segunda-feira, 14 de outubro de 2024

[#1318][Mar/1999] BLUE STINGER


Existe um certo charme único, um je ne sais quoi nos filmes ruins que me fascinam e entretem imensamente. Só que, claro, não é qualquer filme ruim que serve para essa conta. É necessário, em primeiro lugar que um filme seja divertido ao ser ruim. Por exemplo, Batman V Superman (2016) é um calvário de quase três horas, enquanto BATMAN AND ROBIN (1997) é hilário por todos os motivos errados. Eu posso apreciar o George Clooney sacando um batcard dos seus batmamilos muito mais do que aguentar o Zack Snyder tentando retratar o Superman como Jesus em camera lenta por três horas. 

No final das contas, eu não vou ficar checando meu telefone a cada dez minutos se o que está na tela na minha frente está me fazendo rir de quão sem noção são as escolhas em tela, do tipo "como alguém achou que isso era uma boa ideia em primeiro lugar?".

O que nos leva ao segundo ponto, qualquer um pode fazer um filme terrível e incoerente de propósito, mas o verdadeiro charme está em algo que claramente é tão ruim mas foi feito achando que tava arrasando. Claro que não podemos pensar em um exemplo mestre maior do que o clássico The Room (2003), em que ele transmite a cada cena o quanto seu criador  insano achava que estava arrebentando a boca do balão. Com efeito, The Room até ganhou um filme indicado ao Oscar contando a história de como foi feito, de tão incrível e surreal é o fato dessa perola existir.

Isso sendo dito, é curioso notar que apreciar JOGOS ruins... é uma arte muito mais complicada. Quando você assiste a um filme ruim, uma completa falta de coerência,  talento ou o minimo de bom senso se torna divertido porque o ridículo não realmente afeta sua capacidade de ver o filme. Não importa o quão ruim ele seja, o filme vai passar do começo ao fim e, embora possa não fazer sentido, você consegue vivenciar a coisa toda.


Já no caso de jogos, uma jogabilidade ruim se torna frustrante quando você não consegue progredir e fica preso por culpa do jogo. Ficar preso em uma seção com controles ruins ou tentar fazer algo e não conseguir (o que acontece muito nos jogos de luta ruins) é muito frustrante. Um jogo pode ter um roteiro hilariantemente ruim e ser divertido em sua ruindade, da mesma forma que um filme, mas uma mecânica ou design de jogo hilariantemente ruim só é engraçado por um minuto antes de se tornar mais irritante do que divertido.

Então suponho que podemos estabelecer que o segredo de um jogo ruim DIVERTIDO seria um jogo que é pavoroso, amador, terrível no nível "meu deus, quem achou que isso estava abafando?" em todos os aspectos exceto o gameplay, certo? Quer dizer um jogo que realmente te deixa na dúvida genuína se os caras estavam zoando ou se eles realmente achavam que aquela tosqueira era legal de verdade, desde que não afete o gameplay seria um jogo "tão ruim que é bom", certo?


Claro que tentar achar isso é meio que como procurar um unicornio e existem poucos jogos que realmente encaixam essa descrição: Deadly Premonition ou Sonic 06 são exemplos onde o gameplay... mais ou menos... funciona (embora eu esteja falando de cabeça do segundo sem rejogar, provavelmente não é o caso). E agora, tenho orgulho em dizer, FERROADEIRO AZUL se junta a esse dúbio panteão

Nossa história aqui é que no ano 2000 um terremoto aconteceu na península mexicana, afundando o território e trazendo de volta a tona o meteoro que matou os dinossauros. Mas antes que vc diga que isso não faz o menor sentido geológicamente, calma que melhora: o meteoro em si se torna uma ilha e sobre ela é construída uma cidade de pesquisa... e uma atração turística baseada no meteoro que matou os dinossauros

HÃ, UM PARQUE TEMÁTICO DE DINOSSAUROS NUMA ILHA... ESSA IDEIA ME PARECE FAMILIAR DE ALGUMA FORMA...

Vai vendo. Dezoito anos depois, nosso herói Eliot Com um L Só está tirando suas primeiras férias em dois anos, pensando apenas em pegar uma praia na ILHA DINOSSERO, como ficou conhecida... quando um meteoro cai em cima do meteoro que era a ilha-meteoro-boiador! Não apenas esse meteoroception acontece, como um domo de energia se forma ao redor da Ilha dos Dinossauros, não apenas prendendo as pessoas lá como transformando várias em monstros mutantes...

... que não tem nenhum dinossauro envolvido realmente, se essa não é a maior propaganda enganosa da história do turismo... mas divago, o ponto é que agora Eliot encontra o capitão de navio Doggs e a cocotinha Janine, a sniper/hacker (bela combinação de habilidades, parece um personagem que eu faria) do grupo. Juntos, eles precisam descobrir o que está acontecendo, escapar da ilha, o velho raguru.

Mas até aí, um jogo com uma premissa ruim não é algo novo nesse blog e na verdade a ilha que na verdade é o meteoro que matou o dinossauros e outro meteoro cai nela não é nem a pior que eu já vi por aqui. O que torna a coisa toda especial é a série de decisões pavorosamente sem sentido que acontecem depois que o jogo começa, e vc realmente fica se perguntando se eles estavam zoando ou alguém teve um AVC enquanto estava programando e só digitou coisas aleatórias no teclado.


Por exemplo, existe uma entidade de energia azul chamada "Nephilim" que saiu do segundo meteoro e que fica seguindo o nosso herói por toda primeira metade do jogo. O mais impressionante, entretanto, é que a equipe de desenvolvimento se deu ao trabalho tanto de programar a movimentação dela quanto ela ser uma fonte bem vaga de luz... apenas para não fazer nada com isso. 

Sério, ela tem um real esforço de programação e comportamento aqui, mas mecanicamente ela não tem uma unica utilidade - a luz dela nem como fonte de iluminação ajuda - ela apenas está lá por razão nenhuma, até o momento que ela cansa de estar e para de te seguir. Novamente por razão nenhuma, os caras meio que apenas "ah, cansei disso".

MAS A IDEIA DE TER UMA APARIÇÃO TE SEGUINDO NÃO É PARA DAR UMA ATMOSFERA AO JOGO?

Suponho que em algum momento deveria ser, porém que atmosfera pode realmente ser dada a um jogo em que os inimigos derrotados explodem numa chuva de moedas como o Tio Patinhas sendo atropelado pelo Marcinho Black? Não, sério:


ESPERA, O TIOZÃO SIMPLESMENTE METEU TAPAS DE SUMO NO MUTANTE ATÉ ELE EXPLODIR EM UM JACKPOT DE MOEDAS?
Blue Stinger, senhoras e senhores. Blue Stinger. Alias uma área em específico, que merece seu próprio parágrafo, é o shopping. Claro, você provavelmente já esteve em ambientes semelhantes a lojas em outros jogos de survival horror antes, mas Blue Stinger aborda isso de um ângulo um pouco... diferente... de outros títulos, vamos colocar assim. A maioria dos jogos de survival horror coloca você em lojas escuras e sujas com as luzes apagadas e música assustadora. 

RESIDENT EVIL 2

Blue Stinger, por outro lado, tem uma abordagem oposta: graças ao jogo se passar na véspera de Natal o shopping está cheio de decorações, luzes brilhantes e anúncios com o Papai Noel neles. Melhor ainda, por toda a área a música de Natal está constantemente tocando enquanto você mata zumbis e salva vidas. É um dos cenários mais estranhos e deslocados de todos os tempos que eu já vi em um survival horror, mas é assim que Blue Stinger rola!

Juro pra vocês que essa é a música que toca em loop em toda sessão do distrito comercial!

São escolhas que vc fica tipo "mano, eles tavam zoando?". O que é reforçado pelos dialogos pq MEU DEUS, os dialogos desse jogo! Doggs nasceu para fazer comentários de tiozão e Eliot parece um personagem saído dos anos 50, que não consegue trocar duas frases com uma mulher sem ser uma cantada.

Sério, num dos primeiros momentos que o espirito da Nephilim aparece e começa a seguir Eliot, ele e Doggs tem o seguinte dialogo:

DOGGS (no melhor tom de tiozão): Ei, essa garota está te seguindo por toda parte, acho que ela está apaixonada por você!
ELIOT (que tratava a Janine como namorada dele a um nível bem desconfortável de ver, mesmo tendo conhecido ela a cinco minutos atrás): Oh não, duas garotas, acho que lá vem encrenca, heim?

Aff... e certamente ajuda menos ainda que animação dos personagens seja tipo isso:


Sério, os personagens não conseguem não reagir a qualquer fala como se estivessem ouvindo pela primeira vez que a Terra é redonda. Some a isso dubladores sem nenhum talento passando pelas situações mais bizarras que eu lembro em muito tempo, e temos... algo aqui, definitivamente algo.

Como na cena em que nosso herói acaba ingerindo gosma ao explodir um chefe, e começa a se mutar para virar um monstro. Ele vai ficando roxo e inchado antes de começar a mutar, a atuação e dublagem são o puro suco dos filmes trash dos anos 80!


E sim, Doggs está vestido de Papai Noel. Não vamos falar sobre isso. Mas como eu dizia, o momento é repleto de momentos assim em que o jogo é verdadeiramente trash no sentido mais 80's da palavra, quase uma adaptação videogamistica de Troll 2.

TÁ, MAS ENTÃO O JOGO FOI PROPOSITALMENTE FEITO PARA SER ENGRAÇADO!

Então... meio que sim, mas não também pq então ele faz coisas genuinamente ruins que não são engraçadas, não intencionalmente. Por exemplo, o jogo original japonês tem a camera fixa, no melhor estilo RESIDENT EVIL 2. Até aí tudo bem, le magronete, porém na hora que esse jogo foi trazido... tragado... truncado... para o ocidente, a Sega achou que seria melhor dar mais "ação" ao jogo. Como? Ora, destravando a camera na programação para ela ficar atrás do jogador.


HÃ, TEM CERTEZA QUE É UMA BOA IDEIA PEGAR UM JOGO QUE FOI PENSADO DE UMA FORMA E MUDAR A PROGRAMAÇÃO DA CAMERA NA CORRERIA, UMA DAS COISAS MAIS DELICADAS E DIFICEIS DE ACERTAR NESSA ÉPOCA?

Jorge, Jorge, Jorge... ora é claro que ABSOLUTAMENTE FUCKING NÃO. A camera nesse jogo é pavorosa, artritosa, criminosa, esculachetosa pq é uma puta ideia de um animal de teta decidir reprogramar a camera em cima do laço, é óbvio que não ia dar certo! 

O problema aqui é que quando as costas do personagem estão próximas ou encostadas em paredes e outros objetos, a camera pra não entrar dentro da parede da zoom e a cabeça do personagem obstrói toda a sua visão.


Em cenários externos a câmera não é um problema tão grande, mas 80% do jogo se passa em em ambientes fechados o que quase torna Blue Stinger uma catástrofe impossível de jogar. É difícil destilar em palavras o quão enlouquecedor é entrar em uma sala apertada com alguns inimigos que surgem exatamente onde você entrou e ter que despachá-los de perto, sem conseguir ver o que você está tentando acertar só porque a câmera está fixada no topo da cabeça do seu personagem sem nenhuma maneira de remediar a situação.

Vou te dizer que esse jogo só não é injogável pq os inimigos parecem ter tanta dificuldade de se mover no cenário quanto você e não te atacam com muito impeto ou frequencia. Mas ainda sim isso não é um elogio, puta merda, viu...

Outro grande problema desse jogo é a música.


DO QUE TU TÁ FALANDO, CARA! A MÚSICA DESSE JOGO É ÓTIMA! OLHA ESSA MÚSICA DE CHEFE!

Sim, é realmente muito boa... exceto que isso não é uma música de chefe. É uma música que toca em loop o tempo todo na area, sem cue dramatica nem nada.

Vai salvar o jogo? 


Abriu uma porta?


Passou por uma sala que vc limpou de inimigos e está só andando por ela pra ir de um lugar a outro pela vez número 8754?


Okay, isso é absurdamente ridiculo e ninguém vai me convencer que foi intencional "pra ser engraçado", aí os caras tão viajando no toletão. Ou então as lutas de chefe que eu não posso nem dizer que são mal programadas pq elas teriam que ser programadas em primeiro lugar, quer dizer, olha só um cara desses:


Pior ainda, essa mesma programação de pião da casa própria é usada igualzinho em todos os chefes, muda só a skin. Então o que está acontecendo aqui? Esse jogo é ridiculo pq ele foi feito para ser zoado, ou ele é ruim pq os caras são ruins mesmo?

Minha opinião pessoal, um misto de ambos.

A verdade é que mecanicamente Blue Stinger é um survival horror que flerta com o desastre absoluto, o que salva é todo entorno de loucura trash ao redor dele que se beneficia pelo gameplay funcional, ainda que por pouco. Quando as coisas funcionam e o jogo está a todo vapor, Blue Stinger pode ser incrivelmente satisfatório em sua tosquice. 


Quero dizer, é um jogo em que o meteoro dos dinosauros é na verdade um óvulo espacial que despertou depois de ser inseminado por um esperma espacial - Nephilim é a tal Blue Stinger do título - culminando numa batalha de kaijus! Se isso não é absoluta arte do cinema trash, eu não sei o que mais seria

Combinar isso com a trilha sonora completamente destrambelhada faz de Blue Stinger um jogo estranhamente fascinante que se esforça para desafiar notas. Para qualquer um que goste das armadilhas do survival horror, tenha senso de humor e gosto pelo trash, então abra uma boa e velha lata de Hassy e experimente Blue Stinger. Para quem só espera um bom jogo, entretanto, é realmente melhor você ficar bem longe desse lindo desastre.

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 139 (Maio de 1999)


EDIÇÃO 140 (Junho de 1999)


EDIÇÃO 143 (Setembro de 1999)


MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
EDIÇÃO 056 (Novembro de 1998)


EDIÇÃO 063 (Junho de 1999)


MATÉRIA NA GAMERS
EDIÇÃO 035 (Novembro de 1998)


EDIÇÃO 036 (Dezembro de 1998)


EDIÇÃO 039 (Março de 1999)