No final dos anos 90, quase começo do século 21, a Capcom era uma das grandes produtoras de jogos do mundo inteiro - embora não exista uma métrica para medir isso, não seria exagero se vc quisesse considera-la a maior.
E uma grande produtora de jogos (ou a maior, se vc quiser considerar assim) tem algumas franquias dos quais as pessoas esperam grandes coisas. Estou falando nomes de peso no mundo dos videojogos, como os jogos de luta da série MARVEL VS CAPCOM, ou as efusiantes aventuras do nosso bombardeiro azul favorito, nosso querido MEGA MAN X.
Porém de todas as franquias com inúmeros fãs que a Capcom tinha, nenhuma nessa época era tão quente quanto os jogos de RESIDENT EVIL. E é só ver pelas matérias das revistas na época, qualquer survival horror era automaticamente chamado de "um tipo de RESIDENT EVIL", mesmo que não pudesse ser mais diferente conceitualmente, como é o caso de SILENT HILL - que a Gamers usou como título da matéria "Resident Evil 3?"
Isso é o quão grande RESIDENT EVIL era então. Tá, mas porque eu estou falando isso? Ora, pense comigo: essa é uma das PRINCIPAIS franquias do maior estúdio de games do mundo. É apenas esperado que cada título da série - especialmente um título numerado, não um spin-off, seja feito com um cuidado absolutamente profissional, com um zelo de quem sabe está mexendo com a galinha dos ovos de ouro de uma das maiores agentes da maior indústria do entretenimento, certo?
... certo?
Então... vamos lá...
Nossa história de hoje começa imediatamente após o lançamento de RESIDENT EVIL 2, que apesar de todos os seus problemas de produção (como eu contei naquele texto) acabou sendo um gigatomico sucesso de público e crítica. Tão sucesso, na verdade, que seu diretor Hideki Kamiya foi alçado ao título de estrela dentro da Capcom.
E obviamente que a primeira coisa que a Capcom fez tão logo o dinheiro de RESIDENT EVIL 2 começou a entrar foi enviar um carregamento de cybermaidcatslolis para Kamiya, junto com ordens que ele começasse a trabalhar em Resident Evil 3, obviamente.
O que ele fez... até pouco mais da metade do ano 1998, quando foram cofirmados os primeiros rumores de que a Sony pretendia lançar o Playstation 2 no final de 1999/começo de 2000. Kamiya então disse para a Capcom que ele já tinha feito tudo que podia fazer com o hardware do PS1, e que ele iria trabalhar no próximo Resident Evil para ser um dos títulos do PS2 (esse jogo viria a ser Resident Evil 4, alias, mas isso é história pra outro dia).
Só que Mikami já estava produzindo uma sequencia para RESIDENT EVIL 2... no Dreamcast. A ideia de Mikami era literalmente fazer a sequencia de RESIDENT EVIL 2, mostrando o que aconteceu com Claire Redfield escapou de uma Racoon City tomada por zumbis (este viria a ser Resident Evil: Code Veronica, mas tambem outro dia falaremos desse).
Isso colocava a Capcom numa situação complicada, pq o próximo jogo de Resident Evil para o sistema mais vendido do mercado (o Playstation) ficaria pronto só na próxima geração e a Capcom não queria ficar tanto tempo sem lançar um título para os sistemas da Sony.
Mas tudo bem, era só fazer um jogo pequeno para manter o nome da franquia quente e fazer uma grana fácil. Talvez um pequeno jogo de ação, não seria muito dificil de fazer e não deveria dar muito problema.
Para esse fim, a Capcom pegou como diretor Kazuhiro Aoyama que tinha programado o modo "4th Survivor" de RESIDENT EVIL 2, onde era um pequeno modo de ação que vc fazia um time attack e atirava em zumbis com a engine do jogo - bem nos moldes do que a Capcom tinha em mente.
Para esse fim, foi trago para o time Yasuhisa Kawamura, que tinha como experiencia... hã... bem... ele escreveu a novelização do manga Battle Angel Alita, eu suponho... que foi um fracasso absurdo de vendas e o obrigou a largar o sonho de ser escritor para trabalhar na companhia de gás de Tóquio.
Por sorte, em 1998 eu irmão mais velho soube que a Capcom estava contratando escritores e sugeriu que Kawamura tentasse o emprego, afinal seria uma chance do seu irmão voltar a trabalhar com o que ele realmente amava.
Na entrevista de emprego, ele foi entrevistado por ninguém menos que o proprio Shinji Mikami - o pai de Resident Evil - que lhe perguntou que tipo de Resident Evil ele gostaria de escrever, ao que Kawamura respondeu que ele escreveria um jogo de Resident Evil de Yakuza ou um com temática de exorcismo.
Posterioramente, após sair da entrevista de emprego, ele ficou tipo:
Bem, ele estava absolutamente convencido que não tinha conseguido o emprego porque suas respostas foram bem bosta. Só que para sua grande surpresa, alguns dias depois a Capcom ligou para ele dizendo que ele tinha conseguido o emprego.
Pq? Bem, pq antes de ir para a entrevista de emprego ele tinha comprado um livro sobre Kempo e calhava do próprio Shinji Mikami ser um grande entusiasta de artes marciais que estava começando no Kempo. Então na entrevista eles conversaram mais sobre artes marciais do que sobre escrever jogos realmente... e isso lhe conseguiu o emprego, pq Mikami gostou dele. Simples assim, e vocês achando que esse tipo de pachecada não acontecia no Japão, né?
Kawamura então foi colocado pra escrever o joguinho de ação pq, hey, que lugar melhor para começar do que um pequeno joguinho spin-off que ninguem tinha muita expectativa em primeiro lugar? Adicionalmente era um jogo de ação, não é como se alguem fosse cobrar muito dele no quesito profundidade do roteiro.
Então estava tudo certo, um bando de noobs faria um spin-off para o PS1 enquanto o jogo de Playstation 2 não chegava, enquanto isso Shinji Mikami-sama estava produzindo o verdadeiro Resident Evil 3 para o Dreamcast. Tudo muito bom, tudo muito bem... exceto que havia um pequeeeeeeno problema. Bem pequeno mesmo, coisa boba,mas... maaaaas...
O jogo que Mikami estava produzindo para o Dreamcast seria o primeiro jogo de Resident Evil que não estaria em um console da Sony, e a Capcom decidiu que como o Dreamcast tinha muitos usuários que migraram do Nintendo 64 e do Saturn... talvez não fosse uma boa ideia chamar o jogo de "Resident Evil 3". Quer dizer, para quem não jogou o 1 e o 2 não seria um título muito chamativo começar pelo três, desincentivaria as pessoas a pegarem o bonde andando.
Por isso a Capcom decidiu que o jogo do Dreamcast não seria Resident Evil 3, e é por isso que o jogo do Dreamcast se chama "Resident Evil: Code Veronica". Até aí tudo bem, le magrão. Só que aí alguma santa alma iluminada dentro da Capcom pensou: "hã, se o jogo do Dreamcast não vai mais ser Resident Evil 3... E SE, veja bem, E SE a gente pegasse aquele joguinho de ação que eles estão fazendo pro PS1 e chamasse ESSE JOGO de Resident Evil 3? Ia dar um boost nas vendas com zero esforço, certo?"
E eu não estou mentindo nem exagerando pra vocês quando digo que isso aconteceu que o Resident Evil de PS1 estava na metade do seu desenvolvimento quando alguém chegou pro diretor Kazuhiro Aoyama e disse o seguinte:
- O meu, sabe aquele jogo de ação que vc está fazendo?- Sei, claro, tá indo bastante bem, estamos usando bastante assets do RESIDENT EVIL 2 mas então com o orçamento e os dez caras que me deram, era o que dava pra fazer. O que tem ele?- Então, agora ele vai ser Resident Evil 3. O que quer dizer que as pessoas vão esperar um puta survival horror, não um spin-off de ação despretencioso.- O QUE?- Ah, e ele tem que estar pronto pro natal dos Estados Unidos, então terminar ele por volta de setembro... daqui uns três meses ... seria o ideal- O QUEEEEEEEEEEE?!?
Sério, Aoyama recebeu a noticia que o seu spin-off de ação de baixo orçamento do dia para a noite seria Resident Evil 3 e que ele seria lançado em poucos meses. Desnecessário dizer que ele não tinha experiencia nenhuma em dirigir um survival horror... na verdade ele não tinha experiencia em dirigir nada, quanto mais um que seria um dos títulos mais aguardados do Playstation no fim de 1999!
Superando o ataque de panico que ele teve, Aoyama fez então a única coisa que ele podia fazer... além de chorar no banheiro... que foi chorar pra Capcom pelo menos liberar hora extra pro pessoal. Com efeito, o crunch de aumentar 5x o escopo do jogo e ter que entregar na metade do tempo foi tão grande, as pessoas viravam tantas noites literalmente morando nas suas mesas que as familias dos funcionarios da Capcom começaram a registrar ocorrencia na policia de pessoa desaparecida!
Porra, o teu marido não aparece em casa faz uns 5 dias, esta trabalhando tanto que nem tem tempo de ligar pra avisar, a mulher vai achar que ele morreu, mataram ele ou ele fugiu com uma loli!
E agora que eu contei a história da bagunça que foi o desenvolvimento desse jogo e como ele virou Resident Evil 3 muito que na orelhada de algum executivo, dirigido por um diretor sem experiencia nenhuma que não entendia nada de survival horror e escrito por um escritor que tava ali só pra encher linguiça num jogo de ação, você meio que já deve estar formando uma boa imagem mental do tipo de jogo que Resident Evil 3 é.
Essencialmente, RE3 é meio que um pato que faz de tudo um pouco (nada, voa e anda), mas não faz nada dessas coisas particularmente bem. A parte de atirar nos zumbis é legal (e claramente a melhor coisa do jogo, já que ele nasceu como um jogo de ação), mas não é dificil ver que a ideia não foi plenamente desenvolvida. Da mesma forma as partes de survival horror... não são ruins per se, mas claramente não foram feitas por alguém com experiencia no ramo.
Originalmente a ideia do jogo era que você jogaria com mercenários contratados pela Umbrella Corp para lidar com a infestação zumbi em Racoon City - apenas para descobrirem que a contaminação de zumbis estava fora de controle e eles teriam que dar um jeito de fugir da cidade com suas vidas. Essa ideia foi mais ou menos mantida na versão final do jogo exceto que aqui sua heroína é Jill Valentine, do primeiro jogo.
Após ela voltar das suas aventuras na mansão Spencer do primeiro jogo e achar que ia finalmente poder relaxar, a escala 6x1 ataca novamente e ela tem que voltar a labuta pq a cidade toda tá indo pras caralhas agora com a epidemia fora de controle. Tentando achar um caminho para fora da caótica Racoon City, ela encontra com Carlos Oliveira - um brasileiro que trabalha como mercenário para a Umbrella, mas que se ligou que a companhia está fazendo uma queima de arquivo naquela cidade e que obviamente eles não vão deixar ninguém sair de lá vivo para contar a verdade sobre o T-Vírus e as experiencias da Umbrella - o que inclui nosso amigo verde e amarelo tambem.
Como desgraça pouca é bobagem, enquanto tenta achar uma rota para fora da cidade Jill também está sendo caçada por um mutante modificado pela Umbrella, um monstro chamado Nemesis que foi programado para garantir que ninguem que voltou da Mansão Spencer conte ao mundo o que viu dos segredos da Umbrella.
Esse cenário e a história são okay, e eles não desapontariam como um spin-off que se passa algumas horas antes dos eventos de RESIDENT EVIL 2. Porém como o terceiro jogo da franquia... eles ainda parecem só um spin-off que se passa horas antes de RESIDENT EVIL 2, pq não avança a trama de forma significativa.
Mecanicamente, bem, é onde esse jogo fica mais esquisito: você vê pelo design que ele deveria ser um jogo de ação, as ruas são atulhadas de zumbis como nunca antes na franquia - não é exagero dizer que 3 telas desse jogo tem mais zumbis que todo primeiro RESIDENT EVIL. Entretanto ao ser convertido para um survival horror de ultima hora - um genero onde gerenciar sua munição e recursos é mais importante que atirar - e por alguém sem experiencia no ramo... não ficou ruim, mas não é excelente também. O resultado disso é que esse é o jogo mais dificil da franquia inteira porque você não tem os recursos nem a jogabilidade necessária para fazer o que jogo espera que você faça.
Sabe quando você coloca um personagem com dado conjunto de movimentos em um genero de jogo para o qual ele não foi originalmente pensado? Tipo ter um personagem de jogo de luta em um jogo de plataforma como em MORTAL KOMBAT MYTHOLOGIES: Sub-Zero? Aqui não é tão ruim quanto, obviamente, Deus nem perto, mas... não é exatamente confortável também. Não é catastroficamente ruim, mas não é o estado da arte do gameplay tb não.
A parte de survival horror segue a mesma linha: não é ruim, mas é tão... hã... oscila entre reciclar ideias de RESIDENT EVIL 2 e puzzles novos que passam no máximo como desinspirados. Além de fazer menos sentido do que o cenário de Resident Evil normalmente faz - como por exemplo o mapa inicial do jogo são as ruas de Raccon City, mas para acessar a outra metade da cidade vc precisa resolver um puzzle de coletar itens e posicionar eles na ordem certa... o que me faz imaginar como deve ser o transito nessa cidade, se para ir de um lado a outro vc precisa fazer esse perrengue todo para todo e cada cidadão.
A melhor comparação que eu posso dar é comparar com os mapas semi-abertos de SOUL OF THE SAMURAI, lembra de como os mapas de SOUL OF THE SAMURAI marcaram toda uma geração?
DO QUE TU TÁ FALANDO, CARA? NINGUÉM LEMBRA DE SOUL OF THE SAMURAI, MUITO MENOS DO SEU LEVEL DESIGN!
Exatamente meu ponto, Jorge. Da mesma forma que, tirando o terço inicial desse jogo que é nas ruas de Racoon City e o ponto mais interessante do jogo, ninguém mais lembra de uma única coisa a respeito de RE3 pq ele é desinteressante ou apenas recicla cenários anteriores (como o esgoto de RE2 ou o hospital que parece copiado e colado da mansão de RE1)
Mas como eu disse, a parte das ruas de Racoon City é a parte boa do level design (e a mais bonita com os cenários mais ricos e cheios de detalhe, claramente onde a equipe teve mais tempo para trabalhar) a partir da metade do jogo é que a coisa degringola de vez, quando da pra ver que o crunch tava pegando e o pessoal do desenvolvimento já estava trabalhando em turnos de 72 horas por 15 minutos de soneca. A reta final do jogo é tão meh em termos de level design que quando a Capcom fez os remakes modernos dos 4 primeiros jogos de RE, essa metade final do terceiro jogo foi a mais mexida: quase toda refeita do zero praticamente para ficar interessante.
Isso não quer dizer que o jogo seja um acidente de trem e não tenha nenhuma qualidade, é claro. A primeira delas é a habilidade de se virar completamente enquanto mira, o que é útil quando você precisa escapar dos inimigos. Outra é um movimento de esquiva que você pode executar enquanto mira, que é mais útil do que você esperaria - o único jogo da série que tem um movimento de dodge. No lugar de ter dois personagens, como os dois jogos anteriores, aqui o jogo troca (e economizou tempo na produção do jogo com isso) isso por um recurso novo conhecido como "Seleção ao Vivo".
Durante intervalos específicos na história, você tem duas opções sobre como lidar com diferentes eventos no jogo - meio que como em uma visual novel. Isso afeta a maneira como o enredo se desenrola de algumas maneiras diferentes e que caminhos você vai. Não é a mesma coisa que ter duas abordagens diferentes para os puzzles para dois personagens diferentes como os jogos anteriores, mas é o que a casa oferece.
Porém a coisa pela qual esse jogo é mais lembrado, indiscutivelmente é o personagem título: Nemesis. Claramente inspirado no T-1000 de T2: TERMINATOR'S 2 JUDGEMENT DAY, Nemesis é uma força da natureza a ser temida e você nunca está seguro de quando e onde ele vai aparecer - exceto que quando ele aparece tudo que vc pode fazer é largar o que está fazendo e fugir gritando OHSHITOHSHITOHSHIT!
Nemesis é, mecanica e narrativamente, uma versão melhorada do Mr. X do jogo anterior e mais memorável também. Agora eu entendo quando as pessoas dizem pensar no jogo significava ter um pequeno ataque de pânico ao com a ansiedade de ouvir um "STAAAARS..." arrastado do nada. Em um jogo que já é dificil, a capacidade dele de acertar quase qualquer lugar dos corredores apertados e ele aparecer em qualquer lugar fazem dele realmente um Exterminador morto-vivo.
Por causa dessa variável, eu me vi salvando com mais frequência do que em jogos anteriores de puro medo que o Nemesis aparecesse pra fazer em um Jill Sandwich com 1 hit kill, e eu suponho que essa ansiedade era exatamente onde os produtores estavam mirando. Se ele te agarrar - e seus braços são bem grandes - há uma boa chance de você ver a tela de título novamente em breve.
Então, no fim do dia, Resident Evil 3 é isso: um jogo de ação que na ultima hora teve que virar um survival horror, e pouco surpreendentemente não faz nenhum dos dois de forma brilhante. Eu realmente vejo uma realidade alternativa onde RE3 foi o que nasceu para ser: um spin-off de ação na mesma forma que Metar Gear Rising foi - só que melhor ainda, com a sensação de desespero de ser caçado pelo Nemesis ainda por cima.
... mas esse RE3 é um jogo que não existe. O RE3 que existe de fato é um survival horror funcional mas não tanta coisa assim acima disso, infelizmente.
MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 141 (Julho de 1999)
MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 041 (Junho de 1999)