quarta-feira, 18 de novembro de 2020

[MEGA DRIVE] SHADOWRUN (Maio de 1994) [#558]




O ano é 2058, e o futuro é sombrio. Não apenas sombrio, ele é sujo, úmido, superpopulado, barulhento e onde a vida vale muito, muito pouco. Enquanto isso, empresários das mega corporações que controlam o mundo fazem transações com cabos de dados inseridos em plugues intracranianos, enquanto nas ruas são tomadas por traficantes de cyberinplantes. Seu corpo é tão bom quanto você puder pagar.

Bem vindo ao cyberpunk.


Entretanto, Shadowrun não é o seu cyberpunk "habitual". Em 1989 alguns nerds estavam assistindo Blade Runner, ouvindo Psykosonik e lendo "Neuromancer", quando tiveram uma ideia estranha: E SE o Cyberpunk acontecesse num cenário de fantasia do D&D?

Nascia assim Shadowrun, o D&D Cyberpunk. Depois da tecnologia ter se juntado à carne para nos tornar algo mais do que apenas humanos (partes cybernéticas, nanotecnologia e todo o resto), a tolkienização acontece. Em 2011 — que em 1989 ainda era um futuro ainda distante — aconteceu um fenômeno chamado Unexplained Genetic Expression (UGE), no qual os humanos passaram a se tornar (e também dar luz a) uma série de subespécies, conhecidas como metavariantes, tais como orcs, trolls, elfos, anões e afins. 


Pra complicar a parada toda, ainda surge um vírus chamado Human Meta-Human Vampiric Virus (HMHVV), uma variação biológica do vampirismo tradicional que transforma a galera em monstruosidades como wendigos, goblins, nosferatus, wendigos e outros seres com garras e presas afiadas. Ou seja, monstros de D&D.

E como desgraça pouca é bobagem, os dragões que dormiam a centenas de anos no subterraneo acordaram. Com sua magia, conhecimento e ouro acumulado, os dragões podem assumir a forma humana e controlam países e algumas das maiores corporações do mundo. 

Nesse cenário, em que mega corporações travam guerras secretas por poder e magia, são empregados agentes sem ligação com elas e completamente descartaveis chamados de "shadowrunners". Eis então Shadowrun.


Sendo um RPG de mesa popular em sua época, eventualmente Shadowrun acabou indo parar nos videogames tendo versões muito diferentes no Super Nintendo e no Mega Drive. A versão do Super Nintendo, que eu não cobrirei hoje, é uma mistura de Point'n Click com action-RPG (vendo é menos estranho que a descrição soa, acredite).

Já o jogo de Mega Drive é uma besta inteiramente diferente.

Existem três classes no jogo: Samurai, que é focado no combate, Decker, que é focado em hackear a Matrix, e Xamã dos Jacarés, que é focado em dizer que vudu é pra jacu (apenas os fortes entenderão a referencia)

Uma coisa que eu elogio (e cobro) nos jogos é que o jogo estabeleça desde o começo o seu tom, os seus controles, enfim uma ideia da experiencia que você vai ter. E essa é uma coisa que Shadowrun faz muito bem desde os seus primeiros momentos.

Aqui você joga com Joshua, cujo irmão recentemente se tornou noticia nacional e não de uma forma positiva: um grupo de shadowrunners tentou invadir o prédio de uma grande corporação apenas para descobrir que a run era uma emboscada e eles morreram fuzilados ali mesmo. Seu irmão foi o último a morrer, e com suas últimas forças ele fez upload do que os seus olhos viram na internet.

Eu disse pra esse menino não se meter com Salish-Shidhe!

Agora você gastou seus últimos centavos para ir até Seattle descobrir o que aconteceu com seu irmão e se vingar. Não necessariamente nessa ordem.

E é justamente aqui que entra a coisa de passar o clima de Shadowrun logo nos primeiros momentos: você começa nas ruas de Seattle, sua única direção é ir até o quarto-capsula que o seu irmão tinha alugado antes da run para ver se descobre alguma pista. O problema é que o dono do Stokker Coffin Motel não vai liberar nada até você pagar a diária de 250 yuens e você está sem um centavo.

Como você vai conseguir esse dinheiro? Bem, claro que ele te dá uma quest para resolver isso, certo?


Então, não. Ele te aponta a direção do Sr. Johnson ("Mr. Johnson" são os caras que fazem a intermediação entre as mega corporações e os shadowrunners, como eles oficialmente "não existem", eles não tem nome e todos são chamados Sr. Johnson) mais próximo e TE VIRA CYBER MAMELUCO!

Na verdade COMO você vai conseguir o dinheiro é problema seu realmente. Se você conseguir matando pedestres nas ruas e saqueando os corpos, se você vai fazer missões para o Sr. Johnson ou vai entrar na Matrix hackear contas, bem, é problema seu realmente. Desde que você consiga o dinheiro ele não quer saber, e isso é Shadowrun.



Como dá pra ver, Shadowrun para o Mega Drive é um jogo muito, muito ambicioso. Não apenas o jogo tem um mundo bastante grande para um jogo de Mega Drive, como é um dos primeiros jogos de mundo aberto de todos os tempos - até este ponto, lembro de ter jogado apenas STARFLIGHT dessa forma.

Com efeito, existem três linhas de investigação que você pode seguir para desvendar a morte do seu irmão e essas investigações não são linhas retas: você precisa de contatos e alianças que você nem fazia ideia de que iria precisar. A seu próprio modo, e dentro das limitações do Mega Drive, Shadowrun faz o melhor que pode emular a sensação de estar jogando uma partida de RPG dentro dele: existe esse mundo e você faz a sua vida dentro dele.

Apenas um role na Matrix com os parças, super easy barely an inconvenient

Ajuda muito que você tenha bastante o que fazer nesse jogo (quer dizer, para um jogo de 1994, mas você entendeu meu ponto), encontrar novas pessoas que sabem algo sobre a morte do seu irmão 
facilmente pode ficar em segundo plano com sua carreira de shadowrunner.

Os contatos, por exemplo, que são uma das coisas que dá para fazer com dinheiro são úteis porque podem fazer coisas como ajudar a conectar você com itens ilegais, obter acesso a certas áreas ou limpar seu registro criminal do registro dos Lone Star (a polícia corrupta de 2058). Os contatos são opcionais e não são necessários para terminar o jogo. Para obtê-los, você precisa falar com as pessoas certas ou pagar por suas informações de contato - o que pode parecer um pouco aleatório, mas as oportunidades são apresentadas de tal forma dentro do diálogo da história que parece completamente natural e contínuo durante o jogo.

Outra grande area onde você pode gastar seu tempo - e por grande eu quero dizer com suas próprias regras que poderia facilmente ser um jogo inteiramente separado - é a Matrix. O espaço virtual onde sua mente se torna seu próprio avatar na rede (melhor exemplificado pelo filme homonimo, que é fortemente inspirado no cyberpunk) é sempre um grande elemento do cenário cyberpunk e aqui não é exceção.



O jogo inteiro é jogado como um Action RPG, com você tendo uma mira e passando chumbo ou magia nos transeuntes. Na matrix, entretanto, o jogo usa um sistema de combate clássico de jRPG de batalha com turnos e que tem suas próprias mecanicas, atributos e equipamentos. Quando eu digo que poderia ser um jogo a parte, eu estou falando sério e é realmente surpreendente como eles colocaram tudo isso no mesmo cartucho.

Eu me vi gastando muito mais tempo tentando conseguir mais créditos para atualizar meus implantes, em vez de seguir a trama por trás da morte de meu irmão. Para ser honesto, parei de me importar por que ele morreu e só queria mais upgrades. Quando achava que tinha créditos suficientes, encontrava uma nova loja em algum lugar que tivesse um programa diferente para a matrix e então precisaria dos créditos para comprá-lo. 

O que é meio que o espirito da coisa em Shadowrun, nesse mundo decadente e opressor é muito fácil se tornar um viciado em upgrades esperando sua dose para comprar o mais par de olhos, ou sistema de mira interligado com o cerebro. Então, é, eu diria que o jogo também marca uma estrelinha pela coisa de passar a sensação do material original.



Com efeito, Shadowrun é um jogo muito dificil e a vida vale muito pouco. Se você der a resposta errada para um contato, ninguém vai pensar duas vezes em abrir fogo em você e despejar seu corpo na sarjeta - assim como a reciproca é verdadeira.

E uma das coisas que ajuda nessa imersão é... e eu juro pra vcs que nunca achei que diria isso um dia, mas é verdade... é o som do Mega Drive. Veja, o chip de som do Mega Drive é horrível para reproduzir músicas porque tem um som esquisito, metálico e abafado como um bebado usando uma camisa de força dentro de um tonel de latão tentado se soltar.

O que em situações normais de temperatura e pressão seria uma merda, mas para Shadowrun calha de ser perfeito para esse futuro distópico, sujo e tecnologico. Então, é, um som metálico esquisito é uma boa pedida, por mais dificil que seja de acreditar.

Então, como você pode ver, Shadowrun do Mega Drive é um jogo espetacular, certo?

Damn, esse é um sistema que eu faria amigos para jogar

Hmm... então...

Eu tenho que admitir que o jogo que a Blue Sky é um dos jogos mais ambiciosos jamais feitos para um console de 4a geração, talvez até o mais ambicioso. Mas o jogo consegue entregar tudo que ele pretende fazer? Sim, mas por um preço.

Shadowrun tem dois problemas bastante punjentes, um você pode se acostumar, outro não. O primeiro é que o jogo não explica absolutamente nada sobre suas mecanicas. Por exemplo, os combates por turno da Matrix tem seu próprio conjunto de atributos, e o jogo não se importa em falar uma linha sobre como ele funciona. Vc vai, compra o melhor equipamento que pode comprar e seus ataques continuam errando os inimigos... pq? Te vira aí, descobre.

Exemplo de um mapa do jogo

E isso se aplica a todas as coisas do jogo. Por exemplo, a melhor forma de fazer dinheiro é roubar dados na Matrix e vende-los. Vender para quem? Então, esse é o problema. Tem um cara, e apenas um, no cantinho da tela em um dos mapas que compra dados... e a única forma de saber isso é explorar todas as casas de todos os mapas e falar com todo mundo até eventualmente esbarrar nele. Hoje dá para saber essas coisas olhando na internet, muita coisa vc se pergunta "como eu faço isso?" (e mérito ao jogo por levantar essas perguntas, o que corresponde a intenção de reproduzir o feeling do RPG de mesa) que o jogo em si não responde.

Mas ok, eu entendo que esse jogo foi feito em outra época para outra realidade. Esse jogo foi feito para um tempo que videogames eram muito, muito caros e você comprava um jogo tendo todo o tempo do mundo para investir nele. Então eu meio que entendo essa lógica de game design de jogar um NPC aleatório no mundo e se você achar ele achou. Não gosto, mas entendo para a época.

Agora algo que eu não gosto e que mesmo na época não era aceitável é que o ritmo desse jogo é pavoroso, para dizer o minimo. 

30k por Wired Reflexes e o jogo nem te diz o que isso faz!


Quando você começa, você tem apenas um Sr. Johnson que lhe dá pequenos trabalhos dentro do mapa de Redmond Barrens que pagam como lixo. Uma missão paga em torno de 50 créditos e uma arma decente custa por volta de 500 créditos. Um upgrade corporal por volta de 2000. Equipamento para navegar na Matrix, por volta de 5k a 10k.

Como você pode ver, você precisa grindar muito, muito, muito mesmo para comprar as coisas básicas para sobreviver no mundo. Você pode contratar um Shadowrunner para sua party por algo entre 1000 e 2000 (ou seja, entre 20 e 40 sidequests) e ele morrer porque você deu a resposta errada  para um NPC e a gangue dele passou fogo em vocês.

Uma classica party de Shadowrun composta por um ator porno dos anos 70, um cara que usa sobretudo e chapéu o tempo todo e uma orc vampira

Enquanto você apenas acorda no hospital com menos dinheiro (exatamente o sistema que foi usado por GTA, anos depois), sua party te larga se vocês tomarem TPK e vocês tem que contratar eles de novo por um preço mais alto ainda.

A mesma coisa para atributos. Você ganha 1 ponto de karma por sidequest realizada, que é o que você usa para subir suas skills. O problema é que a primeira compra de skill custa 1 ponto, a segunda 2, a terceira 3 e assim por diante. 

Isso quer dizer que você precisa de 78 sidequests para maximizar UMA skills. Quantas skills existem?


Apenas VINTE. Ah, mas certo, vc não precisa maximizar todas, só as que forem interesssantes ao seu estilo de gameplay, certo... mas o que cada uma faz, exatamente? Ah, é, o jogo não te dá nenhuma informação sobre isso, lembra?

Porra, aí vocês me fodem o meio campo, né amizade?

E o pior é que não tem muito como fugir disso, desse grinde interminável. O próximo Johnson ou dá dinheiro que mal constitui um aumento de salário em relação a Gunderson, ou missões que são muito difíceis de completar de forma confiável com o baixo nível de skill que você provavelmente terá quando precisar do dinheiro. O resultado é que você provavelmente acabará apenas grindando o primeiro Johnson até que tenha as habilidades e o equipamento para assumir as missões de um Johnson melhor, e nesse ponto você provavelmente teria mais sorte em pular direto para o últimojá que as missões de alto nível não diferem substancialmente em dificuldade das de nível médio.

Outra coisa que o jogo não te diz...


Ou seja, esse jogo é absurdamente desbalanceado. A Matrix, que como eu disse é a melhor forma de fazer dinheiro, não ajuda nada. É a forma mais fácil de ganhar dinheiro, mas a mais difícil de realmente entrar nela. Se você entrar na Matrix com equipamento inadequado, você será kickado na melhor das hipóteses e, na pior, terá seu equipamento destruído. Em seguida, você terá que gastar o dinheiro suado em reparos e atualizações.

Equipamentos melhores são ridiculamente caros. Para obter um deck decente que aguente pelo menos as missões moderadas, custa dezenas de milhares de neoienes, o que, como já vimos, é bastante difícil de encontrar. Isso torna montar um deck capaz de navegar na Matrix quase um endgame em si mesmo, porque uma vez que você tem um ganhar dinheiro se torna uma brisa - só que infelizmente, quando você chegou nesse ponto, você já gastou seu dinheiro nas coisas mais caras do jogo e não precisa de mais dinheiro a essa altura.

Shadowrun é um jogo bastante imperfeito. Narrativamente é fraco (a história do que aconteceu com seu irmão, afinal, não é tão interessante assim), mas estruturalmente, é ambicioso. A progressão de seu personagem é um grinding desgraçado, mas a liberdade concedida é admiravel. O combate não é tão interessante, mas a variedade da experiencia geral é interessantea. Esse jogo é um jogo que me irritou de várias maneiras, mas não é um jogo que eu não consigo apenas desgostar.

Eu não faço ideia do que nenhuma dessas coisas significa na prática

Se mais nada, é um jogo de mundo aberto em uma época que isso não existia (logo, ninguém sabia como fazer ainda) e em um console que claramente não tinha capacidade para realizar plenamente a experiencia

Isso não muda o quão desbalanceado esse jogo é. Mesmo com a grande afeição que eu tenho pelo genero cyberpunk ainda mais misturado com D&D, custou muito esforço chegar ao fim. Muito mais polimento e mais cuidado teriam contribuído para tornar o jogo uma experiência mais envolvente e agradável. Em vez disso, é sobrecarregado por grinding e colossalmente desequilibrado. 

Da forma como está, Shadowrun no Mega Drive é um jogo que eu elogio pelo que ele tentou ser, mas não posso aplaudir sem enormes ressalvas o que ele é.

MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 003