost Children são os visuais que o diretor Jean-Pierre Jeunet constrói de uma forma onírica... isso e que esse é um dos primeiros filmes do Ron Pearlman, ele está realmente novinho aqui. Alias essa é uma forma de ver o filme, como uma versão francesa e conceitual de “O Profissional”, onde um cara com algum tipo de condição mental e uma menininha cínica que pode ou não estar apaixonada por ele se envolvem em altas aventuras.

“O PROFISSIONAL” JÁ É UM FILME FRANCÊS

Sacrebleu! Mas não tanto quanto esse, eu te garanto. Alias acho que nenhum filme é tão francês quanto esse, para esse propósito. Com efeito, não dá pra negar que o filme aborda temas através de uma linguagem simbólica, mas novamente esse não é o tipo de filme que eu geralmente assisto e eu não saberia fazer uma analise poética disso. 

O que eu posso dizer de concreto, que está dentro da minha area de expertize, é... sabe o que eu achei mais estranho desse filme?

Bolo de aniversário para um cerebro em um tanque, apenas mais um dia normal no front

HÃ... TUDO?

Também. Mas eu me referia que a Fox viu esse filme e pensou “hmm, taí, esse é o cara que vamos chamar para fazer o quarto filme de Alien!”. Como isso faz qualquer sentido em qualquer realidade possível, é algo que me escapa completamente, mas foi o que de fato aconteceu. Jamais saberemos o pq, mas aconteceu. E bem, depois disso... e depois de Alien Ressurection por algum motivo... ele fez realmente fabuloso “O Fabuloso Destino de Amelie Poulin”, então dá pra dizer que tudo acaba bem quando tudo acaba bem.

... não fosse, é claro, o fato que fizeram um jogo merda desse filme. Quer dizer, o filme pode ser conceitual e artististico e as caralha tudo, mas o jogo merda é de lei. E minha nossa senhora da francesinha molhada, eles capricharam na merdosidade aqui, pq afinal como mais vc poderia fazer um jogo de um filme bizarro desses do que... tentando copiar RESIDENT EVIL?

Não, eu não to de sacanagem com vocês. É exatamente o que aconteceu aqui, e eu realmente queria estar de zoeirinha... ah, como eu queria...

"Delicatessen" é o filme anterior de Jean-Pierre Jeunet, que é um filme sobre canibalismo em uma França pós-apocaliptica. Referencia cool.

 Mas sabe o que é o pior de tudo? É que esse jogo não precisava ter sido um jogo bosta. Tá, nenhum jogo PRECISA ser um jogo bosta, mas eu quero dizer que os problemas desse jogo são pontuais e tinha como resolver com um pouco mais de polimento.

A estrutura central do jogo não é uma arvore podre, muito longe disso. Apesar de você andar pela tela em uma cópia de RESIDENT EVIL (e por cópia eu quero dizer isso mesmo, mesmo tipo de camera, cenários pré-renderizados, controles tipo tanque), o jogo é essencialmente um point'n click. Se no lugar da bonequinha andando pra cima e pra baixo fosse um mouse para clicar, o jogo não perderia muita coisa realmente - com efeito, até melhoraria. Mais sobre isso em breve.


Então o que vc tem que fazer teoricamente simples: colete itens e use eles para resolver puzzles. Point'n click 101, nada de outro mundo. Tipo quando vc precisa roubar os itens do apartamento de um cara: para isso pegue um saco de bolinhas de gude e troque com uma criança que está preparando poções, e dê essa poção para o vigia que vai beber como se fosse vinho e dormir. Mais uma vez, point'n click raíz - com efeito, tem um puzzle muito parecido com esse em THE SECRET OF MONKEY ISLAND, que é o do cachorro, mas enfim.

Com efeito, o jogo vai além e existe até mesmo mais de uma forma de resolver o puzzle. No exemplo que eu dei, por exemplo, existe outras formas de colocar o vigia para dormir - como conseguir vinho com outra pessoa e embebedar ele. Isso é muito maneiro, definitivamente.


O problema, pra variar, é que vários puzzles nesse jogo não são tão amigaveis de entender assim. Tem um logo no começo que exemplifica o que eu quero dizer com perfeição: em dada missão, Miete precisa roubar o conteúdo de um armario para a guilda de crianças-ladras. O problema é que o tal armário é eletrificado e vc não pode tocar nele. Como resolver isso?

Super simples, sequer um incoveniente: na mesma sala tem uma caixa registradora. Abra a caixa registradora, coloque uma ESCOVA dentro dela, e espere. A caixa eletronica vai tentar fechar e não conseguir por causa da ESCOVA, o que vai desativar o armario eletrificado.


Eu vou repetir: a solução do puzzle é COLOCAR UMA ESCOVA DENTRO DA CAIXA-REGISTRADORA, em qual miraculoso multiverso da loucura isso sequer passa perto de fazer o mais remoto sentido?!? Sério caras, eu sei que o filme viaja e tal, mas vcs tem umas paradas que não tem a mínima condição de ser feliz!

E olha que a ESCOVA NA CAIXA REGISTRADORA não é nem o puzzle mais ablublé desse jogo...


Só que fica pior do que isso. Isso porque para resolver os puzzles desse jogo vc precisa usar os itens no lugar certo, simples? Bem, não tão simples assim quando vc considera o fato que os itens SIMPLESMENTE NÃO APARECE na tela. 

Sério, por exemplo vc precisa pegar uma barra de ferro para resolver um puzzle. O problema é que a barra de ferro não aparece na tela, ela só aparece se o seu personagem passar por cima do pixel exato. Eu entendo que colocar o item poligonal em um cenário pré-renderizado daria muito na vista e seria obvio, mas te garanto que isso é melhor do que apenas NÃO MOSTRAR O ITEM.


Vc faz ideia do quão irritante isso é? A solução para este jogo é simplesmente passar por cima de TODOS OS PIXELS DO JOGO e eu estou sendo muito literal aqui. O que já seria absurdamente terrível se fosse um point'n click e vc só controlasse o mouse, mas agora imagine que vc está controlando uma garota com controles tão ruins que fazem PERFECT WEAPON parecer divino.

Os controles são parecidos com os controles tipo-taque estilo RESIDENT EVIL, só que insira nessa formula uma animação de três segundos dela esbarrando em algo toda vez que vc passa perto de qualquer coisa que o jogo entenda como colisão. E acredite, o jogo entende que TUDO nesse jogo é colisão, então mais da metade da sua experiencia nesse jogo vai ser esperando o jogo te devolver o controle da personagem pq vc "tocou" em uma parede.


Se isso não parece remotamente divertido, então eu preciso te lembrar que o jogo EXIGE que vc passe por pixels muito especificos do jogo, agora some A+B e vc tem uma experiencia que se arrasta para além da onde sua sanidade recomenda. 

E suponho que eu tenha que te dizer que algumas telas do jogo tem limite de tempo no qual vc pode ficar nelas, e são limites bem apertados (em especial com essa jogabilidade troncha)... o que resulta em dor, oh dor.


Tem que ser dito que a atmosfera do jogo replica satisfatoriamente o feeling do filme (o que é um feito incrível para o PS1... e considerando o quão único é esse filme), mas infelizmente na maior parte do tempo vc vai estar amaldiçoando essa pequena comedora de baguetes pixelada enquanto alguem te capturou porque você estava numa tela com limite de tempo e seu boneco tem a jogabilidade de uma lesma reumática, seja pq vc apertou X para tentar interagir com alguma coisa e vários segundos serão gastos com a mensagem "i can't do anything" ou algo do tipo.

Se o filme A Cidade das Crianças Perdidas é uma alegoria para sonhos (literal e metaforicamente), o jogo tie-in dele é a experiencia 3D de PS1 de vivenciar a paralisia do sono. Que apaga todo seu memory card de brinde.

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES 
Edição 119 (Setembro de 1997)


MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 043 (Outubro de 1997)


MATÉRIA NA GAMERS 
Edição 020 (Julho de 1997)